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quinta-feira, 4 de maio de 2023

ALLAN KARDEC: TEXTO E CONTEXTO - A PROPÓSITO DAS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS” DE SUAS OBRAS - por JON AIZPÚRUA

 

EDITORIAL - Revista Evolucion de Caracas -CIMA



ALLAN KARDEC: TEXTO E CONTEXTO - A PROPÓSITO DAS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS” DE SUAS OBRAS 


Jon Aizpúrua


I – O TEMPO DE KARDEC E OS AVANÇOS CIENTÍFICOS E SOCIAIS

Ao longo dos séculos, a humanidade passou por muitas e intensas revoluções de conhecimento que vão oferecendo novas perspectivas para a compreensão e interpretação daquilo que constitui o que se concebe como realidade. É o que se denomina, segundo Kuhn, de mudanças de paradigmas, quer dizer, a substituição de antigas abordagens por outras que se mostram mais eficientes para explicar contradições, esclarecer enigmas e apresentar hipóteses que parecem ter maior plausabilidade e que ao serem verificadas são incorporadas ao acervo científico e cultural. O dinamismo e a interação desses processos constituem a própria essência do progresso.

O surgimento  de novos paradigmas ou esquemas interpretativos sobre o universo, a vida, o ser humano, bem como os princípios e valores que imperam no âmbito cultural de ordem ética, moral ou jurídica, ocorrem em um determinado contexto social, histórico, econômico, político ou espiritual, de tal forma que nenhum sistema de pensamento escapa aos condicionamentos inerente à época em que aparece e se desenvolve, os quais  se manifestam na aceitação das crenças dominantes e na linguagem empregada  para expressá-las.

Evidentemente, o espiritismo não é uma exceção a essa lei geral que indica o processo gradual de avanços no campo do conhecimento. Surgido em meados do século XIX, graças ao minucioso trabalho teórico e experimental realizado por Allan Kardec contando com a assessoria de espíritos desencarnados de elevada condição intelectual e moral, não poderia deixar de receber as influências do contexto geral de sua época. , representado pelas ideias filosóficas, científicas, religiosas, sociais ou morais que imperavam na sociedade francesa e europeia, o que é de todos bem representadas em seus livros, discursos e outras publicações.

A doutrina fundada por Kardec constituiu uma autêntica revolução epistemológica que veio sacudir o ambiente que já assinalavam as correntes materialistas, as crenças religiosas tradicionais e o modelo espírita em geral. À luz de seus novos conceitos, já não era mais necessário nos resignarmos à desesperança causada por visões niilistas e ateístas; nem havia que depender de uma fé baseada em dogmas antigos ou na pretensa autoridade divina de um livro sagrado para admitir a existência e onipresença de Deus, a continuidade e transcendência espiritual após a morte, nem foi preciso sucumbir aos medos provocados pelas doutrinas de punições eternas ou castigos infernais. Uma nova concepção, racional e otimista, abria-se caminho para mostrar a sobrevivência do espírito e sua continuidade evolutiva em existências sucessivas, bem como a interação permanente entre desencarnados e encarnados facilitada pelos médiuns com o concurso de uma ampla gama de faculdades psíquicas.

A objetividade e honestidade com que Kardec se entregou aos estudos dos chamados "mesas girantes" ou "mesas falantes" sem se deixar levar por preconceitos sobre sua origem e natureza, permitiu-lhe abrir um canal de comunicação com espíritos de uma singular categoria e a partir das informações obtidas e de sua própria investigação e reflexão, formular um sistema coerente em torno da complexa realidade material e espiritual. Foi assim que avançou do fenômeno ao método e, pela validação dele, sistematizou e codificou a doutrina espírita.

Consciente de que o espiritismo estava em sua fase inicial, Kardec nunca pretendeu que com seus escritos, já estivesse terminado de maneira definitiva ou acabada. Em inúmeras ocasiões referiu-se à progressividade dos conhecimentos espíritas, os quais estariam abertos a retificações de acordo com o progresso da ciência e da cultura. Ele nunca reivindicou um papel messiânico, tão pouco aceitou que os espíritos que o orientavam fossem "reveladores predestinados" ou que seus ensinamentos fossem absolutos ou infalíveis. Se dentro do movimento espírita tem proliferado a crença de que todas as ideias contidas em suas obras têm o caráter de verdades absolutas, tal suposição não encontra respaldo, nem na letra nem no espírito, nos textos kardequianos.

