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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Amelie Boudet - Uma Mulher de Verdade por Eugenio Lara

 Amélie Boudet, Uma Mulher de Verdade Eugenio Lara PENSE – Pensamento Social Espírita

                                                                                2001


 “Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia é que era mulher de verdade” (Ai que Saudades da Amélia, Ataulfo Alves e Mário Lago) 
 Na história do Espiritismo poucas foram as mulheres que se destacaram, seja como intelectuais ou como ativistas. Quase sempre seu papel situa-se num plano bem subalterno, à sombra do marido. Destacam-se mais no campo assistencial, organizando chás beneficen tes, administrando entidades assistenciais ou promovendo eventos promocionais. 
 Não é o caso daquela que se tornou conhecida como a Sra. Allan Kardec. Trata-se de Amélie Gabrielle Boudet. Poucas são as informações que temos sobre essa formidável mu lher. Todavia, as existentes são suficientes para obtermos um razoável perfil, somente com parável a outra grande mulher espírita, de origem espanhola, Amália Domingos y Soler. 
 Em uma conversa informal com uma companheira espírita, sugeri-lhe que escrevesse um artigo sobre a Gaby, como era chamada na intimidade por seu marido, Allan Kardec. Fi quei surpreso quando ouvi uma reação intempestiva a essa sugestão. “A Amélie, nem pen sar! Ela era inexpressiva, prefiro a Amália Soler”. Tentei argumentar, sem sucesso. Realmente, não foi a primeira vez que ouvi tal assertiva. A meu ver, injusta e igno rante. Injusta, porque não corresponde ao importante papel que essa grande mulher de sempenhou na história do Espiritismo. Ignorante, pelo fato de não se conformar à realida de dos fatos que compõem a sua interessante biografia. Mesmo com todos os condicionantes de sua época,
 Gaby demonstrou que não era uma pequeno-burguesa totalmente passiva. Com os atributos e conhecimentos que pos suía, fica difícil imaginá-la apenas fazendo brioches ou preparando um chazinho para o incansável marido. Sua presença, ainda que discreta, foi decisiva na estruturação do Es piritismo, de acordo com depoimentos de pessoas que com ela conviveram, inclusive do próprio fundador da Doutrina. Ao longo do tempo, notadamente após o desencarne de Kardec, Gaby teve desta cada atuação na preservação do movimento espírita nascente. Seu comportamento se aproximou do que poderíamos chamar, sem exagero, do protótipo da Terceira Mulher, segundo a classificação do filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky1, conceituação que analisaremos no final deste breve ensaio.

1 O sociólogo e filósofo francês Gilles Lipovetsky, professor da Universidade de Grenoble, é autor dos livros A Terceira Mulher e O Império do Efêmero (lançados no Brasil pela Companhia das Letras). Tem escrito ensaios, proferido conferências e concedido entrevistas sobre o papel da mulher no contexto da sociedade pós-moderna. 

As poucas informações que podemos colher sobre sua vida encontram-se, inicial mente, em uma conferência transformada em opúsculo2, proferida pelo primeiro biógrafo da história do Espiritismo, Henri Sausse, por ocasião da comemoração do 27º aniversário de desencarne do Bom Senso Encarnado, em 31 de março de 1896, solenidade organi zada pelos espíritas de Lyon, cidade natal de Kardec. Depoimentos de Gabriel Delanne, de Pierre Gäetan Leymarie, informações colhidas dos biógrafos Zeus Wantuil, Canuto Abreu e André Moreil ajudam a compor um panorama, ainda que tímido, do papel desem penhado por Amélie.

Recém-saída da Revolução Francesa, a terra natal de Gaby passava por intensas transformações no campo político, econômico, científico e cultural. A definição das esfe ras pública e privada no campo familiar estava em processo de consolidação, criando as sim um novo formato para a família, de características burguesas, com padrões e valores mais adequados ao novo contexto político e econômico que surgia, deflagrado pela Revo lução Industrial. Novas relações de produção se cristalizam, causando profunda repercus são em todos os campos da cultura.

Tentarei situar a trajetória de Amélie nesse contexto, cuja vida será dividida, apenas para efeito didático, em quatro fases: A primeira como a senhorita Amélie Gabrielle Boudet (1795-1832); a segunda fase como a Sra. Rivail (1832-1857); a terceira (1857-1869) como a Sra. Allan Kardec e a última fase como a viúva Mme. Allan Kardec (1869-1883).

O Público e o Privado

Seguindo uma tendência que já se observava no século 18, no chamado Século das Luzes as mulheres se tornaram parte integrante e indissolúvel da esfera íntima, pri vada. Passaram a ser relegadas a esse “espaço”, confinadas a ele. O espaço familiar passou a ser associado à mulher, submissa ao marido, protetora e educadora da prole, administradora das relações familiares. Cristalizou-se a idéia de que a fragilidade biológi ca e intelecto-moral era parte integrante do universo feminino. A mulher tornou-se símbolo da privacidade familiar.

Se de um lado, com as revoluções burguesas, aboliu-se quase que definitivamente a deferência para com reis e rainhas, de outro, essa mesma deferência ganhou outra co notação, outro significado. Ela agora passa a existir para com o esposo, o pai, o chefe da família e para com os filhos. E também dos filhos com relação aos pais. O pai-rei, todo poderoso, substitui o adorável rei. Até os 25 anos era necessária a aprovação formal do pai para que o filho contraísse núpcias, tradição que sobreviveu até o fim do século.

Acentuou-se a distinção entre a esfera pública e a privada, ao longo de todo o sé culo 19. As mulheres estavam do lado privado e os homens, do lado público, cuja dimen são social as mulheres não tinham acesso, no nível político, profissional, econômico por tanto, inclusive cultural. Havia papéis bem definidos para ambos os sexos. Essa delimita ção entre o dentro e o fora, entre o interior e o exterior, análoga à oposição entre ativo e passivo, exercerá um domínio ideológico em todo esse século. 

Tal idéia era tão forte que influenciou decisivamente determinadas conceituações kardequianas acerca dos direitos e funções entre o homem e a mulher. Os Espíritos que colaboraram com Allan Kardec na estruturação do Espiritismo corroboraram a tese de que cabe à mulher a atuação no espaço privado, enquanto os homens devem cuidar do exterior, do público, do social enquanto componente econômico e cultural. 

Os papéis são muito bem definidos, não cabendo nenhum tipo de inversão que contrariasse uma suposta diferença natural de funções. Kardec reafirma essa idéia ao declarar que as mulheres “só terão a per der na troca, porque a mulher de atitudes muito viris jamais terá a graça e o encanto que constituem a força daquela que sabe ficar mulher. Uma mulher que se faz homem abdica de sua verdadeira realeza: olham-na como um fenômeno”.3 

Sobre o papel que cada um deve desempenhar, não há dúvidas: “É necessário que cada um tenha um lugar determinado; que o homem se ocupe de fora e a mulher do lar, cada um segundo a sua aptidão”.4 

2 SAUSSE, Henri – Biografia de Allan Kardec.

No século 19 a prática política é um atributo exclusivo dos homens. Esse poder po lítico também se estende à esfera familiar. O homem era tratado pela esposa e filhos com deferência extremada, que extrapola o simples respeito contido no 4º mandamento he braico. Ele tem o poder econômico e portanto, político, princípio este respaldado pelas igrejas cristãs. Assim como a Igreja deve ser submissa ao Cristo, a mulher o deve ser ao homem, funcionando como intercessora, segundo o mito da Maria Virgem que intercede piedosamente junto ao Cristo em favor dos pecadores. Cabe lembrar que o dogma da Maria Imaculada surge em meados deste século, dando origem ao culto místico da Maria Virgem, que sobrevive até nossos dias.

A sexualidade estava diretamente vinculada à família. O sexo fora dela era pecamino so, indecente, perigoso para as relações interpessoais e até econômicas, de modo que o homossexualismo e o comportamento celibatário estavam descartados. O celibato fora da esfera religiosa se constituía numa vergonha, num comportamento que deveria ser evitado. Relações homossexuais eram objeto de escárnio e repressão. A família teria de ser heteros sexual, do contrário não seria família, daí toda a repressão que o escritor inglês Oscar Wilde teve de enfrentar por seu comportamento e posturas nitidamente homossexuais. 

 Os casamentos eram de preferência endogâmicos, entre donzelas e homens ma duros, com uma diferença de idade razoavelmente grande. A união matrimonial de um casal, onde o homem fosse bem mais novo que a mulher era execrável, não era de bom tom, um fato repreensível e evitado pela grande maioria. 

