sexta-feira, 3 de agosto de 2018

QUAL DEVE SER O PAPEL DOS ESPÍRITAS E SUAS INSTITUIÇÕES PERANTE AS QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS? - por Ricardo de Morais Nunes


XV SIMPÓSIO BRASILEIRO DO PENSAMENTO ESPÍRITA
SANTOS/BRASIL - NOVEMBRO DE 2017



QUAL DEVE SER O PAPEL DOS ESPÍRITAS E SUAS INSTITUIÇÕES PERANTE AS QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS?



Autor: Ricardo de Morais Nunes




Ricardo de Morais Nunes
INTRODUÇÃO

Por ocasião da proposta que fiz aos associados da CEPABrasil, instituição filiada a Associação Espírita Internacional- CEPA, visando a publicação de um manifesto de caráter político e social, não partidário, tratando do atual momento político brasileiro, refleti profundamente sobre o papel dos espíritas e suas instituições no enfrentamento de questões desta natureza. Naquela oportunidade, quando debatemos sobre a oportunidade ou não de um manifesto em nome da CEPABrasil, a maioria dos companheiros se revelaram favoráveis ao posicionamento dos espíritas laicos frente aos problemas brasileiros daquele momento histórico. Alguns poucos companheiros, no entanto, protestaram, de forma um tanto veemente, argumentando que estávamos desvirtuando os objetivos da instituição com aquela iniciativa.
Devo confessar que fiquei um pouco surpreso com a intolerância de algumas reações adversas, porém as considerei dialeticamente, como fazendo parte de um natural processo de discussão de temas que, ao final das contas, devo reconhecer, são polêmicos por natureza. É necessário dizer, no entanto, que o referido manifesto não tinha nada que, a meu ver, não se constituísse ou pudesse se constituir em uma aspiração natural de qualquer espírita brasileiro. Por isto minha surpresa. O manifesto, que foi efetivamente publicado em novembro de 2016, com a colaboração autoral de vários associados da CEPABrasil, defendia, em linhas gerais, um Brasil democrático, soberano, ético e com justiça social.
Acusaram-me à época de trazer minhas próprias paixões políticas para o espiritismo. Entre outras coisas, fui acusado de defensor da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e do PT (Partido dos Trabalhadores), instituições envolvidas nos últimos tempos no centro das polêmicas políticas brasileiras. Não que eu tenha alguma coisa contra a CUT, PT, ou qualquer outra designação partidária de esquerda. Valorizo, como o professor Antônio Candido, a importância das variadas propostas socialistas na história, considero-as “triunfantes”, pois funcionaram e funcionam como importante contraponto ao egoísmo e individualismo do capital. Porém, o que me motivou não foi este objetivo, pois nem mesmo sou filiado a qualquer partido. O que me motivou foi justamente a ideia de que o espiritismo possui um pensamento social generoso
Passei a refletir, por ocasião daquela polêmica, sobre algumas teses muito comuns encontradas no movimento espírita a respeito do envolvimento dos espíritas nas questões políticas e sociais. Uma tese muito frequente é a da neutralidade perante tais questões. Segundo o pensamento de alguns, as instituições espíritas não devem tomar partido.  Esta tese defende que política e espiritismo não se misturam. Assim, os espíritas organizados devem ficar distantes deste tipo de polêmica, sob pena de envolver o espiritismo em questões que não são de sua competência. O máximo admitido pelos adeptos da tese da neutralidade, é que o espírita, enquanto cidadão, participe da vida política se assim o desejar, porém sem envolver as instituições espíritas nestas questões.
Verifiquei, igualmente, ser muito comum a tese de que a evolução moral do homem e, por consequência, da sociedade, ao longo do processo histórico, levará o mundo a um estado melhor de coisas. Indubitavelmente, tal teoria nos conduz a esperança e é dotada de uma lógica intrínseca do ponto de vista kardecista, mas, infelizmente, seu efeito principal é induzir os espíritas a um grau de paciência e passividade infinitas, a fim de aguardar a transformação do mundo pelo aperfeiçoamento de cada homem individual. Em termos práticos, este argumento funciona como justificativa para a não participação dos espíritas e suas instituições em temas políticos e sociais.
Também é muito frequente encontrarmos uma visão conservadora a respeito dos objetivos da reencarnação, a qual muitas vezes é interpretada como uma espécie de pagamento de dívidas do passado, a justificar, portanto, as injustiças sociais. Para muitos espíritas, os que moram nas inúmeras favelas ou comunidades espalhadas pelo Brasil estão “pagando” os erros de vidas anteriores, nas quais foram egoístas e gastaram avaramente sua riqueza. Tal teoria possui característica conservadora e busca legitimar o status quo.
Observei, também, que o espírita, quando toca em problemas de caráter político, normalmente pensa apenas no indivíduo, e quase nunca reflete a respeito das estruturas econômicas e sociais garantidoras das injustiças. Frequentemente, os espíritas não fazem uso de um pensamento sociológico crítico em relação às questões da vida em sociedade e acabam por apostar todas as possibilidades de melhoria do mundo na chamada “reforma íntima”.
Iniciarei o presente artigo fazendo um levantamento exemplificativo de como O Livro dos Espíritos trata algumas questões de caráter político e social. Discorrerei também sobre a posição de um dos mais respeitados pensadores espíritas de todos os tempos, Manuel S. Porteiro, e sua contribuição para melhor equacionamento desta controversa questão. Finalmente, refletirei sobre a necessidade dos espíritas prestarem atenção a uma questão importante de nosso tempo: o ressurgimento do neoliberalismo, sistema de pensamento político-econômico, que pretende o desmonte do chamado Estado de bem-estar social.
O que pretendo com o presente estudo é apenas refletir sobre o melhor posicionamento dos espíritas e, principalmente, das instituições espíritas frente aos problemas da sociedade. Esta reflexão se faz importante porque sabemos que o silencio ou a neutralidade são também formas de tomar partido, por isso precisamos ter claro, principalmente como espíritas laicos, que enxergam valor no adjetivo progressista, qual o melhor caminho a ser seguido: o do silêncio ou do posicionamento.
É necessário esclarecer, entretanto, que o presente artigo não irá defender que as instituições espíritas, centros, federações, associações nacionais e internacionais, atuem como partidos políticos ou que defendam um determinado partido na busca pelo poder político. Entendo que não é este o objetivo do espiritismo. Porém, o espiritismo, enquanto filosofia, possui consequências morais, as quais, necessariamente, se expandem para princípios, valores e práticas da vida social.
Defendo que os espíritas, portanto, devem encontrar um justo equilíbrio, pois se é certo que não devem absorver as demandas de caráter político e social, pois não são efetivamente um partido político, ao mesmo tempo, não devem ficar alienados dos problemas referentes à morada terrestre do espírito encarnado. Entendo que uma postura adequada dos espíritas nestas questões trata-se de uma obrigação moral, principalmente em razão da importância social das instituições espíritas na sociedade brasileira. A verdade é que a sociedade brasileira, onde se encontra o maior movimento espírita do mundo, tem o direito de conhecer o que pensam os espíritas nestes importantes temas.
As associações espíritas brasileiras têm se notabilizado ao longo da história por uma profunda preocupação e atuação de caráter social através dos serviços de beneficência material e da criação de hospitais, escolas, creches, asilos, bem como outras variadas atividades de serviço ao próximo, o que certamente dá a estas instituições legitimidade para pensar e opinar sobre os desenvolvimentos políticos, econômicos e sociais do Brasil.
 O presente estudo, portanto, tem como objetivo maior refletir sobre a importância da participação das sociedades espíritas, enquanto instituições da sociedade civil, nas questões políticas e sociais. Visa defender a necessidade das instituições espíritas se tornarem uma voz de caráter moral, comprometida explicitamente, de modo inequívoco, com os valores da democracia, justiça social, ética, humanismo e desenvolvimento econômico com vistas ao benefício de todos.
 Quanto a participação individual dos espíritas na vida política, parece não haver divergência maior quanto a esta possibilidade. Os exemplos de participação de espíritas na atividade política são inúmeros, inclusive ocupando importantes cargos nas esferas executiva e legislativa. De Bezerra de Menezes a Arthur Chioro, passando por Cairbar Schutel, Eusínio Lavigne e Freitas Nobre, entre tantos outros exemplos, temos uma excelente   amostra de que os espíritas, enquanto cidadãos, já atuam na esfera política há muito tempo.

QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS EM O LIVRO DOS ESPÍRITOS

Muitos espíritas fundamentam a tese da neutralidade em temas de caráter político baseados no estatuto da sociedade parisiense de estudos espíritas, fundada por Allan Kardec, que vedava a discussão de temas políticos em suas atividades. Segundo o artigo primeiro do referido regulamento:
“A Sociedade tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas, e sua aplicação às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas. As questões políticas, de controvérsia religiosa e de economia social, nela são interditadas”
No entanto, o espiritismo foi fundado por Allan Kardec em um período de grandes agitações políticas e sociais. Para termos clareza deste fato, basta lembrar que o nascimento do espiritismo em 1857 situou-se entre a revolução francesa de 1789, com seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, e a comuna de Paris, em 1871, primeira revolução operária a tomar o poder na cidade de Paris, revolução que foi violentamente derrotada.
Quando abrimos, portanto, O Livro dos Espíritos, ali encontramos várias teses de caráter político e social. Se não encontramos um livro partidário no sentido de tomar partido no que diz respeito às disputas pelo poder daquele momento histórico, encontramos uma obra que abrange várias questões relevantes de caráter político e social, próprias daquele período histórico, mas que representam problemas universais ainda vigentes na atualidade.
O Livro dos Espíritos não é um livro metafísico que busca descolar o homem de sua realidade concreta. Observamos na obra inaugural da filosofia espírita a discussão de vários temas importantes. Questões como liberdade de pensamento, igualdade da mulher, direito de propriedade, organização social e muitas outras ali estão presentes através de uma reflexão avançada tanto da parte dos Espíritos quanto de Allan Kardec.
Portanto, é incorreto dizer que O livro dos Espíritos é um livro neutro em questões de natureza política e social. De modo algum. É um livro que se posiciona corajosamente sobre vários assuntos. Por exemplo, a questão da escravidão. Muitos países à época ainda eram escravagistas e o Livro dos Espíritos condena a escravidão. Para bem entendermos a importância deste posicionamento na obra espírita, é necessário termos em mente que a escravidão não era apenas uma questão moral, mas um problema de caráter econômico, ou seja, havia toda uma estrutura econômica em vários países, inclusive no Brasil, assentada sobre a base escravagista. Mas, o espiritismo, em seu livro fundamental, não se omitiu, se posicionou, certamente contrariando interesses poderosos.
Outro exemplo interessante é a visão crítica que encontramos em O Livro dos Espíritos sobre o direito de propriedade. Os Espíritos, em sua visão crítica da propriedade, afirmam, no melhor estilo de Proudhon, que muitas vezes a propriedade é produto “da astúcia e do roubo”. No período de elaboração do espiritismo, século XIX, a França estava no processo inicial de seu desenvolvimento capitalista, no qual a acumulação de bens, muitas vezes a qualquer custo, era o valor social a ser seguido. Mesmo assim os Espíritos criticam a propriedade adquirida em prejuízo dos outros, através da exploração dos mais fracos e da desonestidade. Os Espíritos chegam a falar em “necessário e supérfluo” no que diz respeito a posse de bens materiais. Existe alguma coisa mais anticapitalista do que esta distinção, quando consideramos que o capitalismo nos induz ao consumo do supérfluo?
Kardec e os Espíritos enfrentam várias questões oferecendo um norte para o que podemos chamar de pensamento social espírita. Não é por acaso que ao longo da história do espiritismo surgiram vários pensadores espíritas que refletiram sobre as questões políticas e sociais com profundidade como Léon Denis, Manuel Porteiro, Humberto Mariotti, Herculano Pires e muitos outros.
Infelizmente, o espiritismo ao tornar-se uma religião perdeu muito deste aspecto filosófico combativo, inclusive, em relação as questões da sociedade. O espiritismo tornou-se uma doutrina apolítica, intimista, distanciada das questões da sociedade e do mundo, pela qual se espera a “salvação” nas esferas de “nosso lar” e outras regiões espirituais. E as instituições espíritas, de forma geral, também foram por este caminho. Tornaram-se igrejas e não escolas de pensamento para educação integral do espírito.
Veremos a seguir, nas perguntas de Allan Kardec e nas respostas dos Espíritos, que o espiritismo, desde sua obra inaugural, O Livro dos Espíritos, posicionou-se firmemente em relação a várias questões fundamentais da vida social e claramente tomou partido, visando a construção de uma sociedade humanista, na qual a liberdade e a justiça social se façam presentes.
QUESTÕES TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIAS

684- Que pensar dos que abusam da autoridade para impor aos seus inferiores um excesso de trabalho?
R: É uma das piores ações. Todo homem que tem o poder de dirigir é responsável pelo excesso de trabalho que impõe aos seus inferiores., porque transgride a lei de Deus.

685- O homem tem direito ao repouso na sua velhice?
R: Sim, pois não está obrigado a nada, senão na proporção de suas forças.

685ª - Mas o que fará o velho que precisa trabalhar para viver e não pode?
R: O forte deve trabalhar para o fraco; na falta da família, a sociedade deve ampará-lo: é a lei da caridade.

SOBRE O ACESSO UNIVERSAL AOS BENS

711- O uso dos bens da terra é um direito de todos os homens?
R: Esse direito é a consequência da necessidade de viver...

