EPISTEMOLOGIA E CIÊNCIA ESPÍRITA - Contribuição para Debate por Reinaldo Di Lucia
Trabalho
Apresentado no IV SBFE, em Porto Alegre - 1995
1- INTRODUÇÃO:
Indubitavelmente, existe, no Brasil, um movimento espírita, se entendermos por movimento um conjunto organizado de pessoas que se dizem espíritas, ou que, de alguma forma, procuram" seguir" os ensinamentos que nos foram proporcionados por Allan Kardec. Prova disto são os inúmeros centros, casas, núcleos, etc., espíritas, com os quais nos deparamos diariamente, mesmo que alguns deles com nomes que indicam mais um sincretismo religioso - seja de origem afro ou cristã - que propriamente espírita.
Entretanto, o que se observa é que tal movimento espírita é, por assim dizer, amorfo. Senão vejamos, em que se baseia sua existência? Apesar das reiteradas afirmações de Kardec sobre a função dos grupos de espíritas, focando-a principalmente no estudo e desenvolvimento do espiritismo (e, conseqüentemente, com o dever de dar séria importância à divulgação dos conceitos espíritas, da maneira mais atualizada possível, o que se observa é o foco no assistencialismo imediatista. Este, mesmo sendo necessário num dado momento, visando atacar problemas agudos que proliferam na sociedade brasileira (tais como a fome, o desabrigo, o desemprego, entre outros); não passa de uma" ação de bombeiro", que apaga o fogo mas não constrói o futuro.
E é exatamente neste sentido, o de construção do futuro, que foi dito que o movimento espírita é amorfo. Existem grandes e sérias perguntas que se fazem e que, a contragosto, acabam ficando sem resposta: que contribuição efetiva trouxe a doutrina espírita para a humanidade, considerada em seu todo?
Qual a influência do espiritismo sobre a cultura, seja nos meios acadêmicos formais, ou informais?
Que papel vem cumprindo o espiritismo na elaboração de um mundo mais evoluído, onde o homem possa ser mais feliz?
Nada, infelizmente, ou ao menos muito pouco. Depois de um início fulgurante, onde o espiritismo andava paripasso com a ciência oficial, onde os maiores expoentes espíritas ocupavam postos proeminentes nas academias, onde a principal preocupação dos grupos espíritas era a confirmação formal das teorias - e idéias apresentadas pelos espíritos desencarnados (normalmente através de médiuns com pouco ou nenhum conhecimento), ocorreu uma transformação radical no seio da doutrina espírita. Esta transformação incluiu:
O quase desaparecimento do espiritismo na Europa;
A vinda para o Brasil, onde encontrou campo fértil ao seu florescimento;
O sincretismo, no Brasil, com as várias escolas religiosas aqui existentes;
A superestimação da ”caridade”, em detrimento do conhecimento; 2
As conseqüências desta transformação acabaram sendo altamente funestas para o espiritismo, do ponto de vista que estamos abordando. De fato, hoje, o espiritismo é um ilustre desconhecido nos meios culturais.
Quando muito, e isto no Brasil, refere-se à doutrina espírita como uma religião, ou talvez uma seita, que, portanto, pertence ao campo da mística, ao lado da cromoterapia, cristais, anjos, etc. Dentro do meio espírita, a idéia vigente é que tudo corre da melhor maneira possível.
O movimento espírita, como conseqüência direta das transformações já citadas, encara o espiritismo como um tripé, constituído de ciência, filosofia e religião. É importante frisar que este é um tripé desigual, onde o aspecto “religião" suplanta com larga margem os demais.
Em meados da década de 80, observou-se uma reação a este ponto de vista, reação esta que, tendo por base o próprio Kardec, contestava o caráter de religiosidade da doutrina espírita. Desde esta época, a grande questão em pauta é saber se o espiritismo deve ou não ser considerado uma religião. No entanto, muito pouco se discute sobre os demais aspectos expostos.
Na verdade, é muito difícil contestar o caráter filosófico do espiritismo, uma vez que sua principal contribuição é uma cosmo visão inteiramente nova, antecipando, ao menos na forma como são estruturados os seus princípios básicos, em mais de 100 anos a proposta de uma visão holística, preconizada pela psicóloga francesa Monique-Thoening, em 1980.
Assim, até mesmo devido a esta facilidade, o desenvolvimento da filosofia espírita é uma realidade, apesar dos problemas que serão discutidos mais adiante. Já no que diz respeito à ciência espírita, a situação é muito mais nebulosa. A despeito de Kardec encarar a doutrina espírita como uma ciência, e sujeita aos mesmos critérios de validação então vigentes, a noção de ciência espírita tem sido usada, com grande freqüência, de duas maneiras distintas:
Pelo movimento espírita “oficial”, como sendo uma antecipação de todas as grandes descobertas que serão, um dia, realizadas. De fato, é muito comum ouvir se frases como: “Mais cedo ou mais tarde, a ciência demonstrará que o espiritismo estava certo”. Por aqueles que questionam o caráter religioso, como sendo uma contra posição à postura mística que se observa em grande parte das organizações que formam o movimento espírita “oficial". Como se observa, o aspecto científico da doutrina espírita não é questionado pelos espíritas, apesar das razões diversas apresentadas pelos místicos e pelos não “místicos”.
Apesar disto, o meio científico tem solenemente ignorado o espiritismo, remetendo-o, na melhor das hipóteses, ao campo da metafísica. As teses espíritas, mesmo sendo racionais e baseadas em pesquisas realizadas por luminares da história das ciências, não encontram campo para desenvolverem-se nas academias. Em vista disto, será que ainda podemos afirmar que o espiritismo é uma ciência (mesmo se o encararmos como a “ciência do futuro”)?
Quais são os pré-requisitos indispensáveis para que uma disciplina possa adquirir o estatuto de ciência? Quais os elementos comprobatórios da cientificidade do espiritismo?
O que seria necessário para que a doutrina espírita passasse a ocupar um lugar nas academias de ciências? Como seria a epistemologia do espiritismo?
Tais são as questões que o presente trabalho se propõe a discutir. Deve-se, no entanto, levar em consideração que tal discussão passa, necessariamente, por:
Uma avaliação daquilo que hoje é considerado como sendo ciência, e que, portanto, pode receber a “chancela oficial” das academias. Este é um campo de debate que vem sendo muito abordado pela filosofia da ciência, cujas discussões, de cunho basicamente epistemológico, são deveras complexas.