É que não há pensador ou autor, independentemente da magnitude e importância da tarefa realizada, que esteja completamente afastado da influência e dos condicionamentos de seu tempo, e por ele que se faz fundamental levar em conta esse contexto quando se quer estudar suas abordagens, compreendê-las adequadamente e também criticá-las. No nosso caso, no que se refere ao espiritismo, admiravelmente definido por Kardec como "ciência observacional e doutrina filosófica das consequências morais", há espaço e relevância para o exercício de um esforço intelectual e crítico em torno do conjunto de suas ideias com vistas para uma atualização conveniente e inevitável.

Se tal revisão não for feita dentro do Espiritismo, outros a farão de fora e, de fato, isso já vem acontecendo nos campos da medicina, da psicologia, da parapsicologia e outras disciplinas, embora tal empreendimento nem sempre tenha sido verificado com devido rigor e sem preconceitos filosóficos, teológicos ou acadêmicos. Os espíritas podem e devem empreender sem medo uma tarefa que exige estudo, disposição e mente aberta. Os princípios básicos que sustentam o espiritismo (Deus, espírito, sobrevivência, reencarnação, mediunidade, pluralidade de mundos habitados) estão aí, válidos e muito sólidos como pilares que sustentam uma grande cosmovisão. No entanto, inúmeras opiniões que aparecem nos textos fundadores do espiritismo e giram em torno daqueles princípios, respondem às ideias científicas do século XIX e aos padrões culturais, sociais e morais que prevaleciam naquelas sociedades, e não mais correspondem à ciência. a cultura do nosso tempo.

De meados do século XIX até os dias atuais, o mundo mudou mais rápido e mais intensamente do que nunca. Toda uma série de processos complexos ocorre em campos tão diversos como a física, a biologia, a neurologia, a medicina, a engenharia genética, a aeronáutica, a psicologia, a economia, a política, a sociologia e a antropologia, a ecologia, as lutas sociais, a arte, a religião, a indústria bélica ou tecnologias de comunicação, incluindo a digitalização e os desafios perturbadores da inteligência artificial. Esses processos, em constante mudança e expansão, surpreendem, desconcertam e nos obrigam a uma revisão de crenças e a uma atualização imprescindível. Os que não se incorporem às transformações somente restará desviar o olhar e se refugiar no conforto da fé.

II – AS DENOMINADAS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS”

Dito isto, é hora de se posicionar a respeito de um acontecimento que hoje está agitando o movimento espírita e tem dado origem a inúmeras discussões e até acirradas polêmicas. Sucede que um grupo ou coletivo espírita brasileiro chamado “Espíritas à Esquerda” começou a publicar algumas obras de Allan Kardec colocando na capa, em letras e cores bem destacadas, o rótulo: “EDIÇÃO ANTIRACISTA”. Até o momento surgiram dois livros: O Evangelho Segundo o Espiritismo e O Livro dos Espíritos.

No prefácio que colocam no início de cada uma destas obras, dão a conhecer as razões que motivaram a sua iniciativa. Desde logo, eles se apoiam na decisão do Ministério Público Federal do estado da Bahia em 2007, segundo a qual existem "trechos da obra literária de Allan Kardec, tidos como supostamente discriminatórios e preconceituosos em relação aos negros e outras etnias". grupos”, pelo que as editoras de tais livros devem colocar notas de rodapé relativamente àqueles “textos que possam suscitar dúvidas pelo seu carácter discriminatório ou preconceituoso”. Nove editoras espíritas firmaram termo de compromisso com o Ministério baiano para o cumprimento dessa disposição legal.

Argumentam os responsáveis ​​pelo coletivo EàE  que o pensamento de Kardec estava impregnado das ideias predominantes na Europa do século XIX sobre diversos assuntos humanos e sociais, como era o caso da frenologia, teoria que considerava cada região do cérebro responsável por determinada função, e a fisionomia, cuja tese central afirmava que o caráter e outros elementos da psicologia das pessoas poderiam ser interpretados por meio de suas características exteriores. Essa influência, somada à que recebeu de outras disciplinas científicas e humanísticas de seu tempo marcadas pelo racismo estrutural, se refletiria na linguagem que utilizou para se referir às raças antigas e contemporâneas, distinguindo as etnias brancas como populações “civilizadas” enquanto as etnias negra e indígena foram classificadas como populações “selvagens”.