A correlação entre o plano econômico, produtivo (público) e o familiar (privado) tam bém se dá mediante o casamento. O matrimônio pode ser um bom negócio, um empreendi mento capaz de conciliar interesses econômicos e privados. Prática essa promovida pelos agenciadores familiares, um corpo casamenteiro composto pelas titias alcoviteiras, parentes próximos, o padre, que articulavam de modo silencioso e sorrateiro, a união arranjada entre casais estranhos entre si, portanto nem sempre desejosos de uma vida a dois.

Na elite eram comuns dois tipos de casamento. Negociantes e empresários que pos suíam posses bem acima de suas futuras esposas e altos funcionários e profissionais libe rais, intelectuais que desposavam mulheres com uma condição econômica bem superior. 

3 KARDEC, Allan – Revista Espírita, julho de 1867, pág. 169.

4 KARDEC, Allan – O Livro dos Espíritos, p. 822-a. 

A chamada família nuclear, formada por pai, mãe e filhos, alcança a sua hegemo nia. Formas outras de relações familiais são consideradas marginais, exóticas e estranhas ao bom funcionamento da família burguesa e cristã. Quase todos os valores que hoje vi venciamos no campo familiar tiveram sua origem no século 19. Ainda nos identificamos com os padrões vivenciados nessa época, mais de um século depois. Não que esse perí odo tenha inventado a chamada família tradicional, pois suas raízes se encontram num certo puritanismo5 de origem renascentista, na Antiguidade, ao tempo dos antoninos6, do estoicismo7 grego e até do judaísmo.

A Senhorita Amélie Gabrielle Boudet (1795-1832)

Amélie Gabrielle Boudet nasceu em Thiais, zona suburbana ao sul de Paris, em 22 de novembro de 1795, num domingo, no período da Revolução Francesa (1789-1799). Era filha de Julien Louis Boudet, 27 anos, “proprietário e antigo tabelião” 8, um homem “bem colocado na vida”9. Segundo o biógrafo e erudito Canuto Abreu, o Sr. Boudet era oriundo de uma famí lia de “renomados intelectuais” 10. “Um rico notário da província” 11. Sua mãe, Julie Louise Saigne de La Combe pertencia a um ramo familiar de “pessoas gradas” 12. 

Flha única, foi educada como todas as mulheres de sua condição econômica, pro vavelmente em colégio interno. Nessa época começaram a se proliferar os internatos de moças entre 15 e 18 anos, pertencentes à elite, onde eram ministradas aulas de educa ção moral e social, a fim de se tornarem raparigas encantadoras e aptas nos salões ma trimoniais da burguesia.

Segundo Henri Sausse, era “professora com diploma de primeira classe"13 e se formou na primeira Escola Normal Leiga, de orientação pestalozziana, situada no Boule vard Saint-Germain, em Paris, cidade onde viveu toda sua vida. Nesse período exerceu a atividade de poetisa e artista plástica, com a produção de obras artísticas, conforme as técnicas tradicionais (pintura à óleo, pastel, carvão e creiom). Foi professora de Letras e Belas Artes. 

5 O puritanismo surgiu no Renascimento e se caracteriza como uma prática moral extremamente rigorosa, fundamentada em rígidos princípios de conduta, inspirados em uma leitura moralista da Bíblia. 

 6 Nome de uma dinastia de imperadores romanos que reinou de 86 a 192 d.C. em um período de paz e prosperidade, muitas vezes chamado pelos historiadores de século de ouro. 

 7 Doutrina filosófica e moral de origem grega que floresceu por volta do século 4 a.C. Seu fundador, o filo sófo Zênon de Citium, pregava a idéia de que a virtude deveria ser fundamentada no conhecimento, sendo a razão o princípio norteador de toda conduta, que deve levar os homens a uma plena harmonia com a natu reza. Segundo essa filosofia, as vicissitudes da vida, a dor, os sofrimentos de toda e qualquer natureza possuem pouca importância diante da verdadeira felicidade, devendo ser suportados com serenidade e abnegação. 

 8 SAUSSE, Henri, Biografia de Allan Kardec, pág.10 

 9 WANTUIL, Zeus, Allan Kardec vol. I, pág. 114. 

10 ABREU, Canuto, O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica e Lendária, pág. 126 

11 Notário, expressão usada pelo sociólogo francês Jacques Lantier em O Espiritismo (pág. 54), designa a figura do escrivão público, do tabelião, responsável pelo registro de escrituras, documentos e o reconheci mento de assinaturas. 

12 Ibid, pág. 126. 13 SAUSSE, Henri, Op.cit. pág. 10. 

No meio cultural, nos saraus artísticos e literários, muito comuns na época, tornou se conhecida como Amélie Boudet. Escreveu três livros: Contos Primaveris (1825), No ções de Desenho (1826) e O Essencial em Belas Artes (1828).

Não há, por enquanto, fotos ou imagens que possam nos dar um visão de sua apa rência física nessa fase de solteira. Henri Sausse afirma que Amélie era “de baixa estatu ra, porém de harmoniosas proporções, gentil e graciosa (...) inteligente e vivaz”14. “Har moniosas proporções” significava, para um francês dessa época, que Amélie seria hoje o tipo de mulher mignon (pequena e delicada), mas conforme os cânones estéticos france ses de então: cintura fina e quadris largos, realçados amiúde por espartilhos, comumente usados em todo o século 19.

Era, como se vê, uma mulher da elite, rica e solteirona, integrada na cultura literária dos salões parisienses. Lecionava por prazer já que não precisava trabalhar para sobrevi ver. Foi, desde cedo, preparada para as chamadas prendas domésticas, como qualquer mulher da burguesia. “Estudar, para uma adolescente da burguesia, significa se preparar para desempenhar seu papel de mulher do lar: cuidar de uma casa, dirigir empregados, ser a interlocutora do marido e a educadora dos filhos. Para isso, não há necessidade de saber latim nem dominar conhecimentos científicos especializados, bastando um verniz de cultura geral, de artes recreativas — música e desenho — e uma formação teórica e prática em economia doméstica — cozinha, higiene, puericultura”.15

Amélie fugiu a essa regra. Mesmo tendo sido educada para ser uma matrona, da quelas grã-finas fúteis e vazias que recheavam os salões de festa de Paris, preferiu seguir outro caminho. Não era feia nem pobre. Seus neurônios funcionavam perfeitamente bem. Antes de conhecer Rivail deve ter partido muitos corações e despertado muita inveja. Sua cultura ia além do verniz próprio das mulheres de seu nível social. O latim era obrigatório; talvez soubesse grego e conhecia bem a língua pátria. Para ter publicado os livros que escreveu sobre Desenho e Belas Artes e lecionar tais disciplinas, teria que ter no mínimo noções de História da Arte, gravura e pintura, conhecimentos de composição, perspectiva, geometria descritiva e talvez analítica. Como educadora, mostrou-se preocupada com a educação da sociedade. Lecionava por prazer.

Sua riqueza, muito provavelmente, deve ter ofuscado o enorme preconceito que havia em relação a mulheres solteiras, balzaquianas, que não conseguiam arranjar um marido. Quando conheceu Denizard Rivail tinha por volta de 35 anos. Sua aparência jovial disfarçava a idade, conforme o relato de biógrafos já citados. No entanto, o preconceito era implacável, ainda mais em se tratando de uma mulher bonita, inteligente e rica. “O celibatário é sempre um homem. Solteira, a mulher é fille ou ‘permanece fille’, ou seja, nada; ou pior, ela se torna uma ‘velha fille’, uma ‘anormal’, uma ‘desclassificada’ (condes sa Dash)”16. A solteirona é um “ser improdutivo”, no entender do grande escritor francês Honoré de Balzac, um crítico impiedoso dos hábitos e costumes burgueses. 

Mas Amélie conheceu Rivail. Eram vizinhos, de condição social semelhante e com os mesmos ideais. Namoraram, casaram e se tornaram companheiros de ideal.

14 Ibidem. 

15 MARTIN-FUGIER, Anne, Os Ritos da Vida Privada Burguesa in “História da Vida Privada” vol. 4, pág. 236. 

16 PERROT, Michel, À Margem: Solteiros e Solitários in “História da Vida Privada” vol.4, pág. 293. 

A Sra. Rivail (1832-1857) 

Muito provavelmente, Rivail e Amélie se conheceram mais ou menos dois anos an tes de se casarem, em algum sarau literário ou reunião social que congregava literatos, artistas e intelectuais. Aos 25 anos, o futuro fundador do Espiritismo gozava de grande prestígio entre a elite intelectual parisiense, como educador e pedagogo.  