O confronto dos postulados da ciência espírita com os paradigmas vigentes, os quais podem não ser adequados ao seu objeto de estudo. Talvez seja necessário questionar estes paradigmas, e propor a criação de novos, o que também traz uma considerável carga de complexidade.
A falta de uma discussão, no meio espírita, da questão metodológica, sem a qual é impossível fazer ciência. A ciência espírita ressente-se muito da ausência desta discussão, que deveria, dada a abrangência do objeto de estudo, envolver vários segmentos do meio espírita. Isto posto, considerando as dificuldades inerentes ao tema, propõe-se que esta primeira apresentação tenha o caráter não de uma tese ou mesmo uma monografia, mas de uma contribuição para debate, que deverá ser posteriormente enriquecida.
2- O ESTATUTO DE ClENTIFlCIDADE:
Este é, provavelmente, o grande x da questão, e é também a tema mais complexo a ser desenvolvido: quando algo pode ser considerado científico, porquê o pode e como? Para possibilitar esta discussão, vamos partir de algumas concepções que temos a respeito da ciência - ou seja, vamos delimitar os termos a serem empregados. Podem-se encontrar as seguintes concepções de ciência:
“1. Conhecimento.
2. Saber que se adquire pela leitura e meditação; instrução, erudição, sabedoria.
3. Conjunto organizado de conhecimentos relativos a determinado objeto, especialmente os obtidos mediante a observação, a experiência dos fatos e um método próprio: ciências históricas; ciências físicas.
4. Soma de conhecimentos práticos que servem a um determinado fim: ciência da vida.
5. A soma dos conhecimentos humanos considerados em conjunto: os progressos da ciência em nossos dias.
6. Filosofia. Processo pelo qual o homem se relaciona com a natureza, visando a dominação dela em seu próprio benefício. [Atualmente este processo se configura na determinação segundo um método e na expressão em linguagem matemática de leis em que se podem ordenar os 4 fenômenos naturais, do que resulta a possibilidade de, com rigor, classificá-Ios e controlá-los.] {Seguem-se as seguintes definições: ciência cristã, ciência econômica, ciência infusa, ciências aplicadas, ciências econômicas, ciências exatas, ciências experimentais, ciências físicas, ciências humanas, ciências morais, ciências naturais, ciências normativas, ciências ocultas, ciências sociais}”1
Para Ernest Nagel, a ciência tem três aspectos obrigatórios:
Permitir um controle prático da natureza, que desemboca na tecnologia e nos problemas éticos que dela advem.
"(...) algo que se propõe atingir conhecimento sistemático e seguro, de sorte que seus resultados possam ser tomados como conclusões certas a propósito de condições mais ou menos amplas e uniformes sob as quais ocorrem os vários tipos de acontecimentos."
Uma forma de conhecimento que parte de um método de investigação " Aspecto .muitas vezes mal interpretado e sempre difícil de descrever com brevidade, mas que é, talvez, seu traço mais permanente e garantia última do crédito que merecem as conclusões da investigação científica." Para Nagel este método" é a lógica geral, tácita ou explicitamente empregada para apreciar os méritos de uma pesquisa. "2
Divisão particular do conhecimento, especialmente uma que trabalha com um conjunto de fatos ou verdades sistematicamente arranjadas, e mostrando a operacionalização de leis gerais.”3
Resumindo, tais definições enfatizam os seguintes pontos, no que tange ao conceito de ciência:
Conjunto organizado de conhecimentos, isto é, o saber estruturado de forma a pertencer a uma comunidade.
Conhecimentos obtidos através da observação, da experiência dos fatos e de um método próprio, o que descredencia o saber obtido fora destes critérios do estatuto de "científico".
Ciência como meio de dominação da natureza, isto é, a possibilidade da predição: "ciência, logo previsão, logo ação", como dizia Comte.
A obtenção da verdade, a partir da descoberta de leis, equivalendo a reputar como verdadeiro somente o saber adquirido desta forma. Há uma explicação histórica para que a ciência seja, até hoje, vista desta maneira. De fato, apesar de o problema do conhecimento existir no homem desde os primórdios da civilização, as motivações e os métodos que levam ao conhecimento são inerentes à época em que se deram. 5
O início da jornada do conhecer humano é marcado por uma forma mítica de pensar. O mito é a primeira forma de descrição do universo, cujos principais expoentes foram Hesíodo e Homero. Na descrição mítica (canto), os fenômenos naturais são frutos das ações dos deuses, num momento de paixão (pathos). O objetivo do canto (evocação) é realizar este pathos, através das características próprias de cada deus. A este dizer mítico contrapõe-se o estudo racional (logos) do universo, que teve início no século VI a.C. com Thales de Mileto.
Entretanto, esta contraposição se faz não tanto no sentido da essência dos pensamentos, mas principalmente, no método4 de estudo empregado. Ainda assim, a. grande novidade desta forma de descrever o universo (que, de resto, era o objetivo último de toda a filosofia pré-socrática), é o desejo de encontrar a arché, ou seja, a substância primordial e fundamental que constituiria o universo, da qual todas as demais seriam derivadas.
É, porém, com Sócrates (Séc. V a. C.) e com seu discípulo Platão que o homem volta-se para dentro de si. A mudança de foco que se faz então, deixando de priorizar o objeto cognoscível para focar o sujeito cognoscente (e é, então, que se delineia o humanismo socrático), é uma verdadeira revolução epistemológica, a ponto de só ser inteiramente compreendida séculos mais tarde. A partir da filosofia de Sócrates, e sua busca incansável pela definição precisa dos termos (conceito), Platão cria o idealismo. A proposta é que o homem traz consigo, de forma inata, uma representação do mundo verdadeiro, o Mundo das Idéias, da qual nosso mundo sensório não é mais que simples corruptela (este Mundo é a fonte das idéias inatas que os homens apresentam sem que nada Ihes tivesse sido ensinado). Outra revolução é feita com um discípulo de Platão, Aristóteles.