717- Que pensar dos que açambarcam os bens da terra para se proporcionarem o supérfluo, em prejuízo dos que não têm sequer o necessário?
R: Desconhecem a lei de Deus e terão de responder pelas privações que ocasionarem.

719- O homem é censurável por procurar o bem-estar?
R: O bem-estar é um desejo natural. Deus só proíbe o abuso, por ser contrário à conservação, e não considera um crime a procura do bem-estar se este não for conquistado à expensas de alguém...

SOBRE A PENA DE MORTE

761- A lei de conservação dá ao homem o direito de preservar a sua própria vida; não aplica ele esse direito quando elimina da sociedade um membro perigoso?
R: Há outros meios de se preservar do perigo, sem matar. É necessário, aliás, abrir ao criminoso e não fechar a porta do arrependimento.

SOBRE AS DESIGUALDADES SOCIAIS

806- A desigualdade das condições sociais é uma lei natural?
R: Não; é obra do homem e não de Deus.

808- A desigualdade das riquezas não tem sua origem na desigualdade das faculdades, que dão a uns mais meios de adquirir do que a outros?
R: Sim e não. Que dizes da astúcia e do roubo?

811- A igualdade absoluta das riquezas é possível e existiu alguma vez?
R: Não, não é possível. A diversidade das faculdades e dos caracteres se opõe a isso.

SOBRE A IGUALDADE DE DIREITOS ENTRE HOMENS E MULHERES
817- O homem e a mulher são iguais perante Deus e têm os mesmos direitos?
R: Deus não deu a ambos a inteligência do bem e do mal e a faculdade de progredir?



818- De onde procede a inferioridade moral da mulher em certas regiões?
R: Do domínio injusto e cruel que o homem exerceu sobre ela. Uma consequência das instituições sociais e do abuso da força sobre a debilidade Entre os homens pouco adiantados do ponto de vista moral a força é o direito.

SOBRE A ESCRAVIDÃO

829- Há homens naturalmente destinados a ser propriedade de outros homens?
R: Toda sujeição absoluta de um homem a outro é contrária à lei de Deus. A escravidão é um abuso da força e desaparecerá com o progresso, como pouco a pouco desaparecerão todos os abusos.

SOBRE A LIBERDADE DE PENSAMENTO

833- Há no homem qualquer coisa que escape a todo o constrangimento, e pela qual ele goze de uma liberdade absoluta?
R: É pelo pensamento que o homem goza de uma liberdade sem limites, porque o pen-samento não conhece entraves. Pode impedir-se a sua manifestação, mas não aniquilá-lo.

SOBRE A LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA

837- Qual o resultado dos entraves à liberdade de consciência?
R: Constranger os homens de maneira diversa ao seu modo de pensar, o que é torna-los hipócritas. A liberdade de consciência é uma das características da verdadeira civilização e do progresso.

SOBRE A LIBERDADE DE CRENÇA

838- Toda a crença é respeitável, ainda mesmo quando notoriamente falsa?
R: Toda crença é respeitável quando é sincera e conduz à prática do bem. As crenças reprováveis são as que conduzem ao mal.

SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE

883- O desejo de possuir é natural?
R:Sim, mas quando o homem só deseja para si e para sua satisfação pessoal, é egoísmo.
884- Qual é o caráter da propriedade legítima?
R: Só há uma propriedade legítima, a que foi adquirida sem prejuízo para os outros.

SOBRE O CARÁTER DA VERDADEIRA JUSTIÇA

875- Como se pode definir a justiça?
R: A justiça consiste no respeito aos direitos de cada um.

876- Fora do direito consagrado pela lei humana, qual a base da justiça fundada sobre a lei natural?
R: O Cristo vos disse: “Querer para os outros o que quereis para vós mesmos”. Deus pôs no coração do homem a regra de toda a verdadeira justiça, pelo desejo que tem cada um de ver os seus direitos respeitados. Na incerteza do que deve fazer para o semelhante, em uma dada circunstância, que o homem pergunte a si mesmo como desejaria que agissem com ele. Deus não lhe poderia dar um guia mais seguro que a sua própria consciência.

SOBRE A ORGANIZAÇÃO SOCIAL

930- É evidente que sem os preconceitos sociais, pelos quais se deixa dominar, o homem sempre encontraria um trabalho qualquer que o pudesse ajudar a viver, mesmo deslocado de sua posição. Mas entre as pessoas que não têm preconceitos ou que os põem de lado, não há as que estão impossibilitadas de prover às suas necessidades em consequência de moléstias ou outras causas independentes de sua vontade?
R: numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo, ninguém deve morrer de fome.

MANUEL S. PORTEIRO: UM ESPÍRITA QUE COMPREENDEU A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO POLÍTICA E SOCIAL DO ESPIRITISMO

Manuel Porteiro foi um importante pensador espírita argentino, que viveu na primeira metade do século XX. Foi presidente da C.E.A., Confederação Espírita Argentina, bem como se tornou um filósofo espírita profundo, que deixou sua marca na bibliografia espírita internacional e influenciou pensadores espíritas por todo o mundo.
Não é meu objetivo aqui discorrer sobre a biografia de Porteiro, para esta finalidade indico a excelente obra o “O pensamento vivo de Porteiro” de Jon Aizpúrua, e recomendo, também, um artigo de minha autoria, que pode ser encontrado na internet, no site do CPDoc, cujo título é “Breve estudo comparativo sobre a reflexão socialista de Léon Denis e Manuel Porteiro”, no qual também podem ser encontrados dados biográficos do ilustre pensador argentino.
Na presente reflexão quero destacar apenas que Porteiro foi um espírita de profunda preocupação com as questões sociais. Em vários momentos de sua obra se coloca contra as injustiças do sistema capitalista de produção, visando realizar uma crítica filosófica espírita às questões econômicas, políticas e sociais de seu tempo. Jamais se conformou como uma postura conservadora, pois entendia que o espiritismo deveria ser uma filosofia progressista, inclusive no que diz respeito à postura do espírita no mundo.
Esta característica de Porteiro ficou evidenciada no exercício da presidência da Confederação Espírita Argentina, oportunidade em que se revelou sintonizado com todas as teses progressistas de seu período histórico, bem como em sua brilhante participação, como representante da C.E.A., no congresso de Barcelona de 1934, no qual defendeu duas teses fundamentais: que o espiritismo não era uma religião e que o   espiritismo necessariamente possui preocupações sociológicas. Falarei um pouco sobre a participação de Porteiro nestes dois importantes momentos da história do espiritismo, especificamente sobre suas preocupações sociais.

PORTEIRO NA PRESIDÊNCIA DA C.E.A.