Logo após o término de sua formação educacional em Yverdun, Suíça, no Instituto dirigido por Pestalozzi, o jovem Rivail retorna à França e fixa residência em Paris, por vol ta de 1822, com a idade de 18 anos. Em 1823 lança sua primeira obra, Curso Prático e Teórico de Aritmética Segundo o Método de Pestalozzi. Seu interesse pelo magnetismo data dessa época, conforme ele mesmo relata em Obras Póstumas. Fundou em 1825, em Paris, a Escola de Primeiro Grau, instituição laica inspirada nos princípios de seu mestre Pestalozzi, concorrendo com estabelecimentos de ensino religiosos, de orientação cristã, notadamente católica. No ano seguinte funda o Instituto Educacional Técnico, mais co nhecido como “Instituto Rivail”, que funcionou até 1834. O método pestalozziano penetrou na França de forma efetiva através dessa instituição. É aí que entra em cena a doce figu ra da senhorita Boudet.

Também engajada na área educacional, a senhorita Boudet passa a auxiliar Rivail na orientação e administração do Instituto, inclusive financeiramente. Rivail tinha um só cio, o Sr. Denizard, irmão de sua mãe, um boêmio que perdeu em jogatinas os recursos que deveriam ser aplicados no empreendimento. Já casado, Rivail teve que vender o instituto para sanar as dívidas. E, posteriormente, perdeu todo esse capital, obtido com a venda da escola, em função de um empréstimo a um amigo empresário e aventureiro, que mesmo assim abriu falência. Por ironia do destino, Rivail, que pouco entendia de ad ministração financeira e organizacional, teve de ganhar a vida fazendo a contabilidade de empresas. Tornou-se guarda-livros, contador, atividade realmente exótica para um ho mem de ciências e letras.17

Rivail e Amélie casaram-se em 9 de fevereiro de 1832, numa quinta-feira.18 Na cer tidão de casamento consta que o noivo era diretor de instituição de ensino.19 Rivail tinha 27 anos e Amélie, 37. A diferença de idade entre ambos era de quase 10 anos. Todos os biógrafos são unânimes em afirmar que essa diferença etária passava desapercebida, em função da aparência jovial e agradável da agora Sra. Rivail. Parecia até que ela era mais nova do que ele.

Rivail era um homem de média estatura. Segundo Canuto Abreu, tinha 1,65 m, cla ro, de olhos castanhos e penetrantes, sério e compenetrado, mas jovial na intimidade. Mantinha um bigode e cavanhaque, bem típicos para um francês de seu tempo. A descri ção mais detalhada de Gaby, em conformidade com o primeiro relato de Sausse, é de Canuto Abreu:

“Miudinha, graciosa, muito vivaz, aparentava a mesma idade do marido, apesar de nove anos mais velha. Os cabelos crespos e bastos, outrora castanhos, repartidos ao meio e descidos até os ombros, onde as pontas dobradas se prendiam por sobre a nuca num elo de tartaruga, começavam apenas a grisalhar, dando-lhe ao semblante um ar de amável austeridade. As faces cheias, coradas ao natural, quase sem rugas, denotavam trato e boa saúde. A testa larga e alta, encimando sobrancelhas circunflexas, acusava ca pacidade intelectual. Os olhos pardos e rasgados, indicavam sagacidade e doçura. O nariz fino e reto, impunha confiança em seu caráter. Os lábios delicados, prontos a sorrir, ampa ravam seu olhar perscrutador, desarmando prevenções mas exigindo constante respeito”.20

17 LANTIER, Jacques, O Espiritismo, pág. 54. 

18 “Já conhecido e possuindo recursos próprios, casou-se, em 1832, com a professora diplomada Dona Amélie Boudet, preciosa auxiliar que passou a ser, em toda a sua existência, quer no colégio, quer na luta pela vida, quer na sua gloriosa missão social” (ABREU, Canuto, Allan Kardec in revista Metapsíquica, nº 3, agosto/setembro de 1936, pág. 3. 

19 MARTINS, Jorge Damas e BARROS, Stenio Monteiro, Allan Kardec, Análise de Documentos Biográficos, pág. 52.

Mesmo com toda a condição financeira de Gaby e os recursos de Rivail, o casal vi via de forma simples em um modesto apartamento na Rue des Martyres, nº 8, nos fundos do segundo andar de um prédio de quatro pavimentos, contendo quarto, sala, cozinha, escritório e sala de jantar. Quadros à óleo e creiom pintados por Gaby, diplomas e certifi cados obtidos por Rivail, além de objetos de madeira e de bronze e uma vasta biblioteca compunham a decoração do ambiente doméstico. A iluminação era à gás.21

Os dois formaram uma excelente dupla. Partidários da educação não diferenciada para ambos os sexos, fundaram um pensionato de moças no subúrbio de Paris22, atuaram juntos no Instituto Rivail. Seu trabalho como contador servia para garantir as despesas do dia-a-dia. Em função da fortuna de Amélie e aos recursos que suas obras pedagógicas lhe rendiam, Rivail e sua esposa conseguiram manter um padrão de vida bem estável. Seu incansável trabalho pela educação da sociedade prosseguia, na preparação de au las, na redação de manuais e livros pedagógicos, na tradução de textos e livros.

Rivail e Amélie formavam um casal sui generis. Não tiveram filhos. A diferença de idade nunca foi obstáculo para o entendimento cotidiano, que pouco conhecemos. Ambos estavam engajados num projeto educacional, se entendiam bem, dialogavam constante mente, coisa rara entre os casais de seu nível social, mais preocupados com as futilida des próprias da vida burguesa do que com algum tipo de ideal.

Interessante notar que data dessa época o tratamento de “meu bem”, “minha que rida”, “meu amor” entre os casais, em oposição à relação autoritária que sempre marcou o procedimento entre os casais de antanho. “Durante o primeiro quarto do século emerge a reivindicação de um novo casal, mais fraterno e mais unido, que já não esteja separado pelas barreiras do saber, nem embaraçado pelas injunções do confessor. Um novo casal à imagem da sociedade republicana desenhada pelos profetas do novo regime (...). Mari do e mulher adquirem o hábito de tratar-se por ‘querido’ e a jovem esposa não hesita mais em deleitar-se com o erotismo velado dos romances da moda”.23 Rivail chamava Amélie de Gaby, diminutivo de Gabrielle.

20 ABREU, Canuto O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica e Lendária, pág. 127. 

21 Ibidem, págs. 129 e 130. 22 “Casado, em 1832, com a instrutora primária Amélie Boudet, que enfrentou todas as dificuldades que sua condição feminina criara, ele tinha carradas de razões para discordar dessa desigualdade de direi tos, seus esforços em favor da educação feminina não puderam ir além de um pequeno pensionato de mocinhas (demoiselles) que ele e sua mulher fundaram e dirigiram, na zona suburbana de Paris”. (Jor nal Universal L’Illustration, 27º ano, vol. 53 – Paris, Sád. 19, Abril 1869, pág. 237 in Allan Kardec vol. I, Wantuil e Thiesen, pág. 127).

O fato de não terem tido filhos levou muitos estudiosos do Espiritismo, contamina dos pelo fanatismo religioso, a imaginarem que os dois não viviam como um casal normal, ou seja, não transavam, não mantinham relações sexuais. Marlene Nobre, viúva do co nhecido político e espírita Freitas Nobre, é convicta de que o médium mineiro e celibatário Chico Xavier foi a reencarnação de Allan Kardec que, por sua vez, seria a reencarnação do filósofo grego Platão. Diz ela: “Se Platão não se casou, se Chico não se casou, por que teria Allan Kardec se casado?”24 Ou seja, o casamento de Rivail/Amélie era só de mentirinha, pura fachada, um engodo. Marlene chega ao ponto de colocar palavras na boca do médium mineiro: “Allan Kardec não foi casado, de fato, com Amélie Boudet. Hou ve um acordo tácito entre os dois: Amélie, mais velha que ele nove anos, cuidaria de to dos os afazeres domésticos e administrativos, enquanto ele ficaria inteiramente livre para trabalhar pela doutrina. Como você sabe, eles não tiveram filhos”25.

Rivail e Gaby se casaram, como vimos, em 1832. Viveram como marido e mulher 37 anos. O Espiritismo somente surgiria em 1857. Ou seja, num espaço de 25 anos, o casal Rivail — que não conhecia o Espiritismo simplesmente pelo fato de ele não existir ainda — agia como se fossem celibatários. Rivail era então um misógino? 

Não sabemos se um dos dois era estéril. Ter filho com a idade de 37 anos é sem pre uma gravidez de risco, ainda mais para a época, que não possuía o aparato tecnoló gico necessário. Teria o casal Rivail evitado filhos, sacrificando o natural desejo de ter uma prole, em função do trabalho, de seu ideal pela educação? Não sabemos. E seria inútil, tanto quanto inócuo fazer conjecturas a respeito. Com as técnicas atuais, podería mos ter acesso ao DNA dos dois, se fossem exumados, a fim de sabermos o porquê de não terem tido filhos. Para quê, apenas para satisfazer pessoas incapazes de vivenciar o sexo sem culpa? 