Diferentemente do mestre, Aristóteles não aceitava a tese das idéias inatas, considerando que o homem nascia absolutamente ignorante (o homem é uma tabula rasa), vindo a aprender e aprender o mundo através dos sentidos: "Nada existe no intelecto que não tenha passado" antes pelos sentidos". Pode-se dizer que Aristóteles é o primeiro cientista, no sentido moderno do termo: com sua lógica (a qual estuda não o processo - o como - a inteligência chega aos conseqüentes, mas, sim, a correção - a validade - do processo uma vez terminado) ele delimita o conhecimento e suas possibilidades metódicas.
Estes dois pontos de vista dissonantes, tanto do ponto de vista do método como do principio do conhecimento (o idealismo - racionalismo de um lado e o empirismo - realismo de outro), tiveram (e a rigor ainda têm) profunda influência em toda a história da filosofia. Na verdade, o primeiro pensador a ocupar-se destas questões sob um prisma diverso é Descartes (1596 - 1650), no século XVII. É claro que estas questões estão mais afeitas à filosofia, tendo ficado por longo tempo afastada das academias de ciência. Os cientistas somente agora, ao final do século XX, é que estão se dando conta da importância capital desta discussão.5 6
Mesmo assim, estas questões eram parte integrante (talvez mesmo o principal fundamento) das teorias dos precursores do método científico até hoje vigente. Vemos que foi a partir deste debate que Bacon6 , logo complementado por locke7 , define o método empírico como base fundamental da investigação científica, e formula o raciocínio indutivo, cujo método parte de um ou mais dados conhecidos para se chegar a uma conclusão científica (neste conceito, já se percebe um caminho que levará fatalmente à experimentação).
Mas não se pode esquecer que a principal fonte motivadora desta postura é a oposição às teses de Aristóteles que, através da filosofia tomista (numa tentativa de conciliar a fé e a razão), dominou o cenário intelectual durante toda a idade média. Descartes ocupou-se com outra questão, Preocupado em analisar nem tanto a verdade a ser obtida, mas o modo como se conhece, ele antepõe a epistemologia à ontologia, postura decididamente inédita em toda a história da filosofia, e estabelece como único método possível a dúvida (princípio da dúvida metódica).
A partir dai. postula a existência de uma coisa pensante, que seria o próprio eu,”Penso, logo existo", Eis definido o racionalismo, poderosa arma a contestar o dogmatismo ainda vigente na época. A seguir, Descartes define seu método, que parte da intuição, utiliza a clareza e a distinção como regras do conhecimento e emprega a decomposição analítica do objeto em seus componentes básicos. Apesar de toda esta carga racionalista, que é fundamental para a construção do modelo mecanicista do mundo, Descartes usa um conceito metafísico (Deus) para validar o seu método. A introdução deste elemento metafísico faz com que ele postule também o dualismo, separando o corpo (res extensa) da alma (res cogitans).
A formulação filosófica do moderno método científico estava completa. O arremate viria com as descobertas das leis do mundo físico, realizadas e consolidadas, principalmente, por Galileu e Newton. Galileu Galilei (1564 - 1642), físico, astrônomo e matemático italiano, "foi quem primeiro utilizou a combinação de raciocínio teórico, observação experimental e rigorosa linguagem matemática, que até hoje caracteriza essa ciência básica”.8
Estabelece as principais leis do movimento, criando o ramo da cinemática (e a conseqüente relatividade galileana), as leis da queda e, através da observação astronômica, validou a teoria heliocêntrica. Teve muita Influência sobre as idéias de Descartes. Isaac Newton (1642 - 1727) matemático, físico, astrônomo e teólogo inglês, é no dizer de Isaac Asimov, o maior cientista que já viveu.
Criador da mecânica clássica, da física dos fenômenos celestes, das leis da dinâmica (as famosas leis de Newton), de parte da hidrodinâmica, da ótica (principalmente a reflexão e refração da luz), do cálculo infinitesimal, das leis da gravitação universal, e da teoria sobre a natureza corpuscular da luz. Em sua maior obra, Princípios matemáticos da filosofia natural, Newton define o seu método de investigação, inteiramente experimental, baseado na descrição matemática para se chegar à avaliação crítica dos fenômenos. "Graças a Newton, estabeleceu-se de 7 forma refinada e precisa a visão do mundo como tKi1I espetacular e perfeita máquina, movida por leis determinadas, em última instância, por seu Divino Criador.”9
O modelo mecanicista do universo, base do método científico ainda hoje vigente, completa-se no século XIX, com Auguste Comte (1798 - 1857), filósofo francês. Comte delineia os princípios básicos da ciência, através de uma hierarquização das disciplinas conhecidas e da formulação de um sistema que é, ao mesmo mecanicista (encara o universo como uma máquina), reducionista (o objetivo da ciência reduz-se ao fato positivo, observável) e determinista (busca estabelecer relações causais constantes e necessárias entre os fenômenos). É o positivismo, cujas bases ainda hoje são válidas nos meios acadêmico e científico. Assim, podemos definir os princípios do moderno método científico:
A experimentação, através da qual se pode comprovar ou não a teoria, e que permite a repetição por qualquer cientista convenientemente aparelhado.
A universalidade, isto é, a confirmação dos experimentos em diversos locais por diversos cientistas.
O critério de falseabilidade, que permite que uma teoria possa ser falseável, para que possa, também, ser convenientemente demonstrada.
A quantificação, que permite uma delimitação precisa do "até onde." podemos considerar válida a teoria. A partir da definição do princípio da incerteza, esta quantificação passou a incluir, necessariamente, critérios estatísticos.
A evolução do conhecimento, a qual se realizou com uma diretriz científica em direção ao modelo mecanicista, foi despojando o homem de sua condição central no universo, e relegando-o a nada mais que uma máquina. Segundo Kart Jaspers, houve, no decorrer desta evolução, três verdadeiras revoluções científicas que levaram a isto:
A primeira, de cunho cosmológico, foi a aceitação do heliocentrismo em detrimento do geocentrismo. (Séc. XVII).
A segunda, de cunho biológico, foi a descoberta da evolução darwiniana.
A terceira, de cunho psicológico, deu-se com as pesquisas de Wundt, que culminaram com a teoria behaviorista. No entanto, eis que o final do século XIX e início do XX trouxeram uma total inversão dos valores positivistas, notadamente na física. "Duas descobertas no campo da física, culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os principais conceitos da visão de mundo cartesiana e da mecânica newtoniana.