De abril de 1934 a março de 1935, Porteiro exerce a presidência da Confederação Espírita Argentina e se põe a trabalhar intensamente para colocar o espiritismo em um caminho filosófico progressista, a partir da negação do caráter religioso do espiritismo e, ao mesmo tempo, afirmando as profundas consequências morais e sociológicas da filosofia espírita. Trabalhou incansavelmente escrevendo artigos para a imprensa espírita de seu tempo, bem como se colocou a visitar inúmeras sociedades espíritas. Segundo Jon Aizpúrua:
“Porteiro era um incansável mobilizador de opiniões. Quantos estivessem dispostos a ouvi-lo, e aos muitos que não estavam, lhes apresentava um Espiritismo dinâmico e renovador capaz de guiar o mundo para a sua liberação moral, social e espiritual. Ao assumir a presidência da C.E.A. se propôs a visitar a maior quantidade de grupos espíritas que lhe fosse possível e levar mediante conversas públicas sua mensagem esclarecedora”.
Porteiro não via no espiritismo uma filosofia de alienação, de renúncia ao mundo. Acreditava, o ilustre pensador espírita, que o espiritismo tinha um potencial revolucionário, no sentido da mudança do paradigma existencial e social do homem, visando não apenas o conhecimento das questões de além-túmulo, mas também as questões terrenas, sociais. Ainda Aizpúrua nos fala:
“Porteiro com insistência falou do Espiritismo como doutrina revolucionária, querendo dizer com esta palavra que propõe ao homem mudanças radicais em sua maneira de pensar e de atuar. Um Espiritismo que traz como missão revelar a vida no plano espiritual e com a finalidade de melhorar as condições dos seres, agora, no plano material. Opunha-se a uma interpretação distorcida do Espiritismo, apresentado como uma religião, ou como uma ideologia conservadora, alienante, que justifique, em nome do “karma” as desigualdades sociais e adormece os espíritos em uma atitude de inércia ou de cumplicidade, esperando a “salvação”.
A Confederação Espírita Argentina, sob a presidência de Porteiro, lançou, na revista La Idea, de janeiro-fevereiro de 1935, um “programa de ação da C.E.A.”. Este programa de ação foi preparado pela “Mesa Diretiva, lido no Conselho Federal e apresentado à consideração e estudo das sociedades confederadas”. Neste documento, encontramos a proposta de várias ideias interessantíssimas a respeito da natureza do espiritismo, bem como em relação às questões de caráter político e social. Nas “considerações gerais” do referido programa, encontramos a seguinte afirmação preliminar:
“Antes de pontuar plenamente o programa de ação da C.E.A. acreditamos ser imprescindível fazer algumas considerações preliminares que justificariam amplamente a necessidade imperiosa de traçar rumos ao Espiritismo no país, para que este marche pela senda que há de conduzir à realização dos grandes postulados científicos, filosóficos, morais e sociais que surgem da mesma doutrina, dos quais a humanidade tanto necessita nesses momentos importantes de sua evolução”.
Em seu programa de ação a C.E.A., sob a inspiração de Porteiro, define o espiritismo como uma ciência integral:
”Porque abarca todas as fases e manifestações da vida; resume todos os conhecimentos e disciplinas do espírito, como as ciências em geral, filosofia, estética, moral e sociologia; porque estuda o espírito e as relações deste com a matéria, da alma humana no corpo; do homem com os demais seres viventes; do indivíduo com a sociedade; de sua causalidade moral com o determinismo histórico, o meio social e as condições econômicas”.
Quanto ao aspecto sociológico do espiritismo, diz Porteiro e seus companheiros da direção da C.E.A., através do programa de ação:
“Como sociologia o espiritismo encaminha-se para a constituição de um sistema social, sem classes nem privilégios, em que todos os homens possam produzir segundo suas forças e suas aptidões e consumam segundo suas necessidades. Para tão alta finalidade, fundamenta-se nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que postula a doutrina. Seu elevado conceito de solidariedade humana não é compatível com nenhuma classe de despotismo nem de exploração do homem pelo próprio homem”.
Aquele importante documento histórico chega a propor a criação de uma cátedra de sociologia, visando o aprofundamento do estudo das questões políticas e sociais pelos espíritas. Em pleno Brasil de início do século XXI, época de redes sociais e opiniões nem sempre bem fundamentadas, talvez já possamos compreender o quão importante seria esta cadeira de sociologia, com vistas ao aprimoramento dos estudos sociológicos dos espíritas, inclusive, os de nosso tempo. Diz o projeto:
“A C.E.A. patrocinará a criação de uma cátedra de sociologia que consulte todas as questões ou problemas de ordem econômica e social, a partir do ponto de vista objetivo e de acordo com os princípios morais de liberdade, igualdade e fraternidade que postulam o Espiritismo, confrontando e assimilando-os, dentro do conceito espiritista da vida, com as teorias econômicas e sociais daqueles ideais que buscam a realização de uma sociedade melhor”.