Por esta tendência eurocêntrica e etnocêntrica que se percebe em alguns textos de Kardec, os representantes ​​de EàE denunciam em diversos comentários  “ o racismo científico contido nas obras kardecistas” e sustentam que a leitura de algumas perguntas formuladas por Kardec e das respostas dos espíritos deixam evidente os preconceitos socias que animavam aqueles que exerceram a prática da escravidão até épocas recentes da humanidade.

Afirmam também que esses elementos racistas têm se revelado na composição e no funcionamento do próprio movimento espírita e, nesse caso, fazem referência específica ao brasileiro, que é, de longe, o maior movimento espírita do mundo. Segundo dizem, "os negros e negras estão acostumados, na maioria das instituições espíritas, a participar apenas como subordinados, coadjuvantes, no apoio às atividades operacionais e principalmente como beneficiários de projetos assistencialistas, sendo raro vê-los ocupando cargos de direção nessas instituições".

Eles então justificam seus esforços para dar lugar a “edições antirracistas” a partir de um sentimento de reparação pelo que consideram uma dramática injustiça cometida contra populações historicamente discriminadas, agredidas e marginalizadas; como alerta de que tal comportamento tem permeado o movimento espírita, causando sofrimento a negros e negras que participam de casas, sociedades ou federações.

 

III – ENCONTROS E DESENCONTROS.

Partidários, como somos, de um espiritismo nitidamente kardecista, e, portanto, laico, livre-pensador, humanista, progressivo e progressista, aberto à discussão e à crítica, não podemos olhar com indiferença para uma iniciativa deste calibre. Nem podemos descartá-lo com argumentos simplistas, muito menos com desqualificações. Acreditamos nas virtudes do diálogo e do debate respeitoso e construtivo, sem que isso implique renúncia a convicções baseadas em princípios e valores. Um diálogo fecundo e alteritário que facilita a compreensão das perspectivas dos outros, precisamente dos que pensam diferente, e que substitua a prática negativa de um monólogo empobrecedor.

Ressaltamos de saída que não questionamos as boas intenções que animam os integrantes do coletivo EàE nem sua condição de espíritas. Sentimos sua iniciativa como a expressão de uma reivindicação angustiante sobre a possibilidade de os textos kardecistas servirem de suporte direto ou indireto a ideologias racistas ou discriminatórias de qualquer signo ou natureza.

Por outro lado, não podemos deixar de apontar nossa coincidência com algumas considerações feitas nos parágrafos que servem para apresentar a "edição antirracista" de O Evangelho Segundo o Espiritismo e O Livro dos Espíritos, pois, de fato, eles constituem elementos básicos de nossas próprias reflexões, as quais divulgamos há décadas em livros, artigos e conferências. Situados em perspectivas diferentes e distantes da mentalidade religiosa e messiânica que caracteriza um segmento altamente significativo de espíritas no Brasil e no mundo, assumimos que nenhum ser humano, e no caso específico do espiritismo, nenhum autor ou médium, encarnado ou desencarnado, goza de infalibilidade, pois suas ideias, resguardando suas valiosas contribuições, são passíveis de serem avaliadas, revisadas, criticadas e até mesmo superadas. Obviamente, um processo analítico dessas proporções requer muito estudo, serenidade de espírito, rigor científico e a aplicação de alguns critérios metodológicos indicados por Kardec como o "controle universal dos ensinamentos dos espíritos" e a "concordância entre as informações ".

E, precisamente, para manter um espírito aberto e crítico, é fundamental assumir que nenhuma ideia e nenhum representante dela escapam à influência do meio social, do momento histórico e também espiritual em que surgem. Visto que não há texto sem contexto, não seria adequado examinar o aparecimento do espiritismo em meados do século XIX com O Livro dos Espíritos e demais obras do corpo Kardequiano, sem levar em conta as inúmeras variáveis ​​concomitantes que intervieram na aqueles tempos, em que os valores da tradição judaico-cristã e o peso institucional da Igreja Católica prevaleceram de forma determinante em todas as esferas da sociedade. Considere-se, por exemplo, os antecedentes representados pelas obras anteriores de Swedenborg, Mesmer, Kerner ou Cahagnet até o surgimento dos diversos episódios mediúnicos que se cristalizariam no “espiritualismo moderno”, que alguns, com pouco rigor, rotulam como “espiritismo anglo-saxão”. Kardec foi informado de suas experiências e de suas teorias, delas aproveitou no que julgou útil, e desenhou a doutrina espírita com perfil autônomo.