A noção de espaço e tempo absolutos, as partículas sólidas elementares, a substância material fundamental, a natureza estritamente causal dos fenômenos físicos e a descrição objetiva da natureza - 8 nenhum destes conceitos pôde ser estendido aos novos domínios que a física agora penetrava."10 Além das novidades no campo puramente físico, duas das descobertas causaram (ou ao menos seriam capazes de causar) uma revolução das mais sérias no seio da Teoria do Conhecimento e no método científico:
A primeira delas é o Princípio da Incerteza de Heisenberg. Descrito fisicamente como a impossibilidade de podermos determinar ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula subatômica, sua influência na base filosófica da ciência é derrubar a raiz determinista do positivismo. A partir desta descoberta, foi necessário reavaliar toda a relação de causalidade, bem como admitir que uma mesma causa pode redundar em diferentes efeitos. Foi também necessário passar a avaliar a interferência do acaso, (a-caso, sem causa determinada ou conhecida) nos fenômenos naturais.
A outra descoberta, realizada por Luis DeBroglie, é a dualidade Partícula: Onda, isto é, a capacidade que determinadas unidades subatômicas têm de se apresentarem ora como partícula, ora como onda, dependendo, a rigor, do tipo de experimento (ou, em linguagem mais poética, do modo como o cientista realiza a pergunta). "A dualidade partícula - onda, que as unidades subatômicas exibem, faz desabar solenemente o princípio da não contradição da lógica formal, que se encontra na base do raciocínio clássico. A é A, e também A é não-A!".11
Apesar disso, incrivelmente, tais descobertas não foram bastante fortes para causarem uma ruptura do paradigma então (e ainda) vigente. Entretanto, as próprias ciências da natureza, hoje, pouco se apóiam neste paradigma e, mais que isto, apelam para o conhecimento intuitivo do homem para compreendê-Ia: "A resolução, do paradoxo partícula /onda forçou os físicos a aceitarem um aspecto da realidade que contestava o próprio fundamento da visão mecanicista de mundo - o conceito de realidade da matéria. Em nível subatômico, a matéria não existe com certeza em lugares definidos; em vez disso, mostra" tendências para existir", e os eventos atômico não ocorrem com certeza em tempos definidos e de maneiras definidas, mas antes mostram" tendências para ocorrer".
No formalismo da mecânica quântica, essas tendências são expressas como probabilidades e estão associadas a quantidades que assumem a forma de ondas; são semelhantes às formas matemáticas usadas para descrever, digamos, uma corda de violão em vibração, ou uma onda sonora. É assim que as partículas podem ser, ao mesmo tempo, ondas.
Não são ondas tridimensionais reais, como as ondas da água ou as ondas sonoras. São" onda.s de probabilidade" - quantidades matemáticas abstratas com todas as propriedades características de ondas - que estão relacionadas com as probabilidades de se encontrarem as partículas em determinados pontos do espaço e em momentos determinados.
Todas as leis da física 9 atômica se expressam em termos destas probabilidades. Nunca podemos predizer com certeza um evento atômico: apenas podemos prever a possibilidade de sua ocorrência".12
O efeito que estas descobertas teve pode ser comparado ao de uma bomba na mente dos cientistas. Mais de um deles (mesmo nomes imortais, como Einstein, Heisenberg, Bohr) afirmaram em diversas ocasiões que não estavam preparados para absorver todo o impacto destas novas concepções (apesar de eles mesmos serem seus criadores). E isto levou diretamente às profundas discussões epistemológicas do fim do século (Popper, Kühn, Schlick, Camap) e à formação de um paradigma que pudesse dar conta destas novas questões: um Paradigma holístico. 13
Se, por um lado, dentro das próprias ciências de investigação da natureza já se levantam dúvidas sobre a validade do modelo científico vigente, a coisa se toma muito mais grave nas ciências ditas humanas.14 Michel Foucault15, por exemplo, acha inteiramente desnecessário considerar as ciências humanas como falsas ciências, uma vez que elas não são, em absoluto, ciências. Nada têm a ver com aquilo que pode ser denominado ciência. A configuração daquilo que define a positividade daquilo que hoje chamamos de "ciências humanas", e que as enraíza na episteme moderna coloca-as fora do estatuto de cientificidade. Os motivos que levam Foulcault a dizer isto baseiam-se, principalmente, na teoria que sua "arqueologia do saber" o conduziu a formular sobre as ciências humanas e no próprio conceito de homem.
Para Foucault, "O homem é uma invenção cuja data recente a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo.“16 A crítica pode parecer muito dura, mas, não deixa de ter uma razão muito profunda. As ciências humanas, visando talvez garantir, a qualquer preço, o direito de ocupar uma cadeira nas academias, fundamentaram-se no positivismo tanto ou mais que as ciências exatas. Falando dos temas gerais da cientificidade das ciências humanas, Japiassu define: "O primeiro tema consiste na preocupação sempre constante de uma referência empírica na base de toda a elaboração do conhecimento; o segundo diz respeito ao esforço intelectual para extrair formas ordenadoras do conhecimento e de constituição dos objetos de pensamento: esquematismo, formalismo, etc.; o terceiro concerne à busca de modelos explicativos, operatórios e preditivos permitindo ao pensamento não somente a leitura inteligente dos dados, mas também uma manipulação da realidade que ela aborda; o quarto, enfim, refere-se ao uso do cálculo e da quantificação.17 Em base ao quanto foi exposto, acreditamos que o único caminho viável para que as ciências humanas possam continuar a pretender manterem-se ciências é uma mudança de vértice, com a assunção de um novo paradigma. E é considerando que a ciência espírita pode perfeitamente encaixar-se no âmbito das ciências humanas que postulamos a necessidade de um novo paradigma para ela. Na realidade, sob um certo ponto de vista, o próprio desenvolvimento do espiritismo justifica esta mudança. 10
3- O ESPIRITISMO:
Historicamente, o espiritismo já surge aspirando o estatuto de científico. Seu codificador, Allan Kardec,o define como: “O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, da origem e da destinação dos Espíritos, e das suas relações com o mundo corporal.”18 Kardec, um cientista imerso no meio cultural de sua época, considerava que o espiritismo deveria seguir uma linha científica positivista.
