Republicado no Abertura - Outubro de 2011
Caminhando com Kardec
Jaci Regis
Quando convivemos durante sessenta anos com uma idéia, passamos a ter certa intimidade com seu autor.
É o que aconteceu comigo.
Quando, aos quinze anos, comecei efetivamente a militar no movimento espírita, tive a sorte de ser orientado por pessoas que, não obstante com forte pendor evangélico, jamais traíram a importância de Kardec.
Já estávamos em plena era Chico-Emmanuel e o valor da palavra do ex-Manuel da Nóbrega e seu médium estava acima de qualquer suspeita e vinha ao encontro dos corações que não suportam não ter uma religião.
E Emmanuel fez, mais do que ninguém, o papel decisivo na implantação do lema Deus, Cristo e Caridade, lançado pelo “anjo” Ismael.
Comecei aceitando que ele era o “codificador”. Mas conforme andamos juntos, percebi que era uma injustiça coloca-lo na posição de mero colecionador e ordenador de idéias, sem participar fundamente na elaboração delas.
O acesso à Revista Espírita me deu mais proximidade com o trabalho dele. Ali temos uma idéia de como ele desenvolveu a doutrina e ficou mais clara sua personalidade.
O professor Rivail foi determinado, mas positivamente influenciado pela cultura de seu tempo.
Embora afirmasse a ascendência do ensino dos Espíritos, eclipsando-se, compreendi o quanto de estratégia essa afirmativa continha. Ele sofreu ataques de dentro e de fora do movimento.
A ascensão do discreto professor ao pálido das celebridades moveu ciúmes e ataques gratuitos e não tão gratuitos. A Igreja, os cientistas, os espiritualista, os ateus e materialista se uniram para ironizar sua pretensão de mudar o panorama psicológico, social e humano da sociedade.
Ele resistiu quanto pode.
Após o lançamento e consolidação do Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, teve três anos para meditar e refletir sobre os rumos que queria dar ao Espiritismo.
Seja porque seja, decidiu entrar no perigoso caminho da análise dos livros sagrados do cristianismo, tomados como fonte da verdade e "palavra de Deus”, tentando encontrar sustentação para as teses espíritas nas tradições cristãs.
Ele ansiava por um Espiritismo capaz de modificar as criaturas e a sociedade.
Humanista percebeu que se o conjunto básico do pensamento espírita que ele elaborou, nessa espetacular e inédita parceria com os “mortos”, fosse aceito, abriria as portas de uma nova mentalidade e atuação nas relações humanas.
Sua previsão da vitória espetacular do Espiritismo no século vinte foi conseqüência de seu idealismo e exame da realidade de seu tempo.
Acreditou que “os Espíritos” constituíam uma plêiade de sábios ocultos, com mandato divino para ensinar a verdade e liderar o progresso humano.
Passei a ver nele o homem maduro e decidido extremamente só. Sua solidão é patente no esforço hercúleo que realizou com mais de vinte volumes, escritos a bico de pena e projetando sua mente fertilizada pelo raciocínio lógico e reflexão positiva, num labor diário por mais de catorze anos.
Foi o trabalho de sua vida e a lê se entregou totalmente.
Vemos claramente a influência das idéias de seu tempo. Mas, prudente e previdente, não se jactou em profeta ou em missionário divino. Fez-se, o que realmente era, um homem dotado de bom senso, eficaz, estudioso, culto.
Por isso deixou aberto o caminho da renovação, da constante e cuidadosa evolução das idéias.
Passei a ver nele o que ele é, o fundador do Espiritismo.
Deixei, com ele, de crer nas revelações, que para ele era apenas o andamento natural do processo evolutivo.
Consegui, seguindo além de suas palavras, mas entendendo, penso eu, o dinamismo de seu pensamento, que a estrutura do cristianismo é falsa e incapaz de explicar minimamente o complexo e ao mesmo tempo simples, dinamismo vivencial.
O tempo se encarregou de mostrar um rumo diferente, apresentando o progresso científico, as mudanças sociais como obras do homem mas na visão kardecista, fruto da aliança entre encarnados e desencarnados, com suas falhas e vitórias. Mas a fluir sem fenômenos extraordinários. Pois extraordinária é a vida em si mesma.
Hoje, sessenta anos depois, caminhando ao lado do mestre, posso acrescentar idéias sobre as idéias deles, modernizando linguagem, reescrevendo caminhos. Sem feri-lo, sem desmerecê-lo.
Faço isso, porque andando ao seu lado, percebi que não o idolatrava, nem o santificava, mas admirei, cada vez mais sua humanidade, seu talento e sua decisiva participação na minha vida.
Caminho com ele há mais de sessenta anos e agradeço a ele, o que de bom descobrir em mim e a fé que posso ter no futuro da humanidade.
Por isso, atualizo seus pensamentos, torno-os meus e ando ao seu lado, porque a Doutrina Kardecista superará os desafios enquanto for livre para pensar, refletir, mudar e crescer, como ele queria.
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