No que diz respeito ao celeiro das teorias científicas, filosóficas, políticas, sociológicas, antropológicas, demográficas ou econômicas que agitavam o ambiente europeu, tampouco se poderia entender o surgimento do espiritismo com a monumental obra de Kardec sem reconhecer a poderosa influência que em seu pensamento, em sua paixão por estudar e entender, em sua frieza e ceticismo aplicados ao diálogo com entidades espirituais, em sua mentalidade racionalista e livre de pensamento, exerceram correntes como o Iluminismo, o positivismo, as utopias sociais e o evolucionismo.

Em sua reflexão sobre o contexto sociopolítico, cultural e científico que envolveu Kardec, os integrantes da EàE chegaram à conclusão de que Kardec era racista, por ter assimilado teorias da frenologia, da fisionomia e da visão social dominante à época. embora tenham reconhecido que os princípios do espiritismo expostos em seus livros, quando devidamente compreendidos e praticados, destruirão os "estúpidos preconceitos da cor".

Nossa análise, entretanto, não nos leva a tal conclusão. De forma alguma podemos concordar com a tese de que o fundador e codificador do espiritismo era racista. Parece-nos um erro redondo contemplar a árvore e parar de olhar para a floresta. Não se pode negar ou ignorar que existem opiniões de Kardec e também dos assessores desencarnados que intervieram na elaboração da doutrina espírita, que refletiam as crenças dominantes no século XIX acerca da diferenciação entre "raças superiores ou civilizadas" e "raças inferiores ou selvagens", mas são expressões secundárias e tangenciais a todo o edifício doutrinário. Para além de algumas frases e termos que hoje parecem inadequados e ultrapassados, o que é realmente essencial e cerne dos ensinamentos kardecistas é o reconhecimento de que todos os espíritos são livres e iguais em dignidade e direitos, e que a lei evolutiva da reencarnação nos leva inexoravelmente à superação e erradicar todas as formas de discriminação com base na cor da pele, nacionalidade, orientação sexual, crenças, títulos acadêmicos ou condições socioeconômicas. E é isso que aprendemos a partir do momento em que estudamos e internalizamos os princípios e valores cardeais que sustentam e enriquecem a doutrina espírita.

Pensamos que as preocupações dos membros do coletivo EàE poderiam ter sido canalizadas de maneiras diferentes. Por exemplo, editar os livros em questão e colocar suas anotações no rodapé da página, informando que são de sua autoria. Este é um procedimento legítimo e que pode abrir espaços para discussões muito sérias. Ou, e talvez isso seja o mais relevante, escrever e publicar artigos, ensaios, panfletos ou livros nos quais apresentem suas análises, seus conceitos e suas críticas sobre esses temas. Consequentemente, permitimo-nos convidá-los a realizar um maior esforço intelectual, com absoluta autonomia, e a publicar e divulgar amplamente os textos resultantes do seu trabalho. Tarefas que apontavam nessa direção já foram realizadas por diversos pensadores espíritas como Quintín López Gómez, Manuel Porteiro, David Grossvater ou Jaci Regis, entre outros. A esse respeito, parece muito oportuno e esclarecedor transcrever aqui dois parágrafos extraídos do Espiritismo dialético, obra monumental de Porteiro:

"A doutrina de Kardec e seus colaboradores, embora verdadeira em seus princípios fundamentais, não pode ultrapassar os limites de seu tempo ou romper totalmente com os moldes religiosos aos quais se ajustou...". “Hoje, as exigências do espírito científico e filosófico, que abarcam horizontes mais amplos, não se satisfazem com os expedientes religiosos e morais de São Luís, de Santo Agostinho ou de qualquer outro santo filósofo ou teólogo, nem com versos, preceitos ou parábolas extraídas da Bíblia”.

A inserção de qualquer texto acrescentado na capa dos livros de Kardec parece totalmente equivocada e improcedente, ainda mais se for um slogan carregado de tamanha agressividade como o de "edição antirracista". Talvez não seja ilegal, nos termos estabelecidos pelas normas do direito intelectual, nem constitua adulteração, stricto sensu, já que nenhuma palavra ou parágrafo foi alterado ou excluído, embora alguns textos tenham sido inseridos, pelo que podem considerar atos lesivos de acordo com os princípios da lei moral. É que ninguém está autorizado a agir dessa forma, independentemente da impressão que se tenha de um livro ou de seu autor. Há muitos espíritas que se indignam com o que consideram uma afronta à memória do fundador do espiritismo, e com razão. É fácil inferir que se são edições “antirracistas” então as edições anteriores foram “racistas”, o que francamente é inaceitável.

