DEMOCRACIA: UMA UTOPIA AINDA A SER ALCANÇADA! por Ricardo de Morais Nunes
Temos
defendido ao longo dos últimos tempos a importância dos espíritas pensarem as
questões da política, da economia e da sociedade com vistas a poderem formar
uma consciência mais ampla destas questões, de um ponto de vista filosófico,
não partidário, como é obviamente o caso quando tratamos desses temas no âmbito
do movimento espírita.
Acreditamos
mesmo que tais reflexões podem propiciar aos espíritas um melhor
desenvolvimento de seu pensar político
e social , de um ponto de vista crítico,
tendo em vista a uma melhor participação cidadã, de natureza humanista, nas
diversas sociedades do mundo em que vivem.
Nesse
campo temático se há uma discussão que realmente causa muita divergência, mesmo
entre os espíritas estudiosos, é sobre o conceito de democracia. O que é afinal
democracia? Conceito fundamental que precisa ser aprofundado, pois não basta
dizer que somos a favor da democracia ou que somos contra as ditaduras. É
necessário explicar o que entendemos por democracia.
É
necessário iniciar a nossa reflexão lembrando que o conceito de democracia
remonta à Grécia antiga. A pólis ateniense é o primeiro exemplo de democracia
direta no mundo. Desde esse momento passou a ser comum remontarmos a essa
origem, cantarmos em verso e prosa a democracia que surge em Atenas.
Porém, é necessário irmos além e perguntarmos
como funcionava essa democracia, era realmente democrática a pólis ateniense?
Sabemos que não. Em Atenas apenas o cidadão da pólis tinha direito a se
manifestar na Ágora. A maioria da população era de escravos, mulheres e
estrangeiros que estavam excluídos da participação nos negócios da
cidade-Estado.
A
democracia grega, quando olhamos bem de perto, quando observamos a sua
estrutura, não era tão perfeita assim. Claro que esses defeitos, olhando em
retrospecto, não são suficientes para rejeitamos o grande avanço da proposta
democrática grega.
De
lá para cá muita coisa mudou. Muita água correu debaixo da ponte.
Tivemos
o fim das cidades-Estado na Grécia sucedidas pelas várias dominações imperiais
da antiguidade, o domínio teológico e político da Igreja católica, o poder dos
monarcas, as revoluções políticas contra o poder dos monarcas, o poder dos burgueses,
as revoluções contra o poder dos burgueses. Passamos pelos regimes político-econômicos do
tipo escravocrata, feudal, escravista colonial, capitalista e socialista.
Passamos pela revolução agrícola, industrial e hoje digital.
No
século XX, tivemos, ainda, ditaduras de direita, de esquerda, repúblicas
teocráticas, Estados e legislações de segregação racial, imperialismo moderno, colonialismo,
guerras de intervenção estrangeira, guerras civis, golpes militares e
revoluções.
Como
se não bastasse os fatos acima mencionados, em algumas nações, nas últimas
décadas, infelizmente, tem ocorrido uma relação promíscua entre as instituições
de Estado e a criminalidade comum, o que, sem dúvida, acentua os problemas políticos e sociais,
dificultando, ainda mais, a busca pela concretização dos princípios
democráticos.
Na grande maioria das nações do mundo, hoje,
vivemos no sistema que podemos chamar de democracias liberais, representativas,
de perfil econômico capitalista. Há alguns países que ainda ostentam, com maior
ou menor intensidade, alguns princípios de seu período socialista, mas é
possível contar esses países nos dedos após a dissolução da União Soviética e a
queda do muro de Berlim.
O
comunismo e o socialismo, em nosso tempo, nessas duas primeiras décadas do
século XXI, não são mais ameaças ao sistema capitalista e às democracias
liberais como insistem os ultradireitistas desse nosso momento histórico, que
se utilizam do absurdo e falso argumento da “ameaça comunista” para solapar qualquer
possibilidade de crítica ao capitalismo e a essas democracias.
Enfim,
o que podemos verificar, hoje, é que as democracias liberais ainda são
extremamente incompletas e que não realizam todo o potencial do ideal democrático.
O grande modelo, para muitos, dessa democracia moderna, liberal, são os Estados
Unidos da América.
Porém, se olharmos para a realidade social
destas democracias liberais com “olhos de ver” observaremos que essa democracia
mínima tem sido tão sintonizada com os interesses do capital que muitas vezes
ela se torna uma verdadeira antidemocracia nos países nos quais ela foi
adotada.