Os dois formavam um belo casal. E ao completarem bodas de prata, surge o Espiri tismo, em 18 de abril de 1857. Uma feliz coincidência.

 A Sra. Allan Kardec (1857-1869)

Um novo horizonte surge diante do casal Rivail. O projeto de uma educação volta da para o pleno desenvolvimento intelecto-moral das massas ganha nova amplitude com a fundação do Espiritismo. Gaby permanece firme ao lado do marido e se torna a grande incentivadora do trabalho do agora Allan Kardec. É ele mesmo quem revela a importância que teve sua amável esposa no árduo trabalho de estruturação da filosofia espírita: “(...) minha mulher, que nem é mais ambiciosa nem mais interesseira do que eu, concordou plenamente com meus pontos de vista e me secundou na tarefa laboriosa, como o faz ainda, por um trabalho por vezes acima de suas forças, sacrificando sem pesar os praze res e distrações do mundo, aos quais sua posição de família a tinham habituado”.26  

23 CORBIN, Alain, A Relação Íntima ou os Prazeres da Troca, in “História da Vida Privada” vol. 4, pág. 547. 

 24 GARCIA, Wilson, Chico, Você é Kardec?, pág. 67. 25 Ibidem.

Que trabalho acima de suas forças teria tido Gaby? Com certeza, enquanto Kardec trabalhava até altas horas para depois acordar bem cedo, redigindo a obra de sua vida, sem luz elétrica, sem laptop ou máquina de escrever, sempre de punho, com a pena mo lhada constantemente em um tubo de tinta, ela não teria ficado indiferente, prestando so mente serviços equivalentes a de uma camareira ou comissária de bordo. 

Os seus conhecimentos de letras, do idioma francês, nos levam a pensar que, no mínimo, a revisão dos originais era também feita por ela. Compilação de material, trans crições, trabalho não somente de secretaria, mas relacionado a decisões administrativas, econômicas, conceituais e filosóficas, deveriam fazer parte de suas atividades ao lado do marido. Não é difícil imaginar o diálogo inteligente e produtivo entre os dois, no seu dia-a dia doutrinário e doméstico. Muitas idéias surgiram dali, projetos e temas para livros, para artigos que Kardec elaborava em seu laboratório doutrinário, a Revista Espírita. 

Não ficou à sombra do Bom Senso Encarnado, ainda que tivesse tido uma atuação discreta. Para onde quer que fosse, ela o acompanhava, conforme relato do fiel amigo Alexandre Delanne27. Segundo seu filho, Gabriel Delanne, o lançamento de O Livro dos Espíritos e demais obras se deram, em boa parte, devido ao grande entusiasmo e incenti vo de Gaby. Assim como nas viagens que Kardec fez a partir de 1860. O movimento espí rita francês estava em franco crescimento. Tornou-se necessária a presença do fundador da Doutrina, tendo que sair de seu gabinete em Paris, ausentando-se da direção da Soci edade Parisiense de Estudos Espíritas, de seus afazeres doutrinários, para acompanhar de perto a formação de novos grupos de estudos, de sociedades e instituições espíritas por todo o território francês. Gaby sempre o acompanhava.

No intervalo de uma dessas viagens, o escritor espírita e continuador da obra de Kardec, Léon Denis, nos descreve uma cena extremamente singela e romântica, em texto publicado na Revue Spirite (janeiro de 1923): “No dia seguinte, retornei a Spirito-Villa para fazer uma visita ao Mestre; encontrei-o sobre um pequeno banco, junto a uma grande ce rejeira, colhendo frutos que jogava para a Sra. Allan Kardec, cena bucólica que contrasta va alegremente com esses graves acontecimentos.” 28 

Mais tarde Leymarie irá revelar explicitamente, por ocasião do desencarne de Gaby, a importante atuação que ela teve no trabalho de estruturação do Espiritismo, ao afirmar que “a publicação tanto de ‘O Livro dos Espíritos’, quanto da ‘Revue Spirite’, se deveu em grande parte à firmeza de ânimo, à insistência, à perseverança de Madame Allan Kardec”. 29 Nos últimos dias de sua vida, conta Leymarie, Kardec costumava convi dar os companheiros e amigos de ideal espírita em sua casa, para jantar. Ele desencar nou em 31 de março de 1869, antes de completar 65 anos. Gaby ia fazer 74. Não é tão difícil imaginar como seriam esses momentos de descontração, de intimidade, promovidos pelo idoso casal, com todos reunidos pelos laços do ideal espírita. 

26 KARDEC, Allan, Relatório da Caixa do Espiritismo, Revista Espírita, julho de 1865, pág.161. 

27 Atendendo à solicitação de um espírita que habitava uma aldeia situada a cerca de 20 léguas (132 km) de Paris, Allan Kardec de pronto se dirige para lá, acompanhado de sua esposa. “Sempre pronto quando se tratasse de prestar algum serviço e tendo por princípio que o Espiritismo e os espíritas tudo devem aos hu mildes e aos pequenos, sem demora ele partiu, acompanhado de alguns amigos e da senhora Allan Kardec, sua querida companheira”. (in WANTUIL/THIESEN, Allan Kardec vol. III, pág. 138). 28 LUCE, Gaston, Léon Denis, o Apóstolo do Espiritismo, pág. 27. O jovem Denis tinha então apenas 21 anos. A cena descrita ocorreu em 1867, por ocasião de uma visita de Allan Kardec a Touraine, a fim de passar alguns dias na casa de amigos. Touraine, berço dos celtas gauleses, era e ainda é uma antiga pro víncia da França.

O súbito desencarne do fundador do Espiritismo abalou o movimento espírita francês, ainda que tivesse deixado tudo preparado para a continuidade de sua obra, com a elaboração do Projeto 1868 sobre a estruturação e rumos do movimento espírita, além das condições materiais e jurídicas para o prosseguimento de sua obra. Mas ele tinha ao seu lado a fiel companheira, que ao invés de adotar uma postura passiva, as sumiu efetivamente todos os encargos necessários ao gerenciamento do Espiritismo, na França e no mundo. 

A Mme. Allan Kardec (1869-1883) 

A viúva Mme. Allan Kardec assumiu inteiramente as rédeas do movimento espírita francês, tendo ao seu lado o fiel amigo e companheiro do casal, Pierre Gäetan Leymarie. Logo após o desencarne do fundador do Espiritismo, ela envia à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) um relatório onde descreve as novas condições de funciona mento da obra de seu marido. Pela extensão do relatório, expomos dois itens que consi deramos fundamentais para o entendimento de sua postura diante da enorme responsabi lidade que as circunstâncias lhe reservaram:

1. Todo o excedente dos lucros da venda dos livros e das assinaturas da Revista Espírita, inclusive das operações da Livraria Espírita, seriam doados integralmente à Caixa Geral do Espiritismo.30 Amélie coloca uma condição para que isso se efetuas se: “que ninguém, a título de membro da Comissão Central ou outro, tenha o direito de imiscuir-se neste negócio industrial, e que os recebimentos, sejam quais forem, sejam recolhidos sem observação, desde que ela (Mme. Allan Kardec) pretende tudo gerir pessoalmente, determinar a reimpressão das obras, as publicações novas, re gular a seu critério os emolumentos de seus empregados, o aluguel, as despesas fu turas, numa palavra, todos os gastos gerais”.31 

 2. “A Revista está aberta à publicação dos artigos que a Comissão Central julgar úteis à causa do Espiritismo, mas com a condição expressa de serem previamen te sancionados pela proprietária e a Comissão de Redação32, o mesmo se dando com todas as publicações, sejam quais forem”. (grifo meu).  

  Mme. Allan Kardec assume integralmente a orientação do gerenciamento do patri mônio doutrinário deixado por seu marido. Nada era publicado, nem um artigo, uma bro chura ou livro sequer que não passasse pelo seu crivo. Segundo amigos e companheiros que conviveram com ela até o fim de sua vida, ela lia sem óculos e escrevia, sem tremer as mãos, de modo firme e claro. Característica esta que foi fundamental na defesa contra os interesses de parentes próximos a ela que, após seu desencarne, reivindicaram para si parte do espólio por ela deixado em prol do progresso do Espiritismo, alegando que em função da idade avançada não estaria em condições de decidir os rumos que deveriam tomar seus bens materiais.

29 No dia do funeral de Amélie, diversas lideranças espíritas se pronunciaram, entre elas Leymarie. (WAN TUIL/THIESEN, Allan Kardec vol. III, pág. 159). 