A PARTICIPAÇÃO DE PORTEIRO NO CONGRESSO ESPÍRITA INTERNACIONAL DE BARCELONA EM 1934

Manuel Porteiro e Humberto Mariotti, cheios de idealismo, se encarregaram de levar as ideias progressistas da C.E.A. para o congresso espírita de Barcelona, realizado no ano de 1934. Embarcaram entusiasmados em um navio para a Espanha, pensando que suas ideias seriam bem recebidas naquele importante evento internacional espírita. Segundo Jon Aizpúrua: “Em 4 de agosto partem para a Espanha os delegados argentinos. Vão entusiasmados, pensando que seu projeto será bem recebido no Congresso. Em poucos dias saberão de seu equívoco”.
Porteiro, um dos representantes da C.E.A. no congresso de Barcelona, fez um informe detalhado, datado do dia 15 de outubro de 1934, para a presidência da C.E.A. em exercício, na pessoa do Sr. Mario Rinaldini, a respeito dos acontecimentos principais daquele congresso internacional. Em relação a repercussão das teses apresentadas pelos argentinos naquele congresso, principalmente as que dizem respeito a relação entre espiritismo e política, relata Porteiro:
“Alguns congressistas alegaram, contra nossas proposições , o triste argumento de que se tratava de fazer política, que o Espiritismo devia estar afastado dos problemas sociais, justificando que as injustiças e os males reinantes são consequências lógicas e necessárias da lei de causas e efeitos; outros sustentaram que a maneira como se constitui a sociedade economicamente e inclusive o meio social, eram devidos ao  atraso moral dos indivíduos e que o Espiritismo teria por única missão educar os indivíduos nos novos postulados filosóficos e morais de sua doutrina sem intrometer-se na solução dos problemas sociais”.
Porém, Porteiro e Mariotti refutaram a tese de que o espiritismo e os espíritas deveriam ser omissos em relação às questões políticas e sociais. Alertaram que o espiritismo e os espíritas não devem justificar a exploração do homem pelo homem, bem como as injustiças sociais, com fundamento na lei da causalidade espiritual. Neste sentido lemos no relatório de Porteiro:
“Todos esses argumentos foram devidamente refutados por nós demonstrando que é dever do Espiritismo, e por conseguinte dos espíritas, não somente divulgar a doutrina e dizer aos homens que sejam melhores, mas também tratar por todos os meios lógicos, a seu alcance, de modificar a sociedade, fazendo crítica da mesma em tudo que haja de mau e buscando soluções práticas para que o mesmo desapareça; que a lei de causalidade espírita não vem justificar a exploração do homem pelo homem, a injustiça , o crime de guerra e demais desajustes sociais; que a igualdade econômica e social, que nós reivindicamos, em nada contradiz as desigualdades de inteligência, de aptidões e de moralidade”.
Continua Porteiro o seu relatório dando ênfase à importância do estudo da sociologia e do espiritismo. Destaco novamente aqui a brilhante percepção de Porteiro no sentido de indicar a necessidade dos espíritas se dedicarem ao estudo da sociologia. O espiritismo não pode dar conta de tudo. O espiritismo se relaciona com outras áreas do conhecimento em um sentido de complementação. Para os estudos da sociedade, portanto, a sociologia, a história, a economia e outras disciplinas são fundamentais para um maior conhecimento das complexidades sociais:
“Ante estes conceitos reacionários, que estão nas palavras de todos os que defendem o privilégio e as situações vantajosas dos bem-acomodados, expusemos argumentos contundentes e irrefutáveis sustentados pela sociologia moderna e pela doutrina espírita em seu aspecto moral e sociológico...”.
Finalmente, Porteiro alerta em seu relatório que o espiritismo não vem para adormecer os espíritos. Diz ele:
“Temos observado também com profundo desconsolo que muitos dos delegados, com as opiniões que expressaram, têm pretendido fazer do Espiritismo uma filosofia conformista, conservadora e passiva, dando-lhe o significado de uma religião natural, ao que temos contestado com todas as nossas convicções, que o Espiritismo não vem adormecer os espíritos, senão que é um ideal dinâmico que vem despertar as forças morais do homem para que este se coloque ante a cultura e a organização social presentes, com um novo sentido das coisas e não com um sentir arcaico dos espíritos conservadores”.
Importantes pensadores espíritas no mundo contemporâneo alinham-se perfeitamente às concepções avançadas de Manuel Porteiro, apesar de todo o conservadorismo do movimento espírita da atualidade. Um destes pensadores que merece destaque é o professor, escritor, filósofo do direito, Alysson Leandro Mascaro, que fala da necessidade dos espíritas serem críticos da “sociabilidade presente”, sociabilidade esta altamente excludente em termos econômicos da maioria da população. Neste sentido diz Mascaro:
“O espiritismo, lastreado necessariamente em percepções racionais e científicas desde suas raízes pós-iluministas, está no mesmo contexto das mais progressistas posições a respeito da sociedade. Sua perspectiva transformadora, então, representa uma crítica à sociabilidade presente. É preciso compreender tais impasses para poder fazer com que o movimento espírita, no plano teórico e prático, seja vanguarda de crítica, transformação social e superação das explorações presentes. O pensamento social espírita deve se emparelhar com o que de mais radical, fraterno, libertário e pleno o pensamento social geral conseguir vislumbrar, porque o pensamento social espírita e sua prática serão iguais aos melhores pensamentos e práticas que a sociedade tiver de si própria”.