E, ainda pior, em nossos dias, mesmo essa
democracia mínima, está sendo atacada com vistas a retrocessos inaceitáveis que
seguem em direção a concepções neofascistas de sociedade que andam de mãos dadas
com teorias e práticas econômicas neoliberais, as quais destroem qualquer ideia
de justiça social ou bem-estar social.
Frequentemente,
a política contemporânea, em seu melhor sentido, como representativa dos
direitos dos cidadãos, tem sucumbido aos interesses do dinheiro, da acumulação
e da riqueza de alguns poucos. Há necessidade, hoje, de realizarmos uma
profunda crítica às sociedades que giram em torno do capital e esquecem o ser
humano.
Devemos, portanto, dizer, em alto e bom som, que,
de um ponto de vista espírita, portanto, humanista, que privilegia o ser ao
invés do ter, os interesses do “mercado”, do capital, das minorias
privilegiadas em termos econômicos, não devem prevalecer sobre os interesses da
sociedade como um todo.
É
necessário, sob esse horizonte alargado de sociedade, voltarmos a acreditar que
os homens e mulheres de nosso tempo, coletivamente, podem construir um destino
político diferente, sendo imprescindível, em nosso entendimento, começarmos a construir
um novo ideal democrático tendo em vista o futuro da humanidade.
Para
esse objetivo é urgente nos descartarmos da ideia, muito útil aos que mandam no
mundo e que estão confortáveis nas situações de injustiça e exclusão dos outros,
de que não há outro mundo possível.
Nesta
linha de raciocínio, devemos ter como premissa fundamental, que a democracia ainda é a grande utopia a ser alcançada.
Nesse sentido, é necessário elevar o nosso conceito de democracia, não nos
contentando, apenas, com as chamadas liberdades formais, aquelas dos direitos e
garantias do indivíduo perante as possíveis arbitrariedades do Estado.
2ª
parte
Não
há que se falar em democracia real sem considerarmos também as necessidades
materiais dos cidadãos. Não é possível falar em democracia em um mundo de
milhões de marginalizados no sentido do acesso aos bens fundamentais ao
desenvolvimento da vida.
É
necessário lembrar que, atentar contra a dignidade material das pessoas no
nível fundamental da sobrevivência digna, é também atentar contra os direitos humanos.
Há países que se dizem “livres” e “defensores da liberdade”, mas que atentam
contra os direitos humanos no sentido do absoluto desamparo às condições
materiais de vida de seus cidadãos. Liberdade para morrer de fome não é
liberdade.
Pensamos
que esta maneira de compreender os problemas políticos e sociais de nosso tempo
corresponde plenamente aos generosos princípios que podemos encontrar em toda a
obra de Allan Kardec, a qual nos convida à permanente transformação individual
e coletiva.
Entendemos que nós, espíritas, podemos
auxiliar o processo de transformação dessa ordem de coisas, em primeiro lugar
denunciando as sociedades que permitem a acumulação de riqueza nas mãos de uns
poucos enquanto milhões, em nossos países e no mundo, se encontram privados do
básico para uma vida digna e decente.
Dessa forma, estaremos dando um primeiro passo
fundamental no enfrentamento dessas situações que é o da conscientização do
maior número de pessoas sobre esse grave problema de nosso tempo. O movimento espírita,
com seus centros e instituições, pode colaborar muito nesse processo, sendo claro que se não o fizer estará
colaborando também, só que em um sentido contrário, favorecendo a alienação,
portanto, o status quo, a exploração.
E,
em segundo lugar, nós espíritas, podemos auxiliar o movimento geral de
transformação social com a nossa participação, sempre pacífica em conformidade
com os princípios de não violência ensinados pelo espiritismo, em todas as instâncias
da palavra, da ação e da manifestação, que nos forem acessíveis no campo das
lutas sociais.
Para
isso, é necessário nos livrarmos dos conceitos superficiais e ingênuos de
democracia e ditadura. É certo que todo espírita minimamente informado dirá,
como um mantra religioso ou como uma verdade metafísica quase que vinda do
alto, que é favorável à liberdade e à justiça social. Claro, não poderia ser
diferente do ponto de vista filosófico-espírita. Isso é de uma evidência
cristalina, mesmo em uma baixa compreensão da filosofia espírita.
Mas
o que devemos ter em mente é que a conquista destes fatores, liberdade e
justiça social, em sociedade, não ocorrerá simplesmente por gratuidade de Deus
ou benevolência dos poderosos. Liberdade e justiça social devem ser
conquistadas através das lutas sociais.