30 A Caixa Geral do Espiritismo era uma espécie de fundo financeiro, fonte de recursos para o gerencia mento das atividades do movimento espírita. 

31 KARDEC, Allan, Revista Espírita, maio de 1869, pág. 152. 

32 A Comissão de Redação era presidida por A. Desliens.

A construção de um dólmen no Cemitério Père-Lachaise, em homenagem a Allan Kardec, lembrança de seu passado druídico e céltico, foi por ela efetuado, com o pleno apoio dos espíritas da Sociedade Parisiense, notadamente de seu novo presidente, o Sr. E. Malet, eleito pouco depois do desencarne do Mestre de Lyon, que já o havia indicado para tal cargo. A Kardequiana continuava sendo publicada, inclusive em diversos idiomas, sempre segundo a supervisão de Gaby. 

Em uma reunião da SPEE, realizada em 3 de julho de 1869, foi fundada a Socie dade Anônima do Espiritismo, que concentraria todas as atividades doutrinárias, segundo o projeto de Allan Kardec. Era uma firma, uma associação comercial com o objetivo de dar continuidade à obra do Mestre. Essa instituição acabou substituindo a SPEE, já car comida por conflitos internos, de caráter moral e ideológico. 

O Espiritismo continuava a crescer em toda a Europa. “Apesar de sua avançada idade, a Viúva Allan Kardec demonstrava um espírito de trabalho fora do comum, fa zendo questão de tudo gerir pessoalmente, cuidando de assuntos diversos, que de mandariam várias cabeças. Graças a sua visão, ao seu empenho, ao seu devotamento sem limites, o Espiritismo pôde crescer a passos de gigante, não só na França, mas também no mundo todo.” 33

Segundo Zeus Wantuil, a partir de 1871 Pierre-Gäetan Leymarie assume a Socie dade Anônima, com a renúncia de Desliens por motivos de grave doença, bem como a Revista Espírita e a Livraria Espírita, que coincidiu com a renúncia de companheiros da administração da Sociedade. Sob a orientação lúcida e serena de Mme. Allan Kardec, Leymarie se empenha na gestão de todo esse empreendimento. Em 1873, a instituição muda para um nome mais adequado: Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec,34 conforme o desejo de Mme. Kardec. Ela freqüentava as reuniões da sociedade todas as sextas-feiras e nunca deixou de participar da solenidade de comemo ração do desencarne de Allan Kardec, em 31 de março, bem como da única data magna que congregava os espíritas franceses, A Comemoração do Dia dos Mortos. Todos os anos ela presidia essa solenidade, onde discursavam diversos oradores e eram recebidas mensagens do mundo dos Espíritos.

Mas o pior estava por vir. Em 1874 a Revista Espírita, dirigida por Leymarie, publi cou diversos artigos sobre a chamada fotografia de Espíritos, obtidas por intermédio dos médiuns Édouard Buguet, francês e Alfred Henry Firman, americano, onde apareciam pessoas ao lado de parentes já desencarnados. Em uma dessas fotos podia se notar a imagem do fundador do Espiritismo ao lado de Mme. Allan Kardec. As fotos eram vendi das pelos médiuns, sem o conhecimento de Leymarie, e algumas delas teriam sido obti das por meios fraudulentos. Por conta dessas fotos instaurou-se, em 16 de julho de 1875,em Paris, um processo judicial que se tornou conhecido como Processo dos Espíritas, movido pelo Ministério Público.

33 WANTUIL/THIESEN, Allan Kardec, vol. III, pág. 156. 

 34 Ibidem, pág. 157.

35 A Federação Espírita Brasileira editou em 1975 uma versão resumida pelo escritor Hermínio C. Miranda, com o título Processo dos Espíritas. 36 LEYMARIE, Marina, Processo dos Espíritas, pág. 54.

Nem mesmo a idade avançada e o respeito que Mme. Allan Kardec desfrutava pelo seu trabalho na Doutrina foram suficientes para evitar a violência e o escárnio do Juiz Mil let, durante o interrogatório.

— Onde foi que ele arranjou esse nome? Num “grand grimoire” (grimório, manual de magia negra). — (...) 

 — Conhecemos as origens dos livros do seu marido. Ele os retirou principalmente de um “grand grimoire” de 1852, de um livro intitulado: “Alberti ... etc”. 

 — Todos os livros de meu marido – afirma a senhora Kardec – foram criados por ele, com a ajuda dos médiuns e das evocações. Nada sei desses livros que o senhor acaba de citar. 

Em seguida o Juiz se diz profundo conhecedor da Doutrina Espírita e procura ri dicularizar o pseudônimo de Rivail e o túmulo em forma de dólmen, erigido em sua homenagem.

— Acho que não se deveria brincar com essas coisas. Não é próprio rir-se de coi sas semelhantes.

 — Não gostamos de pessoas que tomam nomes que não lhes pertencem, de es critores que pilham obras antigas, que enganam o público. 

 — Todos os literatos – responde Madame Kardec – adotam pseudônimos. Meu marido jamais pilhou coisa alguma. — Ele é um compilador, não é um literato. É um homem que praticava a magia negra ou branca. Vá sentar-se.37

Mme. Allan Kardec estava com 80 anos. Como se vê em seu depoimento, a idade avançada não foi obstáculo para que permanecesse firme diante das acusações feitas ao fundador do Espiritismo. Insatisfeita com o tratamento que recebeu do truculento Juiz, ela redige um protesto que foi incluído nos autos do processo:

“Declaro que o Senhor Presidente da Sétima Câmara Correcional não me deixou livre para bem desenvolver o meu pensamento, pois, em meu interrogatório introduziu refle xões estranhas ao debate e desejou ridicularizar o Senhor Rivail, conhecido como Allan Kardec, fazendo dele um simples compilador e negando seu título de escritor. Protesto energicamente contra essa maneira de interrogar e solicito ser ouvida novamente, por que é costume na França respeitar as senhoras, sobretudo quando têm cabelos bran cos. Não se deveria interromper-me e mandar-me sentar, após se terem divertido com o que considero inatacável, ou seja, o direito de ter feito construir um túmulo para o meu companheiro de provações, para o esposo estimado e honrado por homens do mais alto valor.” (grifo meu)38

Até o fim da vida Mme. Allan Kardec era uma referência para todas as decisões que eram tomadas em prol do Espiritismo. Em dezembro de 1882, pouco antes de seu desencarne, concordou plenamente com a fundação de uma sociedade que congregasse espíritas franceses e belgas, bem como a fundação de um periódico intitulado Espiritismo.

37 Ibidem, págs. 72 a 75. 

38 Ibidem, págs. 119 e 120. 

A instituição passa a ser denominada Sociedade dos Estudos Espíritas e que posterior mente se transformaria na União Espírita Francesa. 39 

Amélie Gabrielle Boudet desencarnou em 21 de janeiro de 1883, aos 87 anos, num domingo. O sepultamento foi feito de forma simples, segundo seu desejo, em 23 de janei ro junto ao dólmen do fundador do Espiritismo, no Pére-Lachaise. A certidão de óbito diz que ela era capitalista (rentière) e faleceu em sua residência, na Avenida de Segur nº 39, às seis horas da manhã.40

Amélie legou ao movimento espírita francês, em testamento, um espólio de 32 imó veis alugados que lhe permitiam uma renda anual de cerca de 10 mil francos e mais um terreno que, inicialmente, fora comprado por Allan Kardec logo no princípio de seu traba lho pela Doutrina. Quase no fim da vida ele contraiu um empréstimo de 50.000 francos para a compra definitiva do terreno de 2.666 metros quadrados, junto ao Crédit Foncier. Era seu desejo transformar essa propriedade numa espécie de comunidade espírita, com asilo para o descanso dos “defensores indigentes do Espiritismo41.” Esse imóvel também foi doada à Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec, segundo relato de Mme. Berthe Fropo, amiga do casal Rivail, em um artigo escrito para o periódico Espiritismo em outubro de 1883. Esse jornal, órgão de divulgação da União Espírita Fran cesa, era dirigido por Gabriel Delanne. O inventariante do testamento de Mme. Allan Kar dec foi o Sr. Levent, que havia sido vice-presidente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em 1869.

