KARDEC E OS
DESERTORES, por Eugenio Lara
Nota do Redator: Destacamos neste
mês o trabalho apresentado por Eugenio Lara, em 2013 no 13° Simpósio Brasileiro
do Pensamento Espírita, Lara ressalta a dificuldade de manter alinhadas as
diversas personalidades que participaram da construção do Espiritismo.
Daremos ênfase a
dois sub-capítulos, esperamos capturar o sua atenção e para a leitura do
trabalho completo é só visitar o blog do ICKS. Fiquem com Eugenio Lara
***
Nos últimos escritos de Allan Kardec, podemos observar
sua preocu-pação para com os rumos do Espiritismo, com os desertores, com as
divi-sões que o incomodavam. Segundo ele: “Se todas as grandes ideias tiveram
apóstolos fervorosos e devotados, mesmo nas melhores tiveram desertores. Não
poderia o Espiritismo escapar às consequências da fraqueza humana”. (Os
Desertores, em Obras Póstumas). Neste texto, o fundador do Espiritismo
desenvolve interessante caracterização dos vários tipos de desertores:
1. Os primeiros desertores consideravam o Espiritismo
apenas como divertimento, passatempo, distração social. No século 19, com o
modismo das mesas girantes ou dançantes, o Espiritismo como fenômeno ocupava o
tempo da elite nos salões parisienses, atraindo a curiosidade e o interesse
pelo oculto. No entanto, quando essas mesmas pessoas viram que o Espiritismo
era algo sério e não simples objeto de entretenimento, se afastaram.
2. Na segunda categoria se inserem os que viam no
Espiritismo uma forma de ganho pessoal, um negócio vantajoso. Seu desejo era
obter dos espíritos informações que lhes desse algum tipo de benefício: ganhar
na loteria, achar algum tesouro escondido etc. qualquer tipo de vantagem
material, pecuniária. Porém, logo se afastaram quando perceberam que o
Espiritismo emergia como ciência e filosofia, como uma doutrina séria, racional
e, portanto, jamais se prestaria aos seus interesses frívolos. “É destes que
se constitui a categoria mais numerosa dos desertores, mas vê-se perfeitamente
que não se pode, conscienciosamente, qualificá-los de espíritas”, conclui
Kardec.
3. A terceira categoria se caracteriza pela ação dos
espíritas de contrabando (spirites de contrebande): “Pregam a união e semeiam a
cisão; atiram ardilosamente à arena questões irritantes e ofensivas; excitam a
rivalidade de preponderância entre os diferentes centros.” A única utilidade
dessa categoria de desertores foi a experiência obtida: “Ensinaram o
verdadeiro espírita a ser prudente, circunspeto e não se fiar nas aparências.”
4. E por último,
aqueles espíritas que, por divergirem do Espiritismo, se afastaram e seguiram
outro caminho. Allan Kardec os divide em dois tipos: a)
Os que são guiados pela sinceridade e b) Os que são guiados pelo amor-próprio.
Os primeiros não podem ser considerados desertores
porque têm o pleno direito de divergir e buscar outro caminho, pois são
sinceros e guiados “pelo desejo de propagar a verdade”.
Quanto à segunda subcategoria, Kardec é bem claro e
incisivo: “Seus esforços tendem unicamente para se porem em evidência e
captarem a atenção pública, satisfazendo seu amor-próprio e seu interesse
pessoal.”
O fundador do Espiritismo enfrentou todo tipo de
desertor, desde o mais frívolo até o mais preparado. Essa categorização é fruto
da experiência, de seu olhar perspicaz e observador, podendo inclusive ser
aplicada na aná-lise do movimento espírita contemporâneo.
O caminho apontado por Kardec para a superação dos
conflitos e da rivalidade entre grupos e pessoas é moral, ético: “Espíritas! Se
quiserdes ser invencíveis, sede benevolentes e caritativos. O bem é uma couraça
contra a qual sempre se anulam as manobras da malevolência.” E, para finalizar,
não deixa de lado seu ufanismo e o otimismo exagerado ao ver o intenso
desenvolvimento do Espiritismo num curto espaço de pouco mais de dez anos: “A
vulgarização universal do Espiritismo é questão de tempo, e, neste século, o
tempo caminha a passos de gigante, sob o impulso do progresso”.
Allan Kardec era um homem prático, empreendedor. Ele
apontou um caminho moral, ético, mas não se limitou a esse discurso. Ciente da
força filosófica do Espiritismo e de sua capacidade de penetrar no âmago das
consciências, propôs o Projeto 1868. Publicado inicialmente na Revista
Es-pírita (dezembro de 1868) e posteriormente ampliado, em Obras Póstumas,
Kardec estabelece nesse texto parâmetros seguros a fim de que as inevitáveis
cisões e deserções pudessem comprometer o futuro do Espiritismo, como veremos
a seguir.
CHEFE
COLETIVO
Allan Kardec tinha plena consciência de que as
fraquezas humanas não poderiam ser ignoradas em se tratando do futuro do Espiritismo,
tanto que elaborou o Projeto 1868 com a intenção de neutralizar sua ação
insidiosa.
A fim de evitar dissidências, procurou dotar o
Espiritismo de uma linguagem aberta, objetiva, que desse pouca margem a
interpretações. Precisão e clareza foram dois critérios adotados por ele na
elaboração de toda a Kardequiana: “Podem formar-se, paralelas à Doutrina,
seitas que não adotem os seus princípios, ou todos os seus princípios, mas não
dentro da Doutrina por questões de interpretação do texto, como se formaram
tantas pelo sentido que deram às próprias palavras do Evangelho. É este um
pri-meiro ponto, de importância capital”.
Manter-se no círculo das ideias práticas, deixando de
lado teses utópicas que poderiam ser rejeitadas por homens positivos e abrir
as portas doutrinárias ao progresso do conhecimento foram outros dois critérios
bem definidos pelo fundador do Espiritismo.
Kardec propõe em
detalhes a criação de um comitê central dirigente, gestor, encarregado de
manter a unidade doutrinária e o caráter progressivo do Espiritismo, sempre sob
a responsabilidade exclusiva dos encarnados: “Que os homens se contentem em ser
assistidos e protegidos pelos bons Espíritos, mas não descarreguem sobre eles
a responsabilidade que lhes cabe como encarnados”.
Esse comitê central teria suas ações controladas por
assembleias ge-rais, congressos, a fim de desempenhar o papel de “chefe
coletivo que nada pode sem o assentimento da maioria.” A proposta kardequiana
fundamenta- se em ações de caráter democrático, sem esquemas hierarquizantes e
centralizadoras.
O mais interessante de sua proposta é a relação
libertária desse comitê central com os grupos espíritas, que funcionariam num
esquema de au-togestão, de independência e liberdade de ação, como células
autônomas, cada qual com sua forma peculiar de organização, porém fiel aos
princípios doutrinários aceitos por todos, princípios estes que Kardec não pôde
finalizar em razão de sua súbita desencarnação.
O profundo respeito à liberdade de pensamento, a
tolerância e a alteridade não poderiam ficar de fora, fatores que nos conduzem
ao respeito por todas as crenças: “Se estou com a razão, os outros acabarão por
pensar como eu; se estou errado, acabarei por pensar como os outros. Em virtude desses princípios, não atirando pedras em ninguém,
não dará pretexto a represálias e deixará aos dissidentes toda a
responsabilidade de suas palavras e de seus atos”.
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