Mais de uma vez ele afirmou que o espiritismo não se baseia senão nos fatos observáveis, que são a base do método científico então (e ainda hoje) vigente. Entretanto, o próprio Kardec cai na tentação de considerar a doutrina espírita como uma ciência para o futuro (apesar de não ter permanecido sentado, esperando-o). Talvez tenha sido esta postura do codificador que gerou a inércia em que vive hoje o movimento espírita: "As corporações científicas não têm, e não terão jamais, que se pronunciar sobre a questão (da doutrina espírita - N. do A.); ela não é mais da sua alçada que a de decretar se Deus existe, ou não. Portanto, é um erro fazer delas juízes. O espiritismo é uma questão de crença pessoal que não pode depender do voto de uma assembléia, porque esse voto, mesmo favorável, não pode forçar as convicções.
Quando a opinião pública estiver formada a este respeito, os sábios como indivíduos, a aceitarão, e suportarão a força das coisas. Deixai passar uma geração e, com ela, os preconceitos do amor próprio em que se obstina, e vereis que ocorrerá com o espiritismo como ocorreu com tantas outras verdades que se combateu, e que agora seria ridículo po-Ias em dúvida. Hoje são os crentes que se chama de loucos; amanhã serão todos os que não creiam; da mesma forma como se chamou de loucos outrora, aqueles que criam que a Terra girava.“19 Entretanto, esta postura de Kardec revela mais uma vez que ele adiantava-se ao seu tempo.
De fato, a colocação acima, principalmente no que tange ao dogmatismo que se exprime na posição da maioria dos cientistas - sejam do século XIX ou do XX - e que Tho918S Kühn chama de paradogmas (em contraposição aos paradigmas), vem sendo muito discutida pela filosofia da ciência. O espiritismo surge, em meados do século XIX, baseado em dois alicerces:
A extensa fenomenologia mediúnica que se dissemina em diversos países da Europa e também nos Estados Unidos da América a partir do início do mesmo século: Edward Irving, pastor protestante de uma igreja escocesa em Londres (1830); Andrew Jackson Davis, trabalhador braçal nos distritos rurais de New York, (1844); a família Fox, em Hydesville, New York (1848); Mrs. Hayden, esposa de um jomalista da Nova Inglaterra (1852); Daniel Dunglas Home, em Currie, Edimburgo (1855); o fenômeno das mesas girantes, na França (a partir da década de 1840). Estes fenômenos, impressionantes não só pela sua abundância, mas principalmente pela sua qualidade intrínseca (não do teor das comunicações, mas em relação à produção do fenômeno propriamente dito), formaram uma base na 11 qual foi possível o desenvolvimento do espiritismo sem as características de magia ou bruxaria que poderiam obstaculizar esse desenvolvimento.
O desenvolvimento do magnetismo, cuja fenomenologia vinha sendo observada desde o século XV, mas que firmou-se definitivamente como campo de pesquisas entre o final do século XVIII e o início do XIX, com Franz Anton Mesmer, o criador da teoria do magnetismo animal. Nesta teoria, Mesmer "(...) aplica o princípio Newtoniano da atração universal à idéia do fluido universal, teorizando que este exerce sobre o corpo efeitos análogos ao do ímã, devido à presença, nos nervos, de um fluido eletromagnético (...)“20.
Kardec era um adepto das teses do magnetismo, a ponto de ter aceito, inicialmente, o fenômeno das mesas girantes como sendo promovido por ação magnética. A partir destas bases, e da grande elaboração teórica formulada por Allan Kardec sobre as respostas dos espíritos a questões que ele mesmo preparara, surge o espiritismo sob a forma de um corpo de doutrina, ou antes, de uma filosofia espiritualista, que é como o espiritismo é apresentado no Livro dos Espíritos, porém como já dissemos, com pretensões de cientificidade. Esta postura, cabal em Kardec, que a explicita em mais de um texto em toda a sua obra, foi fortemente deturpada pelos que vieram após, notadamente no Brasil, onde adquiriu uma conotação religiosa, concorrendo com religiões tradicionais, como as diversas denominações evangélicas (e mesmo setores da igreja católica), e com os sincretismos religiosos afro-brasileiros pela aquisição de adeptos, quase prometendo a salvação.
É interessante notar que os princípios básicos que alicerçam a doutrina espírita (existência de Deus, existência e imortalidade do espírito, evolução infinita, reencarnação, pluralidade de mundos habitados e comunicabilidade com os desencarnados) não foram trazidas a lume pelo espiritismo. Todos estes princípios já haviam sido expressos por doutrinas, religiões e/ou filosofias anteriores a ele, tanto do oriente quanto do ocidente.
O grande mérito da doutrina espírita foi unir todas estas idéias num todo indivisível, integrando-as entre si de modo a formarem uma visão de mundo única, na qual alguns pontos de vista muito particulares acabam destacando-se: A possibilidade de admitir a existência do espírito como princípio inteligente do universo, dissociado, em essência, forma e manifestação, da matéria, sem que esta existência necessite ser admitida unicamente pela fé. A realidade dos espíritos é, se não um fato cientificamente comprovado pela ciência "oficial", ao menos uma tese suficientemente aceitável, uma vez que" (...) nem a razão nem a consciência a repelem.“21
A individualização definitiva deste princípio em seres incorpóreos, os quais são responsáveis pelas atividades intelectuais dos homens, sendo imortais e permanecendo eternamente individualizados. 12 O progresso inexorável como lei da natureza, à qual estão submetidos todos os seres, mas que não é concedido sob a forma de graça, devendo ser conquistado com o esforço do próprio ser.
A idéia de reencarnação não como punição ou expiação dos erros cometidos, mas como possibilidade de aprendizado do espírito num contato íntimo com a matéria, e, portanto, como necessidade absoluta para sua própria evolução e para a concretização da lei de progresso.
O livre-arbítrio como patrimônio inalienável do homem, o qual pode decidir livremente aquilo que deseja para sua vida e seu futuro. porém sabendo que cada decisão provoca efeitos diretos, com base no princípio de ação e reação, e que, portanto, o homem é o único responsável pelos resultados de suas ações. A partir destes pontos, os quais são, esses sim, absolutamente novos na história da humanidade, a doutrina espírita pode desenvolver-se de modo amplo. Se tivéssemos que localizá-Ia entre as diversas filosofias, poderíamos fazê-Io colocando-a entre as idéias radicais de. crença absoluta (misticismo) e não-crença absoluta (materialismo) e também como precursora das tentativas modernas no sentido de uma teoria holística sobre o universo: “O espiritismo é uma proposta equilibrada entre os extremismos místicos e materialistas. Ele os supera dialeticamente, transcendendo-os, buscando a síntese. Como tal, propõe uma visão dinâmica do processo da vida, sem, contudo, apresentar um quadro acabado, final. Ao contrário.