TEMPOS SOMBRIOS

Vivemos nas primeiras décadas do século XXI “tempos sombrios”. A impressão que temos é que as piores ideias conservadoras e reacionárias ressurgiram não apenas no Brasil, mas no mundo. Temos convivido em nosso cotidiano com o ódio de caráter político, com a intolerância religiosa, com o desprezo aos mais pobres, racismo, menosprezo a mulher, ao homossexual, a tentativa de construção de novos muros e mesmo a ameaça de guerra nuclear. As redes sociais, a internet, e todos os brilhantes avanços tecnológicos de nosso tempo, também têm servido à formação de guetos de sectarismo e ódio.
Na atualidade, vivemos um grande conflito entre a política e o poder do grande capital. Após a queda do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, o capital, vencedor, passou a nada temer. Durante quase todo o século XX, o capital temia revoluções comunistas radicais e, por isso, fazia concessões visando atenuar os conflitos. Daí o surgimento, principalmente na Europa ocidental, da segunda metade do século XX, do chamado Estado de bem-estar social, no qual o sistema capitalista fazia concessões importantes em várias áreas sociais visando impedir a revolta dos trabalhadores.
Atualmente, o capital com nada se preocupa, além do seu lucro maximizado. Aliás, no mundo contemporâneo, existe um verdadeiro conflito entre o chamado capital produtivo, que produz empregos, e o capital financeiro, especulativo, que não vive da produção, mas de juros altos. Por outro lado, as empresas multinacionais emigram para os países que pagam menores salários e concedem menos direitos aos trabalhadores. O processo de exploração do homem pelo homem se acentua. Os países do chamado “socialismo real” caíram junto com o muro de Berlim, mas a crítica marxista à exploração promovida pelo sistema capitalista de produção continua válida até nossos dias.
O conflito entre a política e o capital põe em risco a própria ideia de democracia. A democracia pressupõe que todos sejam ouvidos nos processos decisórios de uma nação. Porém, o que ocorre é justamente o contrário. A grande maioria fica excluída das grandes decisões das nações e fica refém do que os detentores do poder econômico nacional e internacional, do que os meios de comunicação dominantes, alta burocracia estatal e parlamentos não representativos dos anseios populares, desejam para os destinos dos países. O povo trabalhador não conta. Não é ouvido e frequentemente desconhece os mecanismos profundos de sua exploração. Muitas vezes faz coro com as opiniões de seu próprio explorador, em razão dos processos de doutrinação ideológica perpetrados pela imprensa.
O humanismo nas políticas de Estado está sendo substituído pela ideia de gestão. A ideia de gestão eficiente dos negócios públicos, porém, não mexe nos interesses dos grandes possuidores do capital. Mexe apenas com os trabalhadores, com os simples. Ataca os direitos trabalhistas, previdenciários, reduz investimentos em educação e saúde para o povo. Não promove o incentivo ao desenvolvimento das micro e pequenas empresas. E tudo isso é considerado por muitos como modernidade. O Estado não pode auxiliar os mais fracos, prega-se a “meritocracia”.
 No entanto, este “Estado mínimo” é apenas para os pobres, porque os muito ricos, através de alianças poderosas, conseguem apoio deste Estado. Nas crises do capitalismo, é aceito naturalmente e sem maiores repercussões que os trabalhadores salvem da falência, com seus impostos, grandes instituições financeiras mal administradas. É um bom exemplo do fraco que ajuda o forte em uma lógica muito questionável.
No Brasil dos últimos anos tem sido veiculado pela imprensa em geral que o problema maior a ser enfrentado em nosso país é a corrupção. De fato, a corrupção é um câncer social que deve ser combatido a todo momento, por todas as nações, pois não é um problema único dos brasileiros. Porém, defendo neste estudo, que talvez o problema maior que enfrentamos neste momento histórico não é o da corrupção, mas sim da ascensão do neoliberalismo que, se não for combatido pelos povos do mundo, levará ao aumento da concentração de renda e riqueza nas mãos de poucos e a exclusão e miséria da maioria. E mais. Corremos o risco de perdermos as conquistas democráticas, pois os interesses do capital estão se sobrepondo aos interesses da democracia.
O grande problema é que vivemos em uma época de domínio econômico e ideológico tão profundo e cruel, que o homem comum, o trabalhador, a dona da casa, o executivo, e mesmo o espírita, acaba por sentir vergonha em sonhar e pensar em um mundo diferente do que hoje temos. A exploração é vista como natural, afinal, como muitos alegam, o mundo sempre foi assim e nunca se transformará. Neste sentido diz Alysson Leandro Mascaro:
“Ainda hoje, perpassa uma vergonha ideológica ao homem comum e ao homem ilustrado, bloqueando-lhes a possibilidade de achar ou imaginar que todos possam dividir a produção, que todos possam ter o que comer, que haja casa, roupa e remédio para todos, enfim. Palavras como fraternidade, justiça social e socialismo, ideologicamente, são tornadas perversas na cabeça das pessoas. São todos ensinados a terem vergonha de sonhar algo neste sentido, que seja novo, que seja diferente da sociedade que conhecemos. Ironicamente, nós não temos vergonha da pobreza angustiante da maioria, da exploração contra os que trabalham ou estão fora do mercado, da miséria dos que não tem remédio nem pão para seus filhos, mas nós somos ensinados a ter vergonha de sonhar e de lutar por um mundo de justiça”.