É necessário levar em conta os interesses
materiais em jogo, em uma palavra: a luta de classes. Mesmo que essa luta de
classes, em nosso tempo, tenha adquirido características e peculiaridades
distintas da época em que foi concebida teoricamente.
Sem
uma compreensão dialética da vida social, dos conflitos de interesses em jogo,
das resistências e pressões no campo prático da vida social, não avançaremos um
milímetro nem mesmo na compreensão do que efetivamente acontece em nossas
sociedades contemporâneas. E sem compreender, não conseguiremos contribuir.
É necessário termos claro que as nossas
sociedades capitalistas contemporâneas não estão em conformidade com a ideia de
justiça natural que encontramos nas propostas espíritas. E que só poderemos
realmente ter um conceito mais amplo de democracia quando extinguirmos,
socialmente, economicamente, e politicamente, os abismos materiais entre as pessoas,
que as fazem tão diferentes em suas condições de vida, apesar da mesma
humanidade.
Não se trata de um objetivo fácil, é um
horizonte a ser perseguido por todos que amam a justiça. Os espíritas entre
eles.
Essa
condição de maior igualdade, dará mais amplo sentido, até mesmo, ao processo da
reencarnação dos indivíduos, porque poderíamos perguntar: de que adianta ao
Espírito reencarnar em condições tão desfavoráveis que, muitas vezes, o fazem
sucumbir em relação ao próprio objetivo da reencarnação, que é seu
autodesenvolvimento intelecto-moral em sociedade?
Na atualidade, há estudiosos que afirmam que
vivemos a época do capitalismo pós-fordista, que privilegia a financeirização
da economia ao invés da produção, deixando, portanto, nessa nova fase do
capitalismo mundial, milhões de pessoas no mundo sem ter condições de acesso a
um trabalho ou tendo como perspectiva apenas trabalhos precarizados.
Última
parte
Em O Livro dos Espíritos, publicado em
meados do século XIX, época em que ainda não tínhamos no mundo um capitalismo
tão desenvolvido, encontramos uma interessantíssima antecipação crítica às
subjetividades que giram apenas em torno do capital, da acumulação, do ter.
Tais subjetividades, ao longo do tempo,
acabaram por criar, em uma união de interesses, um sistema, uma estrutura
econômica-social-política, altamente favorecedora do egoísmo pessoal. Assim
respondiam os Espíritos às perguntas de Kardec à época:
Questão 711- O uso dos bens da terra é um
direito de todos os homens? R: Esse
direito é a consequência da necessidade de viver.
Questão 717- Que pensar dos que
açambarcam os bens da terra para se proporcionarem o supérfluo, em prejuízo dos
que não têm sequer o necessário? R:
Desconhecem a lei de Deus e terão de responder pelas privações que ocasionarem.
Em um livro lançado do inicio da década de noventa
do século XX, um teórico político norte-americano, Francis Fukuyama, ao
verificar a queda do muro de Berlim e a decadência da União Soviética, propôs
que a democracia liberal, de perfil capitalista, representava uma espécie de
estágio máximo alcançado pela humanidade, uma espécie de “fim da história” quanto
aos modelos políticos e econômicos que disputaram o século XX.
Várias décadas depois do lançamento da famosa obra,
verificamos que nossas democracias liberais, ao invés de patrocinarem maior
inclusão das pessoas aos seus benefícios, acabaram por acentuar, ainda mais, as
contradições materiais no mundo.
A carência alimentar, o desamparo, a falta de acesso
à saúde, à educação, ao saneamento básico, ao teto, as guerras e intervenções estrangeiras
na soberania dos países e a destruição perversa do meio ambiente por razões econômicas
ainda são uma realidade vivida na pele por milhões em nosso mundo, os quais são
os “perdedores” desse sistema capitalista e dessa democracia liberal que quer
nos convencer que todos seremos “vencedores”.
Acreditamos, portanto, que a história não acabou e
que ainda nos cabe construir modelos políticos, sociais e econômicos,
efetivamente democráticos, que realizem, concretamente, na vida social, os
princípios da liberdade e da igualdade enaltecidos pela filosofia espírita e
por todos os humanistas do mundo. Tememos que se não alcançarmos maiores
patamares de democracia real, estaremos nos encaminhando para a barbárie.
Nota
da Redação: Este artigo será publicado em três partes no Jornal Abertura de setembro, outubro e novembro de 2024.