Coloca como definitivo apenas princípios básicos, permitindo que o pensamento e a pesquisa se ampliem, através do tempo, conforme a ciência e o conhecimento cresçam. Isto é, o espiritismo não se aventura a formular hipóteses desvinculadas das possibilidades do entendimento humano porque isso só serve para manter o homem ignorante, confuso, exigindo dele uma crença irracional.”22 Tudo isto faz com que possamos, sem cair no risco de uma segmentação exagerada do espiritismo, identificar dois aspectos pelos quais ele se apresenta:
O Espiritismo enquanto doutrina moral: do ponto de vista espírita, do mesmo modo que há um dualismo no universo, representado pelos princípios material e espiritual, há um conjunto de leis específicas para cada um deles. A matéria é governada pelas leis físicas, as quais estão sendo continuamente descobertas pelas ciências de investiga o da natureza (as quais não são da competência específica do espiritismo),23 enquanto que o espírito deve ser governado por leis morais. Rara o espiritismo, moral é a capacidade de distinguir o bem do mal, e, portanto é a adequação às leis divinas, ou naturais, as quais Kardec expôs, didaticamente, no livro III de O Livro dos Espíritos.
Uma diferença entre o conceito de moral conforme entendido pela sociologia e aquele defendido pelo espiritismo é que, uma vez que o espiritismo concebe as leis divinas como eternas, a moral, para ele, é absoluta, assim como os conceitos de bem e mal. A relativização da moral pelo homem, para ser utilizada como base aos sistemas legais 13 que regem as sociedades é que provocam as distorções, as quais vão sendo corrigidas com a evolução.
Isto posto, vemos que o espiritismo pode ser considerado como uma doutrina moral, na medida em que fornece ao homem noções sobre as leis que o regem, enquanto espírito imortal. Ao mesmo tempo, é uma doutrina fortemente consoladora, uma vez que coloca nas mãos do ser humano os instrumentos (mas também a responsabilidade) para sua própria evolução, postulando que o futuro será aquilo que dele fizermos. Talvez por isto é que o próprio Kardec assumiu, para o espiritismo, o papel do Consolado r citado por Jesus na bíblia24 (ainda que sem o conteúdo de fatalismo presente na maioria das religiões): " Assim, o Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas, fazendo com que o homem saiba donde vem, para onde vai, e por que está na Terra; atrai para os verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e pela esperança."25
O espiritismo enquanto filosofia: o surgimento da filosofia no mundo dá-se a partir do desejo do ser humano em explicar o universo que o cerca, e as relações entre ele, ser humano, e este universo. Apesar de surgir como contraposição metódica ao dizer mítico (ver p. 4), a filosofia não é exclusivamente racional: "Quando se dá a passagem da consciência mítica para a racional, aparecem os primeiros sábios, sophos (...). Um deles, Pitágoras (séc VI a.C.) que também era matemático, usou pela primeira vez a palavra filosofia (philos + sophia), que significa 'amor à sabedoria'. É bom observar que a própria etimologia mostra que a filosofia não é puro Iogos, pura razão: ela é a procura amorosa da verdade.“26. É nesta ânsia de saber, muitas vezes intuitivo, que o homem cria os sistemas. e escolas filosóficas. Na medida em que o espiritismo procura também explicar o universo e mostrar as relações entre o espírito e a matéria, ele é uma filosofia. No dizer de Herculano Pires, um dos maiores filósofos espíritas, "A Filosofia Espírita sintetiza em sua ampla e dinâmica conceituação todas as conquistas reais da tradição filosófica, ao mesmo tempo que inicia o novo ciclo dialético da nova civilização em perspectiva. 27 E é como filosofia que o espiritismo se destaca, uma vez que traz, através de uma cosmovisão diferenciada - porque livre dos preconceitos que embotam a visão do homem - respostas lógicas a questões até então insolúveis ou relegadas ao campo da fé. Herculano Pires postula a existência de uma ontologia, um existencialismo e uma sociologia espíritas, formando um corpo filosófico único e complexo.
Desta forma, não há como negar a existência, muito bem definida e delimitada, da filosofia espírita. Ela se faz a despeito dos próprios espíritas. os quais preferem encarar a doutrina espírita apenas como doutrina moral (e muitas vezes religiosa ou dogmática) a ter de exercitar seu pensamento na filosofia. Já vimos que o espiritismo é uma doutrina moral e uma filosofia. Mas. poderá ele ser considerado uma ciência? E, se puder, quais as suas bases necessárias? 14
4- UMA DISCUSSÃO SOBRE A CIÊNCIA ESPÍRITA:
Allan Kardec considerava o espiritismo como uma ciência, e mais, como uma ciência positiva: “É, pois, resultado da observação, numa palavra. uma ciência; a ciência das relações entre os mundos visível e invisível; ciência ainda imperfeita. mas que diariamente se completa por novos estudos e que. tende certeza. tomará posição ao lado das ciências positivas. Digo Positivas, porque toda ciência que repousa sobre fatos é uma ciência positiva, e não puramente especulativa.“28
Não podemos esquecer-nos que tais considerações são perfeitamente concordantes com os princípios e a formação de Kardec. Sendo ele um homem de cultura, criado no meio positivista do século passado, não admitia como válido senão aquele conhecimento que proviesse de uma fonte de fatos confiáveis, e que pudessem ser corroborados racionalmente. Assim é que somente interessa-se pelos fatos espíritas quando, presente a uma reunião de mesas girantes, sua inteligência é posta a prova para explicar, a si mesmo, o fenômeno observado; e a partir de então começa a pesquisar. acabando por formular o espiritismo.
Outra consideração que se faz necessária é que a época em que o espiritismo surgiu foi marcada pela desmistificação de alguns conceitos, principalmente na biologia, que levaram o homem a relegar toda a metafísica ao campo da religião e, portanto, indigna de ser objeto por parte das ciências. A síntese da uréia em laboratório, em 1831, é um golpe mortal na teoria do vitalismo, reforçando a concepção mecanicista da vida. Estavam em curso as experiências que levariam à destruição do conceito de geração espontânea. O espírito da época era o da necessidade da experimentação como base fundamental do processo científico.