Mesmo com todo esse patrimônio, Mme. Allan Kardec levava vida bem simples, cu ja preocupação era toda voltada para a propagação do Espiritismo, sem manter qualquer tipo de ostentação, conforme declaração de sua amiga Mme. Berthe Fropo: 

“Esta propagação não será eficaz a não ser que os livros do mestre (Allan Kardec) sejam baratos, era o desejo de sua viúva. Ela fazia questão, apesar da avançada idade, das maiores privações, a fim de deixar uma imensa fortuna para o Espiritismo, aceitando comprometer a sua saúde, já tão delicada, e de ser tratada como avara para atender ao objetivo que se propôs: o de difundir a instrução moral e intelectual, também, entre os a deptos de baixa renda do Espiritismo, e de engrandecer a obra de seu marido.” 42

Em seu funeral, diversos oradores discursaram rendendo-lhe homenagens e exal tando o seu trabalho incansável e ininterrupto pelo estudo e a divulgação do Espiritismo. O mais preciso e comovente foi o de Gabriel Delanne, que reproduzimos a seguir: 

“A Sra. Allan Kardec foi, verdadeiramente, a mulher forte, segundo o Evangelho. Tornando-se a esposa do grande vulgarizador do Espiritismo, adotou suas idéias. Empre gou todas as suas energias no estudo dos novos princípios; venceu os preconceitos de seu século e de sua educação e se elevou, por sua vontade, até à altura do espírito de nosso Mestre.”

39 LUCE, Gaston, Léon Denis, o Apóstolo do Espiritismo, sua Vida, sua Obra, pág. 74. 

40 MARTINS, Jorge Damas e BARROS, Stenio Monteiro, Allan Kardec, Análise de Documentos Biográficos, pág. 70. 

41 SAUSSE, Henri, Biografia de Allan Kardec, pág. 45 e 46. 

42 MARTINS, Jorge Damas e BARROS, Stenio Monteiro, Allan Kardec, Análise de Documentos Biográficos, pág. 79.

“Ela provou, pela continuidade, pelo profundo apego que manteve por nossa ma neira de ver, que o Espiritismo havia penetrado vivamente em seu coração.”

 “Sim, essas grandes e sublimes verdades que nossa filosofia professa lhe deram a coragem de ajudar ardentemente o propagador da nova fé e sustentá-lo nas lutas muitas vezes penosas de apostolado.” 

“A companheira de um homem superior sente quantos deveres particulares lhe ca bem; não somente ela tem, como toda esposa devotada, a tarefa de o cercar de amor e de atenções, porém, tem, além disso, a santa missão de fortalecer sua alma nas horas dolorosas das provas. Deve acalmar os cruéis ferimentos que fazem ao coração dos campeões do progresso o ódio e o sarcasmo. Ela deve encontrar essas boas palavras que são para a alma bálsamos soberanos. Deve, enfim, por sua energia, dar forças ao atleta fatigado.”

“Pois bem, a Sra. Allan Kardec foi essa mulher; não faliu na alta missão que lhe foi confiada.”

“Durante as viagens de seu marido, pela França, ela o cercou com sua solicitude e sua perspicácia, confundindo, muitas vezes, pela segurança de seu julgamento, os que desejavam explorar a bondade tão conhecida do Mestre.”

“Allan Kardec se inspirou em sua inteligência tão justa para a elaboração de suas obras; não as publicou nenhuma, sem a ter consultado e, muitas vezes, aproveitou suas sugestões que a retidão de julgamento de sua companheira fornecia.” 

 “É pois, uma dupla perda que temos neste momento: a de uma mulher de coração, devota às nossas idéias e a de uma colaboradora do homem de gênio que nós recordamos.” 43

Considerações Finais

As poucas informações que temos sobre Amélie Boudet são um claro exemplo de uma deficiência ainda crônica do movimento espírita: a falta de memória, de documen tação. Fazer pesquisa histórica sobre Espiritismo é remar contra a maré, contra a mes quinhez e sectarismo de muitas instituições e federativas espíritas que nem sempre a brem seus arquivos para consulta. Chega a ser absurdo, tanto quanto inaceitável, o fato de uma personalidade do nível de Amélie ainda não ter tido uma biografia à altura de sua importância. Não fosse ela e o Espiritismo teria morrido no nascedouro. Devemos muito a sua firmeza de caráter, bem como a grandes vultos do porte de um Léon Denis, Gabriel Delanne, Leymarie, Bozzano e tantos outros abnegados que dedicaram sua vida à causa espírita.

A fibra com que essa valorosa mulher enfrentou o que se convencionou chamar de Processo dos Espíritas é um grandioso exemplo de tenacidade, coragem e determinação na defesa dos princípios espíritas que professava, da memória de seu marido e do próprio Espiritismo. O zelo e carinho com que cuidou da herança doutrinária de Allan Kardec será sempre algo notável para quem procurar conhecer a sua biografia. 


 43 BODIER, Paul e REGNAULT, Henri, Gabriel Delanne, Vida e Obra, págs. 21 e 22.

Sua condição e comportamento singulares para a época já anunciavam um novo tipo de mulher, que teve suas raízes no século 19. Não há dúvidas de que Rivail e Gaby casaram-se por amor. Fato esse ainda bem recente, pois desde então o que predominava era o casamento realizado por razões econômicas e familiares. O indivíduo, sua liberda de, seus desejos e anseios não tinham tanta importância diante de interesses “maiores”. 

Enquanto estiveram juntos foram companheiros de afeto, de Doutrina, de trabalho, cujo ideal, a educação da sociedade e, posteriormente, o que poderíamos chamar de e ducação espírita, foi o fermento de suas vidas, o leitmotiv, o grande sonho de ver uma sociedade fundamentada em princípios éticos, na liberdade, solidariedade e fraternidade.

Gaby foi o protótipo da Terceira Mulher. Segundo a classificação do filósofo e soci ólogo francês Gilles Lipovetsky, esta seria um traço típico da mulher na sociedade pós moderna. Uma mulher emancipada, livre e com autonomia, liberta dos estereótipos da Primeira Mulher, Eva, a sedutora e diabólica fêmea, sinônimo do pecado, responsável pela queda de Adão, e da “Amélia”, a Segunda Mulher, a submissa e abnegada “rainha do lar”. De acordo com Lipovetsky, “a musa da antiguidade era revestida de um poder nega tivo; sua beleza, então, era digna de suspeita, era associada ao abismo, era algo sombrio, que precipitava os homens no calvário e na morte. Hoje, com sua reabilitação pós moderna, a beleza é associada a valores como a juventude, a riqueza, o luxo; foi total mente positivada”.44 

Para entender a situação da mulher no mundo contemporâneo é imprescindível voltar o olhar para o século 19 e o início do século 20, bem mais do que à eclosão dos movimentos feministas surgidos a partir de meados da década de 60, no século passado. Os casamentos deixam de ser fundamentalmente voltados para a procriação, como foi o exemplo do casal Rivail e da escritora francesa e feminista George Sand e Chopin. Sand foi contemporânea de Kardec, se correspondeu com ele e tornou-se uma entusiasta do Espiritismo, tanto quanto Victor Hugo, Victorien Sardou, Teóphile Gautier e tantos outros intelectuais europeus que se viram seduzidos pela filosofia espírita. 

Figuras fulgurantes como a doce e firme Gaby e a combativa e determinada Amália Domingos y Soler se constituem num símbolo de libertação, são um exemplo de que o papel da mulher no estudo, pesquisa e divulgação do Espiritismo tende a extrapolar os limites da esfera privada, doméstica, para se integrar ao campo de atuação cultural, públi ca, social. Ironicamente, apesar de ser Amélia no nome, Gaby foi uma mulher de verdade, não no sentido de submissão e aceitação de sua condição aparentemente frágil, como no conhecido samba de Ataulfo Alves, mas sim uma criatura que combinava a tenacidade com a emoção, o carinho com a determinação, a razão com a intuição, uma mulher que em seu tempo já antecipava pelo seu comportamento e atitudes, o vindouro processo de emancipação feminina, uma das grandes bandeiras do Espiritismo.

44 LIPOVETSKY, Gilles, Entrevista ao caderno Mais! da Folha de S. Paulo, 4 de fevereiro de 2001, pág. 26.

Bibliografia Utilizada

 1. Mais! suplemento do diário Folha de S. Paulo, 4 de fevereiro de 2001 – São Paulo-SP. 

 2. Revista Espírita, Allan Kardec, trad. Julio Abreu Filho, EDICEL – São Paulo-SP. 

 3. Gabriel Delanne, Vida e Obra, Paul Bodier e Henri Regnault, Ed. Centro Espírita Léon Denis – Rio de Janeiro-RJ. 

 4. O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, trad. J. Herculano Pires, Edicel – São Paulo-SP. 

 5. Chico Você é Kardec? A Verdade Sobre Chico Xavier e o Retorno de Allan Kardec, Wilson Garcia, Eldorado/EME – São Paulo-SP. 

 6. Allan Kardec, Análise de Documentos Biográficos, Jorge Damas Martins e Stenio Monteiro de Barros, Lachâtre – São Paulo-SP. 