Se aprofundando nesse assunto, verá que tudo surge de um vício de anacronismo, ou seja, de julgar conceitos expostos em épocas e contextos anteriores de acordo com os ditames que derivam da aplicação de certos valores e de giros semânticos  que respondem aos cânones do presente. Se essa forma de agir fosse aplicada aos milhões de livros que constituem o patrimônio intelectual, cultural e espiritual da humanidade, nenhum passaria no exame ou permaneceria intacto. Desde os textos básicos que informam as diferentes tradições religiosas, até os admiráveis ​​monumentos filosóficos que surgiram no quadro do esplendor cultural helênico, e continuando com as inúmeras criações do intelecto humano em todos os tempos, nenhuma obra estaria exonerada de ser publicada com algum slogan que esteja de acordo com as exigências do que hoje é considerado "politicamente correto".

Nos perguntamos. Quantos slogans poderiam ser colocados na capa das novas edições da Bíblia se nos ativermos à enorme carga de racismo, homofobia, violência e discriminação que é fácil encontrar em inúmeros versos entre a variedade de livros que a compõem? Também valeria a pena conjeturar se as obras de Platão, Aristóteles ou outros clássicos gregos deveriam ser publicadas com o aviso "edição antiescravagista" por razões bem conhecidas.

Continuando com os trabalhos de Kardec, quem pretender fazer uma nova edição de O Livro dos Espíritos e aceitar como bom o procedimento seguido pelo coletivo EàE, poderá inserir na capa uma expressão altissonante que, a seu critério, ajudaria a esclarecer os leitores. Por exemplo, que tal uma "edição antissexista" ou uma "edição feminista" já que existem conceitos naquela obra que refletem os valores culturais predominantes do século XIX e que são inaceitáveis ​​dados os avanços que foram feitos em a favor do reconhecimento da igualdade entre mulheres e homens. E, continuando na mesma ideia, poderia surgir uma "edição laicista" de O Evangelho segundo o Espiritismo, para propor novas redações sobre aqueles pontos que se prestam a confusão em questões como as descrições antropomórficas de Deus ou o uso repetido de expressões tão inoportunas quanto as punições ou pecados. Imaginemos o tratamento que seria dado a “A Gênesis”, obra em que Kardec se propunha a examinar as teorias científicas de seu tempo em matérias tão sensíveis e mutáveis ​​quanto as que correspondem às investigações da biologia, geologia, astronomia e outras disciplinas, contribuindo com elementos derivados da análise espírita. É mais do que evidente, para qualquer pessoa estudiosa e bem-informada, que várias das teorias que ele considerava corretas foram completamente corrigidas e superadas. A Gênesis seria publicado com um slogan na capa anunciando que é uma “edição científica, corrigida e atualizada”?

E o que dizer da obra O mundo invisível e a guerra, em cujas páginas o admirado pensador Léon Denis conclama o povo francês a se mobilizar para se juntar à defesa militar da pátria contra a invasão dos exércitos alemães e invoca a ajuda de Juana d’ Arc e outros espíritos protetores da Gália para derrotar os "bárbaros alemães". Se fosse publicado atualmente, seria necessário colocar na capa o aviso de que se trata de uma "edição antibelicista" e os textos seriam intercalados com novas redações ou seria mais adequado inserir notas de rodapé nas questões correspondentes esclarecendo que Denis estava escrevendo em 1919 no contexto da primeira guerra mundial?

Paremos de contar. Com o que foi dito basta para deixar claro nosso contundente desacordo com a decisão do coletivo EàE, sem deixar de reconhecer que houve uma compreensível preocupação com os efeitos negativos que poderiam derivar de uma posição crédula e acrítica em relação ao fundador as obras do espiritismo em todas aquelas questões que os avanços científicos e tecnológicos, a terminologia utilizada, bem como os resultados positivos das lutas sociais, aconselham que sejam levados em conta para retificar o que seja necessário e continuar avançando, tal qual  recomendou Kardec.

Já o dissemos e agora reiteramos: a nossa opinião, o espiritismo começou com Kardec, mas não termina com ele, embora, até agora, o estudo de suas obras seja essencial para conhecer e interpretar corretamente os postulados teóricos e experimentais do doutrina que fundou. Não há verdadeiro espiritismo sem Kardec, embora nem todo espiritismo esteja contido em seus livros, nem  tudo o que ele escreveu está vigente. Além disso, a contribuição oferecida por autores encarnados e desencarnados para o enriquecimento do patrimônio cultural do espiritismo não pode ser subestimada. A espiral do progresso marca o rumo seguido pela evolução da humanidade e o espiritismo não deve ficar de fora, mas, ao contrário, deve-se insistir que ele tem muito a contribuir nos campos da filosofia, da ciência, da reflexão ética e suas aplicações morais, com seu enfoque espiritualista e humanista em questões transcendentais como a existência de Deus, a sobrevivência espiritual, a evolução geral do universo, a comunicação permanente entre as humanidades encarnadas e desencarnadas, o progresso eterno através de vidas sucessivas e a cosmovisão de mundo que coloca a vida em na Terra em um contexto universal.

