quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

REFLETINDO SOBRE - HÁ DOIS MIL ANOS - por Ricardo Nunes


REFLETINDO SOBRE  - HÁ DOIS MIL ANOS


 Tenho me dedicado a reler alguns livros espíritas que li na juventude e que naquela época me impressionaram muito. Tento perceber a impressão que tais livros me causam hoje em dia. Com este objetivo, acabei de reler a famosa obra “Há dois mil anos” psicografada por Francisco Cândido Xavier. Esta obra pretende ser uma biografia de uma das reencarnações do Espírito Emmanuel, que teria sido, segundo informação ali existente, o senador Publius Lentulus, legado do imperador romano na Judeia ao tempo de Jesus.

Desde que foi publicado, na primeira metade do século XX, o livro causou polêmicas quanto aos fatos ali narrados. Na atualidade, podemos verificar na internet toda uma discussão sobre a existência ou não deste senador na Roma antiga. Existe um debate interessante sobre a veracidade de uma carta atribuída no livro ao senador Publius Lentulus e destinada ao senado romano, na qual o senador teria feito a descrição de algumas características físicas e morais de Jesus de Nazaré.

 Em minha opinião estas polêmicas não tiram o valor   literário e doutrinário do livro. Trata-se de um bom livro, bem escrito, e que trata de alguns episódios da época do cristianismo primitivo. Mesmo que a obra fosse ficcional, ainda assim teria o seu valor. Se existem nela elementos de ficção e realidade tão ao gosto de alguns escritores, não sei dizer. O fato é que Emmanuel não a oferece ao público como obra ficcional, mas como relato de sua própria história naquela distante Roma dos Césares, diz ele:

 “Tenho-me esforçado, quanto possível, para adaptar uma história tão antiga ao sabor das expressões do mundo moderno, mas, em relatando a verdade, somos levados a penetrar, antes de tudo, na essência das coisas, dos fatos e dos ensinamentos. Para mim essas recordações têm sido muito suaves, mas também muito amargas. Suaves pela rememoração das lembranças amigas, mas profundamente dolorosas, considerando o meu coração empedernido, que não soube aproveitar o minuto radioso que soara no relógio da minha vida de Espírito, há dois mil anos. Permita Jesus que eu possa atingir os fins a que me propus, apresentando, nesse trabalho, não uma lembrança interessante acerca de minha pobre personalidade, mas, tão somente, uma experiência para os que os que hoje trabalham na semeadura e na seara do nosso divino Mestre. ”

De fato, o livro dá a impressão de ter sido escrito por alguém que conhecia profundamente aquela época da história de Roma, diz ainda Emmanuel:

 “Ante minha alma surgem as reminiscências das construções elegantes das colinas célebres; vejo o Tibre que passa, recolhendo os detritos da grande Babilônia imperial, os aquedutos, os mármores preciosos, as termas que pareciam indestrutíveis...Vejo ainda as ruas movimentadas, onde uma plebe miserável espera as graças dos grandes senhores, as esmolas de trigo, os fragmentos de pano para resguardarem do frio a nudez da carne. Regurgitam os circos.... Há uma aristocracia do patriciado observando as provas elegantes do Campo de Marte e, em tudo, das vias mais humildes até os palácios mais suntuosos, fala-se de César, o Augusto!”

Percebe-se que o livro é escrito por alguém profundamente cristão, o que condiz com as características ideológicas de Emmanuel e também de Chico Xavier, apesar de ambos terem se convertido ao espiritismo. Emmanuel também teria sido, em uma de suas reencarnações, segundo a tradição existente no movimento espírita, um sacerdote católico.

 A obra relata um amor frustrado entre o senador Publius Lentulus e Lívia, sua esposa, que teria sido uma das primeiras aristocratas romanas adeptas da mensagem cristã. No que diz respeito ao seu relacionamento afetivo com Lívia, Emmanuel sugere na obra um conceito questionável em termos de filosofia espírita, o de que seriam “almas gêmeas”.

 O livro traz uma interessante descrição da Roma dos Césares: do sofrimento e das atividades dos escravos, das competições e cruéis divertimentos no circo, dos costumes patrícios, do domínio militar das legiões romanas sobre os povos conquistados, das intrigas na disputa pelo poder na política do império. A obra relata ainda as pregações de Jesus, sua condenação e morte, a ascensão de Nero ao poder, a destruição de Jerusalém por Tito, bem como trata das primeiras perseguições aos cristãos e termina com a erupção do Vesúvio em Pompeia, entre outros temas. Daria certamente um grande filme.

 É necessário dizer que não acredito na desonestidade de Chico Xavier na composição do livro. Neste sentido, alguns adversários do espiritismo alegam que ele teria feito pesquisas sobre a Roma antiga para escrever o romance. Não creio.

 Outros defendem como fonte da obra o inconsciente do médium, que seria capaz de captar, através de “superpoderes”, sabe-se lá de que maneira, a narrativa do livro na mente de alguma pessoa em qualquer lugar do mundo. Também não creio.

  Seria a obra um produto do inconsciente profundo do médium, de origem anímica, em razão dele ter vivido naquela época em uma de suas reencarnações? Esta hipótese seria possível, porém também não acredito nesta alternativa considerando as múltiplas personalidades, com seus maneirismos, estilos característicos, perfis psicológicos, intelectuais e morais diversos, que se manifestaram através da psicografia de Chico durante toda a sua vida.

Muito interessante é o breve período de tempo em que o livro foi escrito, quase 4 meses, de 24 de outubro de 1938 a 09 de fevereiro de 1939.

Vale a pena ler este e outros romances psicografados por Chico Xavier e por outros médiuns, sem perder de vista, é claro, que a obra psicografada de qualquer médium deve ser analisada sob os critérios filosóficos, técnicos e éticos da ciência espírita. Para entender adequadamente a obra de Xavier ou de qualquer outro médium é necessário conhecer a obra de Allan Kardec, que nos ensina, entre outras coisas, que nenhum médium está isento da análise crítica de sua produção mediúnica, pois, afinal, não existe médium perfeito.


Nenhum comentário:

Postar um comentário