Coluna do CPDoc julho 2016 - Jornal Abertura - Julho 2016
O sorriso de Diegues
Havia pessoas maduras e jovens naquele
grupo, todos espíritas e apaixonados pelo espiritismo. Em suas respectivas cidades,
cada um militava pelo aprimoramento do movimento espírita. Antigas e novas
batalhas os uniam: por menos igrejismo e evangelização, por mais pesquisa e
espiritização, por menos sincretismo, por maior abertura de ideias. Representavam um grupo pequeno, mas muito
ativo, espalhado por todo o Estado de São Paulo e por outros pontos do Brasil.
Possuíam conexão com espíritas de outras nações, com visões também libertárias,
desvinculadas das amarras do religiosismo dominante no Brasil.
Henrique Diegues aos 89 anos na reinauguração da praça Allan Kardec em Santos, 2012 durante o XXII Congresso Espírita Pan-americano.
Realizavam no início de 1986 várias
reuniões, todas muito animadas – ora em São Paulo, ora em Santos – para preparação
de uma proposta inovadora para a USE (União das Sociedades Espíritas do Estado
de São Paulo), da qual todos participavam. As ideias borbulhavam. Era sim
possível construir um movimento mais dinâmico, calcado no conhecimento e no
debate de ideias, alinhado com o desenvolvimento das ciências e da própria
sociedade. Foram desenhados projetos arrojados de transformação: congressos com
apresentação de pesquisas e livre expressão do pensamento, cursos centrados na
obra completa de Allan Kardec (não só em O Evangelho Segundo o Espiritismo),
atividades para a infância baseadas na cultura geral e no espiritismo (não
limitadas pelo discurso da evangelização infantil), seminários para análise
profunda das questões morais e sociais, livres do moralismo vigente. Uma busca
essencial: o foco no ser humano, na existência humana, na liberdade de
pensamento e ação, na vida intensamente vivida e não na vida após a morte.
Praça Allan Kardec -Em Santos -iniciativa de Henrique Diegues
O grupo decidiu montar a chapa "Unificação,
hoje! Para os novos tempos uma nova USE” e concorrer às eleições da USE, que se
aproximavam. Haveria, certamente, muitos questionamentos, pois as ideias que
ali se discutiam de forma alguma representavam o pensamento hegemônico entre os
que dirigiam o movimento espírita no Estado de São Paulo ou do Brasil. Pelo
contrário, algumas das antigas batalhas – como a que propunha a substituição da
evangelização infantil por atividades educacionais centradas no espiritismo –
já haviam causado anteriormente grande tensão. Não havia faltado acusações de
que aquelas pessoas eram contra Jesus e Deus, que pretendiam destruir o
espiritismo, e assim por diante.
Ciente das dificuldades que enfrentaria, o
grupo se deparou com uma questão delicada. Quem seria o candidato a presidente?
Poderia ser o jornalista editor do mais autêntico, polêmico e atacado periódico
espírita? Seria melhor que assumisse o arquiteto que articulou a chapa em
formação? Teria melhor resultado colocar um dos jovens que participavam do
grupo ou mesmo um dos experientes e respeitados dirigentes espíritas de São
Paulo? Em meio às várias opções aventadas, alguém propôs o nome de Henrique
Diegues, o veterano participante daquele grupo e do Centro Espírita
Beneficiente Ângelo Prado, de Santos. Os olhos de todos brilharam. Não poderia
haver melhor proposta.
Henrique Diegues estava presente, junto com
sua amada e amável Nair, em todas as reuniões. Seu sorriso se destacava (e contrastava)
nos momentos de maior preocupação. Suas palavras sóbrias davam cor diferenciada
às angústias e dúvidas que apareciam naquele ambiente de grande agitação. Ele
aceitou de imediato a indicação.
Começou a campanha e nem tudo foi flores. A
chapa concorrente, denominada “Tríplice Aspecto”, que se apresentou depois,
colocava-se claramente como o antídoto contra a destruição da religião
espírita. A chapa “Unificação, hoje!” viajou por todo o Estado, levando a sua
proposta. Hospedagem no local nem sempre havia. Muitas foram as vezes que o
grupo se apresentou com exíguo espaço de tempo e depois ouviu do dirigente
local que ele e toda a cidade apoiavam a outra chapa. Como numa guerra santa,
não faltaram ataques e insinuações sobre as intenções e o caráter dos colegas
da chapa inovadora. Henrique Diegues deixou claro em entrevista dada ao jornal
"Espiritismo e Unificação" que "o nosso propósito é sobretudo
servir à Doutrina, como temos feito ao longo de mais de trinta anos".
Esclareceu que não havia nenhuma intenção ideológica, pois as diretrizes para a
USE eram estabelecidas pelo Conselho Deliberativo Estadual.
Nos momentos de maior cansaço ou
indignação, a palavra madura de Diegues constituía a paz que o grupo
necessitava. Ela foi essencial para que não faltasse energia até a reta final.
Chegou o dia da Assembleia e os
representantes de todo o Estado se reuniram em São Paulo para a grande decisão.
Alguns participantes do grupo diziam que havia chance para uma (improvável)
surpresa e a chapa poderia ganhar. Henrique Diegues não se aventurou em
prognósticos, mas manteve seu sorriso sóbrio. No momento da apresentação da
chapa, ele representou o grupo, sintetizando as principais ideias. Mostrou que
nenhum perigo havia, que o progresso proposto se construiria com união e
integração.
A Assembleia foi tensa. Calúnias e ataques
continuaram correndo nas articulações. O representante de uma cidade do oeste
do Estado, que havia viajado de ônibus por mais de 500 Km, foi desautorizado
por seus pares no momento que se levantou para votar. Com uma nova e
surpreendente procuração, um outro representante votou em favor da outra chapa.
A derrota, ao final, foi massacrante: 63 votos a 13 para a chapa concorrente.
Ao término do dia, o grupo avaliou que havia
dois legados essenciais. O primeiro foi a oportunidade de debater e dialogar: a
discussão e a reavaliação de conceitos que a chapa promoveu deixava marcas para
todos os debates que viriam pela frente. O segundo e mais delicioso legado foi a
lembrança do sorriso sóbrio de Henrique Diegues. A chapa cumpriu o seu papel e
ele estava satisfeito. Fomos para casa com esse presente e a certeza de que
aquela caminhada estava apenas começando.
No mês de março de 2016 morreu, aos 93
anos, o amigo, militante e dirigente espírita Henrique Diegues. A lembrança e o
registro de seu papel no episódio da eleição de 1986 fica como uma singela, porém
muito grata e justa homenagem a esse grande espírita.
A seguir publicamos a proposta da Chapa Unificação:
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