O pensar da ciência espírita como uma ciência positiva levava à necessidade do estabelecimento de dois aspectos fundamentais que pudessem alicerçar o seu florescimento: o objeto de pesquisa e seu método. Kardec não se furtou a estabelece-los. e o fez segundo critérios bem definidos: O objeto de estudo - Quanto a isto, parece-nos não haver o menor problema. O próprio Kardec, ao definir os limites da ciência espírita, delimita o objeto: é o espírito, no que diz respeito à sua natureza, origem e destinação, e as relações este espírito (aqui compreendido como princípio inteligente, e, portanto, distinto da matéria, que é não-inteligente) com o mundo corporal.
Note-se que esta delimitação coloca como objeto da ciência espírita uma gama muito larga de teorias, fenômenos e entes, tais como: o ser inteligente e tudo aquilo que lhe diz respeito (e, portanto, englobando aqui todas as assim chamadas ciências humanas), os modos de relação entre este ser inteligente com o mundo que o cerca (abarcando, então. os fenômenos produzidos devido a esta interação. a saber, não somente os fenômenos mediúnicos e anímicos, mas também as partes das ciências físicas nas quais o observador é participante essencial do processo) e os fenômenos do mundo corporal que têm interferência direta no ser inteligente (o que abrange também as chamadas ciências biológicas). Bem entendido, não estamos defendendo a criação de uma física espírita. de uma 15 biologia ou medicina espírita, de uma psicologia espírita; afirmamos apenas que o espiritismo tem algo a dizer em conjunto com todas estas disciplinas.
O método da pesquisa - Para que uma ciência possa aspirar este título. é absolutamente necessária a definição do método, isto é, o modo pelo qual se espera atingir os resultados da pesquisa. Ao mesmo tempo, é também imprescindível que se delimite os critérios de validação, em base as quais serão verificados os mesmos resultados, visando comprová-Ios ou negá-Ios. Tanto os métodos quanto os critérios de validação da ciência "oficial" já foram expostos no item 2.
O que pretendemos discutir aqui é exatamente este tema no que tange à ciência espírita. Kardec também não se negou a efetivar esta definição. Uma vez que os critérios tradicionais de validação não eram aplicáveis à nova doutrina que se criava, ele estabeleceu seus próprios critérios, sem, contudo deixar de empregar a idéia básica vigente, a de experimentação contínua e diversificada de todas as possibilidades.
No dizer de Herculano, “Kardec não se perdeu, como Wundt29, Weber30 e Fechner31, no sensível das pesquisas epidérmicas do limiar das sensações. Percebeu logo que os métodos não podiam ser aplicados a fenômenos extrafísicos e estabeleceu o princípio da adequação do método ao objeto.“32 Para tanto, Kardec estabelece que as pesquisas espíritas só teriam validade se fossem baseadas na experimentação mediúnica (isto é, os dados da pesquisa deveriam ser obtidos por meio de discussão direta dos temas com os desencarnados, através de médiuns), ou seja, ele define a mediunidade como método da pesquisa espírita. Para validar este método, postula que os resultados assim obtidos só seriam considerados verdadeiros se fossem igualmente recebidos por vários experimentadores, através de diferentes médiuns em diferentes partes do mundo (critério de universalidade do ensino dos espíritos).
Paralelamente, o codificador emprega o crivo da razão (critério da racionalidade das comunicações espíritas) como validador complementar: “Os Espíritos são o que são e nós não podemos alterar a ordem das coisas. Como nem todos são perfeitos, não aceitamos suas palavras senão com reservas e jamais com a credulidade das crianças. Julgamos, comparamos, tiramos conclusões do que observamos e os seus próprios erros constituem ensinamentos para nós, uma vez que não renunciamos ao nosso discernimento.“33
Não há dúvida que, ao tentar resolver este problema, Kardec realizava um pensar metodol6gico sobre a doutrina que estava criando. Ainda assim, parece-nos que ele próprio percebeu a dificuldade que enfrentava, de fazer a ciência espírita aceita universalmente, como demonstra no seguinte texto: “Talvez nos contestem a denominação de ciência, que damos ao espiritismo. Ele não teria, sem dúvida e em nenhum caso, as características de uma ciência exata, e precisamente nisso está o erro dos que pretendem julgar e experimentar como uma análise química ou um problema de matemática; já é bastante que seja uma ciência filosófica.
Toda ciência deve basear-se em fatos; mas estes, por si sós, não constituem a ciência; ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos fatos: é o conjunto das leis que os regem. Chegou o espiritismo ao estado de ciência? Se se trata de uma ciência acabada, sem dúvida será prematuro 16 responder afirmativamente; mas as observações já são hoje bastante numerosas para permitir pelo menos deduzir os princípios gerais, onde começa a ciência.”34
A nosso ver, o grande problema da ciência espírita reside no fato de ela não ter sabido transformar a novíssima cosmovisão trazida pela filosofia espírita, a qual se fundamenta nos pontos básicos que nos referimos acima (p. 10) num paradigma verdadeiramente científico que pudesse embasá-Ia e às suas descobertas.
Não possuindo este paradigma, ou ao menos a sua proposta, a ciência espírita, por tratar de temas que são verdadeiros traumas para os cientistas, que os encaram como mera superstição, não consegue penetração suficiente na cultura para que possa vir a ter influência nas academias. Ao mesmo tempo, outro problema se apresenta.
Para que a mediunidade possa ser empregada convenientemente como método de pesquisa, é necessário que saiba enfrentar as teorias alternativas, hoje existentes, que se propõem a explicar o fenômeno mediúnico sem a participação dos espíritos desencarnados. Os critérios de universalidade e racionalidade postulados por Kardec, se apresentam válidos para uma crítica do conteúdo das comunicações, e conseqüentemente da identidade do espírito comunicante, partem do princípio da veracidade do fato mediúnico e da possibilidade da imortalidade da alma, elementos ainda não demonstrados de maneira cabal.
Assim sendo, à guisa de conclusão, podemos afirmar que é absolutamente necessário que a ciência espírita não só defina um novo paradigma, que poderá sem problemas ser chamado de um paradigma espírita, mas que faça-o aceito nas academias de ciências. Para a definição deste paradigma, será necessária uma ampla discussão entre os setores culturalmente mais avançados dos diversos movimentos espíritas existentes, uma vez que é muito improvável que ele possa surgir de um insight pessoal.