NEOLIBERALISMO: UM GRAVE PROBLEMA DE NOSSO TEMPO:

Acredito que o fortalecimento do neoliberalismo é a grande questão política e econômica de nosso tempo a ser enfrentada. É algo que precisamos todos nos dedicar a pensar e compreender, pois o que está em jogo é a existência digna da maioria da humanidade, ou melhor, a sobrevivência dos pobres. Está em jogo também o ideal de democracia, pois em sociedades tão desiguais do ponto de vista econômico é verdadeira hipocrisia nos conformarmos com a ideia de que “todos são iguais perante a lei”, preceito que representa apenas e tão somente a igualdade formal, legal, conquistada pelas revoluções burguesas.
Sendo assim, entendo que os espíritas, através dos seus centros, federações e associações diversas, também devem participar desta reflexão de modo a ampliar a sua compreensão de tão grave questão da atualidade. Também cabe aos espíritas, segundo penso, qualificar seu discurso no que diz respeito a este relevante tema de caráter social, e, por consequência, e, certamente, não menos importante, direcionar conscientemente sua práxis na sociedade, visando contribuir para o surgimento de um mundo melhor, mais democrático, não apenas no sentido legal, formal, mas também no sentido material, de oportunidades iguais para todos.
Entendo que não é mais possível aos espíritas participarem desta importante discussão apenas com argumentos de caráter moral. É urgente que tenhamos não apenas uma compreensão ética e espiritual do problema social, que obviamente não deve ser desconsiderada, mas também se faz necessário que os espíritas desenvolvam uma compreensão histórica, filosófica, sociológica e econômica deste tema. É certo que, em última análise, os males sociais residem na alma humana, no egoísmo do homem, mas não podemos parar nossa compreensão e discurso dos problemas sociais apenas nesta afirmativa.
Mas, afinal o que é o neoliberalismo? Felizmente alguns espíritas tem se dedicado a este tema, entre eles está Ademar Arthur Chioro dos Reis, professor, médico sanitarista e ex ministro da saúde, que escreveu um importante artigo cujo título é neoliberalismo x espiritismo, que pode ser encontrado no site do CPDoc. O referido artigo, que ora indico à leitura, nos proporciona uma excelente e necessária reflexão sobre a relação entre espiritismo e neoliberalismo.
Segundo Arthur Chioro: “Neoliberalismo é a ideologia que justifica e defende os princípios do capitalismo, baseado na propriedade privada, na liberdade de empresa, o que significa nenhuma intervenção do Estado na economia. Seu objetivo fundamental é o lucro individual, constituindo-se em expressão máxima do individualismo”.
No neoliberalismo se pensa a liberdade de empresa de forma absoluta, sem quaisquer restrições, cabendo ao empresário decidir o que produzir independentemente das necessidades efetivas da sociedade, baseado apenas em sua perspectiva de lucro. Trata-se de uma concepção de sociedade extremamente individualista que não visa ao benefício de todos os membros do grupo social indistintamente, mas principalmente ao benefício dos detentores dos meios de produção.
O neoliberalismo se opõe a qualquer intervenção do Estado para beneficiar os menos favorecidos da sorte, pois segundo seus ideólogos, as crises econômicas são provenientes da excessiva intervenção do Estado na economia. Os neoliberais buscam como solução a privatização e liberalização total da economia, bem como defendem o desparecimento de importantes programas de seguridade social no campo da saúde, assistência e previdência social. Diminuem ou extinguem programas de construção de moradias populares pelo Estado, atacam as leis trabalhistas alegando modernização na retirada de direitos dos trabalhadores.
Afirma Chioro que: “ o principal objetivo para o neoliberalismo, é maximização dos lucros dos empresários privados (lucro econômico, mesmo que signifique maior exploração). E a este critério estão submetidas todas as necessidades sociais. Para esta corrente, a satisfação das necessidades sociais não conta, o que conta é o lucro. ”
Ainda segundo Chioro: “para o neoliberalismo o mercado pode tudo. Neste sentido, há uma absolutização do mercado e não se leva em conta que o mercado, em parte necessário, mas deixado a seu livre jogo, não é capaz de garantir a satisfação das necessidades fundamentais de toda a população”.
Portanto, é fácil concluir que o neoliberalismo é um sistema político-econômico que privilegia o ter em detrimento do ser, o dinheiro como prioridade em relação às pessoas, o indivíduo em relação ao coletivo, aliás, as pessoas, em tal sistema, tornam-se apenas mais uma mercadoria a vender sua força de trabalho. Quantos aos seus efeitos o neoliberalismo tem promovido, nas palavras de Chioro:
“Políticas governamentais antipopulares que ampliaram a queda do poder aquisitivo dos salários, o desemprego massivo, a desnacionalização dos setores estratégicos da economia, a venda de empresas estatais a preços venais, a falência de milhões de pequenos e médios produtores, tanto rurais como industriais”.
A verdade é que as políticas neoliberais só têm aumentado a concentração de riqueza nas mãos de uns poucos e ampliado as desigualdades sociais, ampliando, portanto, o abismo entre ricos e pobres. O pensamento neoliberal se opõe a qualquer ideia de fraternidade, no sentido da criação de uma rede de proteção social pelo Estado para os cidadãos mais carentes. Qualquer medida de proteção social é tida preconceituosamente como auxílio indevido para aqueles que não querem trabalhar ou que não se esforçam o suficiente.
Tivemos uma boa amostra deste pensamento no Brasil por ocasião do programa do governo brasileiro nomeado bolsa-família. O referido   programa tornou-se uma referência internacional no combate a fome, segundo reconhecimento das Nações Unidas. No entanto, muitos brasileiros, condicionados pela ideologia neoliberal dos meios de comunicação dominantes, apelidaram este programa de “bolsa-esmola”.
Mas, a pergunta inevitável é a seguinte, no que diz respeito a este tema: se o Estado muitas vezes vai em auxílio de grandes corporações financeiras, se muitas vezes perdoa dívidas de grandes detentores do capital, se com frequência empresta dinheiro a grandes capitalistas em condições extremamente favoráveis, por que o Estado não pode auxiliar pessoas que estão na linha da miséria, da fome e do desamparo? Por que chamarmos de vagabundos aqueles que possuem a mais fundamental necessidade humana de se alimentar?
A ideia de solidariedade social, estrutural, organizada pelo Estado, está, portanto, descartada sob os princípios do neoliberalismo. Estamos, portanto, nós, homens e mulheres comuns, condenados a interpretar e a nos submeter às vontades “alienígenas” do chamado mercado, que é mencionado nos meios de comunicação como se fosse uma pessoa real, concreta, a exigir medidas econômicas que garantam e aumentem os seus lucros exorbitantes, sob a enganosa bandeira da eficiência econômica, sem qualquer consideração pelas necessidades fundamentais do povo, que continua explorado e sacrificado.
Neste sentido, Arthur Chioro entende que neoliberalismo e espiritismo são totalmente incompatíveis, diz ele:
“O egoísmo intrínseco ao neoliberalismo é o oposto da fraternidade tal qual concebida na visão espírita e que significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência, indulgência. O neoliberalismo prega “cada um por si”. O Espiritismo proclama: “um por todos e todos por um”. A fraternidade é a base para a realização da felicidade social. Está na primeira linha; sem ela seriam impossíveis a liberdade e a igualdade reais”
. E diz mais Chioro: “O Espiritismo se contrapõe de forma antagônica à concepção neoliberal”.
A ideia de civilização no Espiritismo está ligada ao princípio de que o “forte deve amparar o fraco”. Em outras palavras, na civilização ideal imaginada por Allan Kardec ninguém fica excluído, a liberdade, a igualdade e a fraternidade estão presentes. Não há privilégios. Nesta “sociedade organizada segundo a lei do cristo” imaginada por Kardec será garantido a todos uma existência digna.
É, portanto, de uma lógica cristalina que se o espiritismo se contrapõe a qualquer tipo de ditadura seja ela de esquerda ou de direita, se contrapõe, igualmente, a qualquer tipo de regime político e econômico que se auto intitula liberal, pretensamente democrático, mas que deixa as pessoas morrerem, abandonando-as a própria sorte, sem comida, sem habitação, educação, acesso a saúde pública e aos bens fundamentais da vida.
Em uma época em que não estranhamos que jogadores de futebol e outras estrelas das sociedades capitalistas ganhem milhões em seus contratos, talvez tenha chegado o momento de refletirmos sobre o que é essencial, prioritário, em uma sociedade, a fim de que se possa atender a todos os seres humanos de acordo com suas capacidades e necessidades, mas nunca de modo inferior ao básico da dignidade humana.
Não é possível acharmos normal, por outro lado, que um professor da rede pública de ensino, por exemplo, seja humilhado em suas condições de trabalho, salários, prestígio social, inclusive, sofrendo a violência policial quando reivindica melhores condições de vida, enquanto que alguns pouquíssimos privilegiados na sociedade ostentam na face dos miseráveis sua opulência e prestígio, muitas vezes em total indiferença pelos graves problemas estruturais de nossa sociedade.
Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos, nos fala do ideal de civilização que deve nortear o pensamento dos espíritas, e penso que este ideal de civilização indicado pelo fundador do espiritismo não corresponde aos padrões das sociedades regidas pelo neoliberalismo, as quais pouco se importam com o ser humano, tendo sua atenção voltada apenas e exclusivamente para o lucro sempre maior de alguns poucos. Diz Kardec:
“De dois povos que tenham chegado ao ápice da escala social, só poderá dizer-se o mais civilizado, na verdadeira acepção do termo, aquele em que se encontre menos egoísmo, menos cupidez e menos orgulho; em que os costumes sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a inteligência possa desenvolver-se com mais liberdade; em que exista mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas; em que os preconceitos de casta e de nascimento sejam menos enraizados, porque esses prejuízos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; em que as leis não consagrem nenhum privilégio e sejam as mesmas para o último como para o primeiro; em que a justiça se exerça com o mínimo de parcialidade; em que o fraco sempre encontre apoio contra o forte; em que a vida do homem, suas crenças e suas opiniões sejam melhor respeitadas; em que haja menos desgraçados; e, por fim, em que todos os homens de boa vontade estejam sempre seguros de não lhes faltar o necessário”.