 7. Biografia de Allan Kardec, Henri Sausse, LAKE – São Paulo-SP. 

 8. Léon Denis, o Apóstolo do Espiritismo, Sua Vida – Sua Obra, Gaston Luce, Edição Centro Espírita Léon Denis – Rio de Janeiro-RJ. 

 9. Processo dos Espíritas, Madame P.G. Leymarie. Edição resumida por Hermínio C. Miranda, FEB – Rio de Janeiro-RJ. 

 10. Allan Kardec, vols. I, II e III, Zeus Wantuil e Francisco Thiesen, FEB – Rio de Janeiro-RJ. 

 11. O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica e Lendária, Canuto Abreu, Edições LFU – São Paulo-SP. 

 12. Metapsíquica, revista bimestral da Sociedade Metapsíquica de São Paulo – São Paulo-SP. 

 13. O Espiritismo, Jacques Lantier, Edições 70 – Lisboa, Portugal. 

 14. História do Espiritismo, Arthur Conan Doyle, Ed. Pensamento – São Paulo-SP. 

 15. Vida e Obra de Allan Kardec, André Moreil, Edicel – São Paulo-SP. 

 16. A História da Parapsicologia, Massimo Inardi, Edições 70 – Lisboa, Portugal. 

 17. Répertoire du Spiritisme, J.P.L. Crouzet, edição em fac-símile da FEB – Rio de Janeiro-RJ. 

 18. Léon Denis na Intimidade, Claire Blaumard, Ed. O Clarim – Matão-SP. 

 19. História da Vida Privada, da Revolução Francesa à Primeira Guerra, vol. 4, org. Philippe Ariès e Georges Duby, Companhia das Letras – São Paulo-SP. 

 20. A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, Friederich Engels, Global Editora – São Paulo-SP. 

 21. Sobre a Mulher, textos escolhidos de Marx, Engels e Lenine, Global Editora – São Paulo-SP. 

 22. Machistas e Amélias em Extinção, reportagem de Ana Maria Reis no site JF Service (www.jfservice.com.br ) – Belo Horizonte-MG. 

 23. A Tradição da Grande Mãe, artigo de Mirella Faur no site WMulher (www.wmulher.com.br ) – São Paulo-SP. 

 24. Quem Tem Saudade da Amélia, reportagem de Robinson Borges no diário Valor Eco nômico, 9 de março de 2001 – São Paulo-SP. 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Jornal Abertura de novembro de 2024 está disponível em pdf grátis - baixe aqui

 

                    Jornal Abertura de novembro de 2024 está disponível

                                                            Baixe Aqui!!

https://cepainternacional.org/site/pt/cepa-downloads/category/42-jornal-abertura-2024?download=328:jornal-abertura-novembro-de-2024

                                                               Nesta Edição:

* Quatro páginas de cobertura da homenagem do CPDoc, ICKS, CEPABrasil e CEAK de Santos ao colaborador do Abertura e escritor Eugenio Lara, desencarnado em 2024.

* Ecos do 24° Congresso da CEPA em Porto Rico - final

* Cláudia Régis Machado - Pensando a Vida - O que você faz com uma ideia.

* ICKS fez 25 anos -e Quem ganha presente são vocês!

* Alexandre Cardia Machado - Abrindo a Mente - Estudo indica que cães estão evoluindo.

* Roberto Rufo - Fato Espírita - Aristóteles, precursor do Espiritismo laico.

* Milton Medran - Opinião em Tópicos - No trem.

* Notas dos Leitores, Notícias e apoiadores Culturais do ABERTURA.

*Nossa Livraria virtual - onde você pode adiquirir os livros da Editoria ICKS e de outras editoras amigas, além das obras básicas.

* ICKS - Séria Gratuita de livros em pdf - Baixe lá!

* Ricardo M. Nunes - Utopias e Possibilidades - Democracia: uma utopia ainda a ser alcançada.

* Memórias Inesquecíveis - Jaci e Chico anos 70 e um pouco de muitos de nós!


terça-feira, 16 de julho de 2024

Eugenio Lara nos deixa em junho de 2024 - da redação

 

Eugenio Lara nos deixa em junho de 2024

   Foto - Eugenio Lara

Desencarna Eugenio Lara aos 61 anos.

    Difícil perder um companheiro tão inteligente, um pesquisador de primeira linha, tão cedo, com apenas 61 anos. Eugenio faz parte deste jornal Abertura, desde o primeiro número.

 


Cláudia e eu fomos ao velório, conversei com o seu irmão Vicente Lara, Eugenio teve problemas relacionados com o fígado seguido de anemia muito forte. Aos poucos foi complicando resultando em falência múltipla dos órgãos. Alguns dias antes da desencarnação ele falou ao irmão, já com alguma confusão mental que estava sendo tratado pelos irmãos espirituais. Temos certeza de que sim e ele também tinha.

    Eugenio tem uma relação profunda com o ICKS, este relacionamento é bem anterior à própria criação de nosso instituto. Eugenio era responsável pela diagramação dos jornais Espiritismo e Unificação em seus últimos anos e do sucessor Jornal de Cultura Espírita – Abertura. Onde militou por cerca de 10 anos.



Jornal Abertura-maio de 1998 – Eugenio Lara estava no Conselho de Redação e Diagramação e Composição Gráfica

Transcrevo aqui o que entre tantos outros que o homenagearam no WhatsApp da  CEPABrasil, o que escreveu Ademar Chioro:

” Estou triste e muito mexido com a notícia. Eugenio Lara é um querido amigo, com quem convivi intensamente desde a juventude. Foi um líder desde o movimento de mocidades espíritas. Um intelectual espírita, laico, livre-pensador, humanista (seu livro é uma pérola), progressista Arquiteto de formação, jornalista e designer gráfico por gosto e por competência. Produziu muito, e acho o site PENSE, em coautoria com José  Rodrigues, uma das suas mais importantes contribuições.

FOTO - Eugenio e Ademar participando de um painel no SBPE

Escrevia muito. Polemista. Irônico e provocador. Eu o chamava carinhosamente de o “Massaranduba” do espiritismo.

Parte muito precocemente. Vai fazer uma falta imensa. Na primeira fila será recepcionado por Jaci Regis e José Rodrigues. Parte um apaixonado pelo espiritismo. Um autêntico livre-pensador espírita.

Parte o primeiro dos fundadores e um dos mais ativos membros do CPDoc, ainda que andasse meio sumido nos últimos tempos.

Meu abraço amoroso, Eugenio. Até breve!!”

SBPEs

Eugenio participou de todas as edições do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, ele as vezes nem se inscrevia, mas aparecia por lá, adorava uma resenha, ficar próximo ao cafezinho discutindo o espiritismo.

Foto - Eugenio, Ivon Régis, Nazareth e Antonio Ventura em frente à sede do ICKS

Apresentou muitos trabalhos que terminavam em livros publicados ou em formato de ebook.

O ICKS está buscando textos publicados no Abertura e disponibilizando no blog do ICKS - https://icksantos.blogspot.com/; para consultar basta ir a MARCADORES e selecionar Artigos de Eugenio Lara.

Veja abaixo:



Numa das últimas vezes que conversamos pessoalmente, Eugenio disse que sentia falta dos artigos de folego, ou seja, aqueles artigos de duas páginas, as centrais, ainda no tempo do Abertura em papel jornal e formato tradicional.

Bem, esta despedida ocupa duas páginas, uma homenagem a ele, pela sua dedicação ao estudo e pesquisa do espiritismo. Ele era extremamente Kardecista. Vamos sentir muita falta deste nosso amigo.

Alexandre Cardia Machado


Artigo publicado no Jornal ABERTURA de julho de 2024.
Quer ler o jornal completo:



 

 

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Fato Espíria - Inteligência e Simplicidade por Eugenio Lara

Fato Espíria - Inteligência e Simplicidade

Eugenio Lara

NR: uma homenagem a Eugenio Lara

Há pessoas que são espíritas sem que tenham consciência disso. Pensam, sentem e vivenciam ideias e valores que muitos militantes espíritas “velhos de guerra” nem imaginam como fazê-lo, mergulhados que estão em seu próprio egoísmo. Normalmente, esse fenômeno acontece e mostra-se com mais evidência em pessoas que não tiveram, na atual existência, a oportunidade de se instruir, de aprimorar a inteligência através do estudo.



No processo evolutivo, o homem humilde, mas de bom coração, que não teve acesso ao estudo nessa vida, pode estar bem mais perto da perfeição relativa do que o sujeito extremamente intelectualizado, com um quociente de inteligência (Q.I.) altíssimo, mas que se mostra insensível e fechado em si mesmo, quando se trata de abrir seu coração para o outro.