IV – UNIDADE NA DIVERSIDADE

Nós concluímos. É legítimo que haja discrepâncias entre os espíritas na interpretação de diversos assuntos. Afinal, é natural que isso ocorra em torno de uma doutrina que não se sustenta sobre dogmas e no seio de um movimento que não deveria se constituir como uma religião institucionalizada. As divergências podem ser processadas por meio de um diálogo respeitoso e fraterno, com "ouvidos para ouvir", priorizando o substantivo e deixando de lado os adjetivos ou desqualificações.

O certo é que para além das diferentes opiniões que cada um mantenha, prevalecem os valores morais em que todos concordamos. Valores que se resumem em lições de indiscutível vigência e transcendência como as ensinadas por Jesus de Nazaré, “o homem incomparável” como dizia Renan: ame o próximo como a si mesmo; não faças ao outro o que não queres  que façam para ti; que atire a primeira pedra quem está livre de culpa, e só a verdade te libertará. Orientações que nos convocam a  esforçarmos em nosso processo íntimo de superação moral e ao mesmo tempo trabalhar, aqui e  agora, pela construção de um mundo melhor, mais livre, igualitário, equitativo, solidário, fraterno e amoroso; uma sociedade sem racismo ou discriminação sob qualquer pretexto. Conectados em torno dessa aspiração superior, todos nós, espíritas e partidários de qualquer ideologia, podemos dar as mãos e seguir em frente.

 

JON AIZPÚRUA

Tradução para o português – Alexandre Cardia Machado    

     

 

       

 

 

 

 

 

 

 





quinta-feira, 20 de abril de 2023

Racismo e o Espiritismo por Alexandre Cardia Machado

 Racismo e o Espiritismo 

 

Da mesma forma que a sociedade, como um todo, passamos pelo mesmo processo de crítica à literatura, é o caso dos grupos antirracistas, que lutam pela revisão da história, este é um fato recorrente mundo afora e não seria o Brasil um caso diferente.


As obras literárias escritas antes da Segunda Guerra mundial estão sendo criticadas e em muitos casos forçadas a serem alteradas. 


Pessoalmente, quando leio um livro dos anos 80, ou assisto um filme desta época, espero encontrar lá um pensamento desta época. Não me parece que seja necessário escrever, numa nova edição, ou na apresentação de um filme " esta obra representa o modo de pensar da época em que foi produzida" isto é óbvio. No entanto isto atingiu obras de Allan Kardec. 





Não é possível mudar o passado e a mente eurocentrista de escritores do século XIX. 


Podemos e devemos sim escrever artigos novos, ou outros livros que tratem destes fatos. Devemos nos declarar e praticar o antirracismo. Mas existem muitas dúvidas quanto à forma revisora na fonte. 

Os jornais ligados à CEPA estão o tempo todo analisando, criticando e mesmo propondo mudanças na visão espírita. A própria CEPA, juntamente com o CPDoc lançaram a série literária - Livre Pensar- Espiritismo para o Século XXI, atualizando o pensamento com os avanços científicos e sociais.  

No entanto, tempos de indignação são assim mesmo. Passa-se aqui e ali do ponto, entendemos que não com a intenção de adulterar uma obra, mas contextualizá-la, portanto, conviver com notas explicativas, em livros, não parece um problema.  


Nos anos 80, Herculano Pires fez isto, ao traduzir os livros de Allan Kardec na LAKE, adicionou uma série de notas explicativas, não o fazia na forma de revisão, mas sim com o intuito de esclarecer, ou mesmo trazer para o português coloquial do fim do século XX alguns aspectos que podem trair o leitor.

 

Entretanto é inequívoco que Allan Kardec teve sim uma visão científica equivocada na questão dos indígenas e africanos, algo que nós chamamos a atenção, talvez pela primeira vez, já em 1997 no V Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, em Cajamar -SP, no trabalho “O ser humano e a evolução, uma análise pré-histórica”, não por menos este artigo é o mais acessado no blog do ICKS. https://icksantos.blogspot.com/2011/12/o-ser-humano-e-evolucao-uma-analise-pre.html. Parte deste texto está incorporado em nosso livro – Uma breve história do Espírito - num capítulo de mesmo nome. 