Não podemos esquecer, contudo, que já temos, na filosofia espírita, a base necessária para a criação deste novo paradigma, uma base tão distinta de tudo o que ainda hoje existe que sua aceitação seria, para usar a terminologia de Kühn, uma ruptura revolucionária não-cumulativa, ou seja, uma verdadeira revolução científica. Ao mesmo tempo, é necessário que a ciência espírita crie, a partir deste paradigma, novos métodos de pesquisa e critérios de validação que possam ser facilmente e convenientemente empregados por todos os cientistas espíritas. Isto serviria para que a ciência espírita pudesse consolidar-se, e assim demonstrar cabalmente seus princípios básicos.
É claro que se pode argumentar que a própria ciência "oficial" tem, também, seus problemas metodológicos, e que o paradigma sobre a qual ela se baseia repousa em princípios bastante frágeis. Tal argumentação é correta. Entretanto, só conseguiremos mudar um ponto de vista falho se tivermos outro para substituí-Io, além de força de vontade e conhecimentos suficientes para impo-Io. Se nós, cientistas espíritas ficarmos parado aguardando que o desenvolvimento científico eIou cultural comprove nossas próprias teses, perderemos o trem da história e correremos o risco de sermos engolidos pela própria evolução intelectual que tanto desejamos. 17
REFERÊNCIAS
1 Aurélio BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Novo dicionário da língua portuguesa.
2 Ernest NAGEL, Filosofia da Ciência.
3 New Webster's Dictionary of lhe English Language (tradução livre)
4 Etimologicamente, a palavra método (do grego meta + hodós) significa “percorrer um caminho" ou seja, como chegar ao fim desejado a partir do estado atual. Já metodologia (meta + hodós + logos) é a problematização do método, é perguntar-se se há um caminho a ser percorrido, e como ele pode sê-Io. Esta diferença etimológica leva-nos a concluir que, apesar de haver problemas de método na ciência espírita, há, principalmente, uma quase que total ausência de metodologia. Trataremos mais profundamente desta questão futuramente, durante a revisão deste texto.
5 Uma outra discussão, a qual não cabe neste trabalho, mas que é também fundamental num questionamento sobre o conhecimento, refere-se à existência de uma Verdade absoluta, independente do ser humano, pré existente e eterna, e da possibilidade de o homem atingir esta Verdade. A alternativa é a impossibilidade do conhecimento desta Verdade, mas somente de uma verdade relativa. Esta discussão é sintetizada por Kant, com seus postulados de coisa-em-si (númeno), inefável, e coisa-em-nós (fenômeno), cognoscível.
6 Sir Francis Bacon (1561 - 1626), pensador inglês, barão de Verulan, escreveu o Novum Organon Scientiarum, óbvia oposição ao Organon de Aristóteles.
7 John Locke (1632 - 1704), filósofo inglês, criador do empirismo científico, escreveu Ensaio sobre o entendimento humano, no qual procurava descrever uma teoria completa do conhecimento
8 Roberto CREMA, Introdução à visão holística, p. 30.
9 Ibidem, p.34
10 Fritjof CAPRA, O ponto de mutação, p. 69.
11 Roberto CREMA, opus citatus, p. 41.
12 Fritjof CAPRA, opus citatus, p. 75.
13 A questão do paradigma holístico é sobremaneira importante para a ciência espírita, uma vez que indica um caminho que ela mesma (ciência espírita) pode seguir em direção à definição de seu próprio paradigma. Entretanto, devido à profundidade exigida por esta questão, sua discussão será deixada para a continuação deste trabalho.
14 A denominação ciências humanas nos parece inadequada, e talvez seja inadequada mesmo a denominação anteriormente usada, ciências da natureza. Afinal, se uma ciência deve possuir método e objeto, ambos incluem o homem (compreendido como "ser pensante") em seu trabalho. Uma possibilidade (mas talvez esta seja uma sugestão um tanto ousada!), seria o emprego, respectivamente, dos termos ciências do espírito e ciências da matéria, coerentemente com a postura de Kardec.
15 Michel FOUCAUL T, Les mots et les choses, cap. X (citado por Hilton JAPIASSU, Introdução à epistemologia da psicologia, p.15).
16 Ibidem, p. 16.
17 Hilton JAPIASSU, opus citatus, p.19.
18 Allan KARDEC, O que é o espiritismo, p.10.
19 Ibidem, p. 34.
20 Reinaldo DI LUCIA, Passes: discussão e propostas, monografia apresentada no III Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, 1993, p.2
21 Allan KARDEC, O livro dos médiuns, p. 19.
22 Jaci RÉGIS, Uma nova visão do homem e do mundo, p.2
23 Deve-se entender por "leis sendo descobertas continuamente" como pesquisas incessantes sobre os mecanismos que regem o universo físico. Porém não se pode esquecer que, ultimamente, estas pesquisas têm levado a conceitos de organicidade (em oposição ao mecanicismo) e probabilidade (aceitação do acaso), os quais contrariam a visão positivista do universo, como já foi aqui relatado.
24 Evangelho de João, cap. XIV, w. 15 a 17 e 26.
25 Allan KARDEC, O evangelho segundo o espiritismo. p. 135.
26 Maria L. de A. ARANHA e Maria H .P. MARTINS, Filosofando: Introdução à filosofia. p. 72. 18
27 J. Herculano PIRES. Introdução à filosofia espírita, p.28.
28 Allan KARDEC, Revista espírita. novembro 1964, p. 323.
29 Wilhelm Wundt (1832 - 1920) é considerado o criador e sistematizador da psicologia como ciência experimental, através de seu livro Manual de psicologia fisiológica.
30 Weber, fisiólogo inglês, foi o realizador dos primeiros estudos sobre o tempo de reação psicomotora, uma das bases para o estabelecimento da psicologia experimental.
31 Fechner, a partir das pesquisas de Weber, elabora uma série de métodos para a obtenção de medidas quantitativas das sensações, formulando a lei de Weber - Fechner: “A intensidade da sensação aumenta por igual, quando a razão dos estímulos continua a ser igual, em todos os sentidos.“
32 J. Herculano PIRES, Ciência espírita, p. XV.
33 Allan KARDEC, Revista espírita, julho de 1859, p. 195.
34 Allan KARDEC, opus citatus, janeiro de 1858, p. 2.
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