Realmente, o Espiritismo é bem esclarecedor nesse aspecto. Afirmam os espíritos que “o homem simples, mas sincero, está mais adiantado no caminho de Deus do que aquele que aparenta o que não é.” (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, q. 828-a). A arrogância, o despeito e a vaidade tomam conta de suas atitudes, de seu comportamento que, visto sob o ponto de vista moral, mostra-se ridículo e patético. É o que Deolindo Amorim (1906-1984) chama de falsa cultura: “é exibicionista, mas a verdadeira cultura é temperada pela humildade, sem exagero, sem atitudes impressionantes.” (Evangelho e Cultura, em Ideias e Reminiscências Espíritas, Ed. Inst. Maria)

Todas as pompas e trejeitos sofisticados não fazem do homem culto e intelectualizado um verdadeiro homem de bem. Isso não significa, contudo, que devido a esse fato, tenhamos de valorizar a ignorância em detrimento do desenvolvimento intelectual. Como diz Deolindo Amorim no mesmo artigo citado: “ao invés de provocar o orgulho ou a empáfia, como tantas e tantas vezes se diz, a verdadeira cultura cria condições íntimas para a humildade, mas a humildade raciocinada e não a humildade convencional, que encobre a presunção recalcada”.

O Espiritismo nos ensina que o progresso intelectual é incessante, permanente e antecede ao progresso moral. É que o desenvolvimento da inteligência, da razão, abre portas para o desenvolvimento moral. Através do livre-arbítrio o ser humano delibera, exercita seu intelecto e cria situações, dilemas, promove conflitos que exigem decisões, definindo assim caminhos e escolhas morais.

Sem inteligência não há razão. E sem raciocínio não há livre-arbítrio. Não dá para pensar em ética, moral e valores sem a existência do livre-arbítrio. Não há o bem, nem o mal. Haveria apenas um ser que age sem consciência moral, ou o que é pior, age imaginando que está agindo com consciência, mas que, na prática, age como um animal, ainda mergulhado no estado natural.

Na verdade, os maiores obstáculos ao pleno desenvolvimento intelecto-moral são o egoísmo e a vaidade. Enquanto o sujeito permanecer bem no alto do pedestal de sua arrogância, não perceberá o quanto ainda tem que aprender. A sensação de superioridade intelectual ofusca a necessidade interna de progresso. É o sabe-tudo, o metido a sabichão, que não percebe o quanto ainda terá de caminhar para ser considerado um homem sábio.

A propósito, o exemplo do grande filósofo grego Sócrates (469 a.C. - 399 a.C) vem bem a calhar. Quando seu amigo Querefonte disse-lhe que para o Oráculo de Delfos, ele era o homem mais sábio de Atenas, mostrou-se surpreso: “Como posso ser o homem mais sábio de Atenas quando sei tão pouco?” Ao invés de se sentir o “special man”, o “number one” e tirar proveito disso, apenas dizia: “só sei que nada sei”. Essa atitude de humildade, oriunda do autoconhecimento, levou o grande filósofo a um permanente questionamento, à incessante busca da verdade, a se colocar sempre à disposição para debater suas ideias.

Deolindo Amorim tem, portanto, toda a razão quando afirma que “quanto mais culta é a criatura humana, mais humilde ela se torna, porque sabe, e não é mais necessário que alguém lhe diga, que o legítimo conhecimento só tem proveito para o espírito quando não se deixa influenciar pela vaidade, pela arrogância, pelo egoísmo”.

 

Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico e autor do livro Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita.

Artigo publicado em setembro de 2013 no Jornal Abertura

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Encanto, Desencanto e Inquietude - por Eugenio Lara

                             Encanto, Desencanto e Inquietude

 

Eugenio Lara

Nota da redação: Eugenio volta ao mundo dos Espíritos neste 7 de junho de 2024

 



De vez em quando surge em mim, de modo insidioso, um certo sentimento de desinteresse pelo Espiritismo, dentre outras coisas da vida. E sempre fico a me perguntar se é algo passageiro ou permanente, ainda que, no caso, tal sentimento carregue consigo uma razoável dose de desencanto.

Sim, desencanto, talvez seja essa a palavra mais exata, no momento, para definir o que há muito tempo sinto em relação ao Espiritismo. Não chega a ser decepção. Mas, do desencantamento à desilusão, à decepção é um pulo, um mero suspiro.

Todavia, a decepção pode permear os sentidos, o pensamento. Fico então a me perguntar, de modo metafórico: eu falhei com o Espiritismo ou foi o Espiritismo que falhou comigo?

Falsa questão, mas que, em termos poéticos, simbólicos, traduz um certo sentido.

Afinal, que é o Espiritismo senão um movimento social formado por pessoas, por seres humanos encarnados e desencarnados que te inserem numa situação natural de (con)vivência e vicissitude moral, interpessoal?

Por melhor que seja, nenhum ideário jamais será o suficiente para se moldar um laço duradouro, um elo, unir determinado grupo apenas pela comunhão de princípios e objetivos. Há fatores emocionais envolvidos que sempre devem ser considerados. Boas ideias com pessoas sem boa vontade, ambiciosas e de mau caráter não dão certo, não florescem, ainda que estas pessoas sejam aparentemente eficientes no que fazem. É a tal da figueira estéril da parábola evangélica.

Por conta disso, a decepção pode estar sempre presente, como a Espada de Dâmocles sobre nossa cabeça. Porém, há algo que se sobrepõe a tal circunstância: a ternura e a convicção.

Minha inserção no Espiritismo não perdura por fatores interpessoais, mas, sobretudo, por uma forte convicção filosófica, firmada em um tempo de estudo, experiência e leitura, difícil de se mensurar. Não foi da noite pro dia. Isso não significa que não possa sofrer turbulências e abalos sísmicos. Enquanto que a ternura pelo Espiritismo ainda é a mesma, desde o início, como aquele amor à primeira vista, sincero e inocente, que nunca será esquecido, mas que um dia pode acabar, como a paixão fugaz, passageira.

O desencanto é passageiro, fugidio, tanto quanto o próprio encanto, que se não for controlado, trabalhado pode redundar no fanatismo, em posturas fundamentalistas, dogmáticas e sectárias. O encanto desmedido, quando desmorona e se desvanece, quase sempre vira desilusão.

Porque o que sobra mesmo é o senso de dever, o profundo sentir, a paixão permanente, mesmo que adormecida. Pelas ideias. Por um ideal. Por uma forma de ser e estar no mundo que seja ao mesmo tempo livre e sensata, na busca da plenitude inalcançável, ainda que possível, porque o Espiritismo é também uma utopia.

“Lógica, razão e bom senso”, o pálio trinário de Allan Kardec, era sua bússola, a Pedra de Toque. Como os povos celtas, ele gostava do número três: “Trabalho, Solidariedade e Tolerância” também foi seu lema. Sob o ponto de vista intelectual e ético, a referência kardequiana ainda é o melhor antídoto contra qualquer tipo de desencanto, desânimo, de distorção doutrinária ou traição aos princípios nucleares da Filosofia Espírita.

Raramente escrevo em primeira pessoa, no entanto, creio que o momento exige, por isso compartilho com os leitores deste Opinião minha relação aparentemente conflitante e angustiada com a filosofia espírita. A angústia aí é aquele sentimento de algo inacabado, não conhecido. Não se trata daquela ansiedade pueril, incômoda e desagradável, mas, antes de tudo, de uma sinistra inquietude, que o Espiritismo provoca em nós de modo permanente, na medida em que nele adentramos.

Essa inquietude pode e deve ser o motor de propulsão, o estímulo permanente no manejo da ideia espírita, nem sempre tratada pelos próprios espíritas com o devido respeito, seriedade e profundidade que ela exige e merece.

Olho: O que sobra mesmo é o senso de dever, o profundo sentir, a paixão permanente, mesmo que adormecida. Pelas ideias. Por um ideal. Por uma forma de ser e estar no mundo. O Espiritismo é também uma utopia.

 

Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico, é membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e autor, dentre outros livros, de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita - este artigo foi enviado em 2018 aoRedator do jornal Opiniãodo CCEPA e não foi publicado. Milton Medran disonibilizou nesta data 7/06/2024.
Milton Medran, esclarece as razões de não publicar, pois sendo o jornal Opinião um órgão de divulgação da Doutrina Espírita este "desabafo" que poderia ser temporário, não devia ser publicado naquele momento. " Mas acho que a refexão é totalmente apropriada para ser inseriada neste grupo de Whatssap, de pensadores maduros". 
NR: Como nosso blog só é acessado por pessoas que tem maturidade acreditamos que esta"despedida" deveria ser publicada.