 

“A posição de Kardec, ... os selvagens também fazem parte da humanidade e alcançarão um dia o nível em que se acham seus irmãos mais velhos. Mas, sem dúvida, não será em corpos da mesma raça física, impróprios a um certo desenvolvimento intelectual e moral”. (Gênese,1868) 
 
A utilização de técnicas genéticas - ... Com relação às raças existentes atualmente, comparando as amostras coletadas dos mais diversos grupos étnicos, os cientistas verificaram serem pequenas e triviais as diferenças entre as raças. “A cor da pele, por exemplo, é resultado de mera adaptação ao clima – negra na África, para se proteger do sol forte; branca na Europa, para facilitar a absorção dos raios ultravioleta, que ajudam a produção da vitamina D.” (Revista Superinteressante, setembro de 1988). O que nos leva, portanto, a crer que, antes da expansão do homem moderno os nossos ancestrais comuns eram todos negros. (Celso Lima, A Evolução Humana 1990) 


 

Todas as experiências feitas até hoje com seres humanos de diversas origens jamais conseguiram demonstrar a superioridade racial de qualquer tipo sobre os outros, qualquer ser humano, dispondo de condições semelhantes de alimentação e educação, apresentará resultados médios semelhantes em quaisquer testes psicológicos. É evidente que a comparação direta entre um europeu com um índio semicivilizado do interior da Amazônia, dentro de critérios desenvolvidos por europeus demonstrará uma superioridade muito grande a favor dos europeus, mas o inverso ocorrerá se colocarmos um europeu no meio da selva amazônica. 

 
O racismo é uma criação recente, surgida com os grandes descobrimentos, quando por razões econômicas iniciaram-se as escravidões em massa de negros e índios, no século XVI.  

 

Claro está que os seres humanos brancos, de olhos azuis, são oriundos dos primeiros homens modernos, que eram africanos e de pele negra e que as diferenças na inteligência e na posição social ocupada pelas diversas raças, se originam de sua história natural e não da sua história biológica. Somos todos da mesma família originária há 150 mil anos. 

 
O conhecimento sobre este tema avançou infinitamente, com relação ao que se pensava então, em meados do século XIX. Tanto Allan Kardec como qualquer outro estudioso daquele tempo pensariam da mesma forma na sua época.  

 

Isto é mais uma evidência de que precisamos atualizar o conhecimento, principalmente na forma de produção de conteúdo novos e não revisando obras antigas, pois elas em muitos aspectos estão superadas como não poderia ser diferente. Einstein não revisou Newton, simplesmente apresentou uma nova teoria da relatividade. Seguimos estudando as leis de Newton, naquilo nas quais as mesmas se aplicam perfeitamente, quase ninguém estuda Newton na fonte, razão pela qual não se faz necessária nenhuma alteração na mesma. 

 

Por outro lado, defendendo a tese de que Kardec não era racista estrutural, lá atrás no século XIX ele ressaltava que "na reencarnação desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade". Uma ideia muito além de sua época. 



 Extraído do editorial do Jornal Abertura de abril de 2023.


Para ler o exemplar do jornal, clique abaixo é grátis e seguro:


https://cepainternacional.org/site/pt/cepa-downloads/category/31-jornal-abertura-2023?download=230:jornal-abertura-abril-de-2023



segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A doença do racismo persiste, mas não é incurável! - por Roberto Rufo e Silva

 

                                      A doença do racismo persiste, mas não é incurável!

“Ninguém nasce odiando outra pessoa por sua cor da pele, sua origem ou sua religião. As pessoas podem aprender a odiar e, se podem aprender a odiar, pode-se ensiná-las a aprender a amar. O amor chega mais naturalmente ao coração humano que o contrário.”  (Nelson Mandela)

Luís Gonzaga Pinto da Gama foi um Advogado(reconhecido pela OAB em 2015), orador, jornalista, escritor brasileiro e considerado o Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil. Em 21 de Junho de 2020 fez 190 anos do seu nascimento em Salvador na Bahia. Faleceu em 1882 na cidade de São Paulo aos 52 anos de idade.Recomendo uma leitura atenta da biografia desse admirável brasileiro e de sua luta pelos direitos dos negros no nosso país.