CONCLUSÃO

Muitas pessoas na atualidade ao observarem a situação do Brasil e do mundo têm expressado desanimo e pessimismo em relação a possibilidade de surgimento de um mundo melhor. Muitos dizem que o mundo não tem jeito mesmo. Que a exploração, a injustiça, o sectarismo, a violência, a fome, sempre estiveram presentes desde que o mundo é mundo. Afirmam que é ilusão pensar na possibilidade de transformação das coisas.
De fato, os momentos de pessimismo na atualidade são muitos. Basta assistirmos ou ouvirmos os noticiários diários para rapidamente constatarmos as dificuldades em que a humanidade se encontra. As notícias de refugiados nos espantam, o terrorismo na Europa, a violência nas cidades brasileiras, as crises institucionais do Brasil, a corrupção das altas esferas políticas e empresariais, a degradação de meio ambiente. Enfim, um cortejo de problemas muito difícil para que nós, pequenos cidadãos da vida cotidiana, possamos enfrentar.
Porém, somos espíritas. E este fato deve nos levar a considerar o que o espiritismo diz sobre tais temas.  O espiritismo é otimista, sem perder de vista a complexidade dos problemas sociais. O espiritismo nos fala de evolução, progresso, tanto no sentido intelectual quanto moral. O espiritismo aposta que a sociedade está em permanente transformação. Afirma que a terra já passou por um estado primitivo e que ora se encontra como um mundo de provas e expiações, e que, um dia, se transformará em um mundo regenerado, em direção a patamares mais altos de felicidade.
No entanto, o espiritismo afirma que esta transformação será necessariamente produto da ação humana. Sem dúvida, que existem teorias espíritas que afirmam que almas mais qualificadas, evoluídas, um dia também virão para este mundo, através da reencarnação, com vistas a auxiliar o processo de transformação. Mas, o espiritismo, não é uma filosofia contemplativa, que estimula o homem a aguardar este hipotético momento. O espiritismo é claro, categórico, ao afirmar que os problemas sociais são obra do homem e não de Deus e que a solução de tais problemas, portanto, é de única e exclusiva responsabilidade do homem.
Assim, como espíritas que somos, não podemos perder a esperança. Pelo contrário, conscientes que a reencarnação é uma oportunidade preciosa de construção de nosso destino individual e coletivo, devemos por todos os meios éticos ao nosso alcance lutar pela melhoria de nossa vida individual e coletiva. Devemos acreditar que o mundo não é algo dado, definitivo, mas que é um permanente devir, um vir a ser. E que a força desta transformação está na ação permanente e consciente dos homens.
Acredito que os espíritas e suas instituições podem fazer o papel de “sal da terra”, ou seja, serem agentes de transformação para o surgimento de um mundo melhor. Não consigo compreender a ideia de um espírita conservador, posto que conservador é aquele que quer conservar, que está contente com o que aí está. Pessoalmente, não estou contente com o que aí está, o que quero é um mundo melhor, não apenas para mim, mas para todos.
 No que diz respeito às instituições espíritas desde os centros espíritas às grandes federações acredito que estas instituições têm uma responsabilidade muito importante, não apenas no que diz respeito as atividades próprias do cotidiano dos espíritas, mas também no que diz respeito a ampliação da consciência crítica dos espíritas em relação aos problemas da vida, sejam eles de caráter individual ou social.
De fato, as instituições espíritas podem promover ações práticas, concretas, visando uma participação social dos espíritas em defesa dos grandes valores que o espiritismo postula. Os espíritas e suas instituições podem promover, portanto, grupos de estudos e reflexão sobre questões políticas e sociais, palestras, manifestos e até mesmo passeatas, em favor da paz, da democracia, da justiça social, dos direitos humanos. Enfim, na defesa de todos os valores que estão englobados nas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, ideais defendidos explicitamente nas obras de Allan Kardec.
Certamente que muitos irão continuar a dizer que isto é misturar política com espiritismo. Não pretendo, obviamente, como diria Kardec “violentar consciências”, que cada um continue pensando como deseja. Porém, pessoalmente, não consigo compreender como os espíritas e suas instituições poderiam ser alienados de questões fundamentais da vida social. Penso que isto além de grave omissão, seria um tamanho desperdício de um grande contingente de pessoas que, em sua maioria, tiveram acesso a educação formal, a uma reflexão mais apurada sobre a vida e a sociedade. E por isso possuem potencialidade crítica ou pelo menos deveriam possuir.
 O Brasil nos últimos tempos vive uma onda de ódio e sectarismo. Nós, espíritas, precisamos tomar cuidado para não sermos apanhados por esta onda. Não podemos esquecer nossas grandes tradições de alteridade e humanismo. Não podemos esquecer que nós, espíritas, já fomos vítimas tanto do ódio religioso, lembremos o auto de fé de Barcelona, quanto político, lembremos a ditadura de Franco, também na Espanha. A história nos ensina que o ódio político ou religioso pode acabar na fogueira, na tortura ou no campo de concentração.
 Por outro lado, os meios de comunicação nos últimos tempos têm dado grande repercussão ao problema da corrupção. Certamente que os meios de comunicação dominantes escolhem criteriosamente a pauta de temas que lhes interessam, e que devemos prestar atenção não somente no que eles falam, mas também no que eles calam. É evidente, como já foi dito anteriormente neste artigo, que a corrupção é um câncer que fragiliza o organismo social e deve ser combatido sem trégua.
Porém, defendo nesta reflexão que talvez este não seja o maior problema da vida social brasileira no momento. Entendo que o fortalecimento do neoliberalismo com a sua insaciável busca de destruição do chamado Estado de bem-estar social, que foi uma conquista importante da humanidade no século XX, é o principal perigo que vivem as sociedades do Brasil e do mundo no momento. E este perigo normalmente é silenciado nos principais meios de comunicação.
Finalmente, pensar o neoliberalismo é pensar o capitalismo em sua face mais agressiva. E esta reflexão nos leva necessariamente a uma questão mais profunda. Chegamos ao fim da história? O sistema capitalista de produção é o que de melhor a humanidade pode atingir? Devemos nos conformar com a eterna separação entre uma pequena minoria de incluídos e uma grande maioria de excluídos dos benefícios da civilização? Um dia teremos um mundo sem explorados e exploradores? Neste início do século XXI este mundo melhor é uma utopia, mas muitas vezes a utopia de hoje se torna a realidade de amanhã.
 O espiritismo, por sua vez, nos ensina a ter esperança.
Segue anexo o manifesto da CEPABrasil, publicado em novembro de 2016, assinado por seu presidente Homero Ward da Rosa. Trata-se de um exemplo concreto, atual, de que os espíritas, através de suas instituições, podem se manifestar na sociedade defendendo princípios e ideias generosas para o campo político e social. O manifesto ao seu final defende um Brasil soberano, democrático, ético e com justiça social. Aqueles que acompanham a vida política brasileira dos últimos tempos sabem que estes princípios, todos eles sem exceção, devem ser reafirmados com veemência na atualidade de nosso país.
 Parabéns à CEPABrasil por não ter preferido o silêncio e a omissão.

BIBLIOGRAFIA
       
AIZPÚRUA, Jon. O pensamento vivo de Porteiro-Homenagem ao fundador da sociologia espírita.Ed.C.E. “José Barroso”
DOS REIS, Ademar Arthur Chioro. Neoliberalismo x Espiritismo. www.cpdocespírita.com.br
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.Ed. Lake.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Ed.Ide.
MANIFESTO DA CEPABRASIL. www.cepabrasil.org.br – Anexo ao artigo.
MASCARO, Alysson Leandro. Pensamento social e Espiritismo. www.pedagogia espírita.org.br
MASCARO, Alysson Leandro. Lições de sociologia do  Direito. Ed. Quartier Latin.
NUNES, Ricardo de Morais. Breve estudo comparativo sobre a reflexão socialista de Léon Denis e Manuel Porteiro. www.cpdocespírita.com.br

AUTOR: RICARDO DE MORAIS NUNES. Bacharel em Direito e Lic. em Filosofia. Delegado da CEPA e Presidente do CPDoc- Centro de Pesquisa e Documentação Espírita. Articulista do Jornal ABERTURA.