Num de seus poemas Luiz Gama escreve "em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor, é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade".

Esse poema é um manifesto que revela a inquietude e a sua luta contra o racismo. Luiz Gama sem dúvida é um dos maiores abolicionistas da história brasileira. Lembrei-me de sua história e circunstâncias ao assistir ao em pleno século XXI a cena deplorável do senhor George Floyd sendo barbaramente assassinado por um policial branco nos EUA.

 Num artigo muito interessante escrito na revista Carta Capital o psicólogo, educador e um dos idealizadores do movimento de espíritas pelos direitos humanos Franklin Félix reafirma algo que deveríamos saber e praticar cotidianamente. Diz ele que "nós espíritas temos a obrigação moral de lutar contra todas as formas de opressão, em especial aquelas oriundas de raça e cor". O nome que ele dá ao seu artigo é na verdade uma convocação a todos aqueles que têm voz no movimento espírita, e que de alguma forma poderiam se fazer representar nos meios de comunicação. 

Nome do artigo : " O Espiritismo precisa se afirmar antirracista".

No Livro dos Espíritos em sua questão 803 Kardec indaga se todos os seres humanos são iguais perante Deus? Respondem os espíritos: "sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos. Dizeis frequentemente que o sol brilha para todos e com isso dizeis uma verdade maior e mais geral do que pensais". Dessa frase deveria advir para todos nós uma postura antirracista, condenando veementemente qualquer tipo de preconceito, a começar reprimindo aquelas brincadeirinhas ou piadas idiotas envolvendo o povo negro. O Brasil foi o país que mais demorou para abolir a escravidão. Foram 350 anos de infâmia. O mínimo que nós brancos devemos ao povo negro é um pedido de desculpas.

Voltemo ao Livro dos Espíritos agora na pergunta 636 - São absolutos, para todos os homens, o bem e o mal? "A lei de Deus é a mesma para todos; porém, o mal depende principalmente da vontade que se tenha de o praticar. O bem é sempre o bem e o mal sempre o mal, qualquer que seja a posição do homem. Diferença só há quanto ao grau de responsabilidade. 

Em resumo, nunca houve época na história da humanidade que a escravidão pudesse ser considerada "normal", ou  "aceita" socialmente. Nem tampouco admitirmos que conceitos pseudo-científicos sejam incorporados ao corpo teórico espírita ou utilizados como ferramentas de análise da vida em sociedade.

O articulista Franklin Félix relembra o triste episódio do racismo localizado de Allan Kardec que deve nos prevenir contra quaisquer ideias que não trazem a inclusão das pessoas com todas as suas peculiaridades. Ele se refere a um artigo publicado na Revista Espírita em 1862 "Frenologia Espírita e a perfectibilidade da raça negra" e outro texto constante em Obras Póstumas denominado "Teoria da beleza". Em ambos Kardec pisou na bola.

São equívocos que a meu ver não transformam Kardec num ser humano racista, mesmo porque a questão da igualdade na teoria espírita foi plenamente abordada por Kardec e de uma forma bem avançada para a época. O Espiritismo é uma doutrina isenta de preconceitos em seus conceitos principais. Mas todo cuidado é pouco. Por isso,repito,  a postura antirracista deve ser uma norma de conduta. Segundo Franklin Félix, numa frase muito interessante de se refletir, Kardec não era racista, mas Kardec foi racista!

Vejo no mundo de hoje com muita felicidade a participação de um grande número de jovens envolvidos e comprometidos em várias causas sociais, seja em defesa do meio ambiente ou pleiteando acertadamente uma revisão de muitos contextos históricos que possuem uma dimensão nitidamente antissocial. Inclusive com a derrubada de estátuas homenageando títeres da história. Fiquei particularmente feliz com a queda da estátua do pusilânime Rei Leopoldo II da Bélgica, se espatifando no chão. Esse genocida participou da colonização do Congo Belga, e foi diretamente responsável por milhares de assassinatos. E ainda diziam que ele estava levando a civilização à África.

Jaci Regis sempre dizia que o espiritismo tinha como guia moral Jesus de Nazaré e não o Jesus Cristo que foi sequestrado pelos templos, igrejas e muitos centros espíritas. Jesus de Nazaré concebido de uma relação sexual normal, nascido de parto natural, um espírito evoluído que ensinou sempre o amor ao próximo e a igualdade de direitos entre os seres humanos como razão para se viver em sociedade e evoluir.

Publicado no Jornal Abertura - junho de 2020

Nota: Artigo originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.

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