quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Humanismo Espírita - Eugenio Lara

O Humanismo Espírita

Eugenio Lara

“O homem é a medida de todas as coisas, das que são e das que não são.”
(Frase atribuída ao filósofo grego Protágoras)

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No final da Idade Média e início do Renascimento, falar e pensar sobre o ser humano, sua consciência, valores, o sentido e a origem, sua ontologia, era algo subversivo, uma atitude de vanguarda frente a um pensamento quase que completamente dominado pelo dogmatismo religioso. Pensar o homem sem a rigidez e os cânones do pensamento cristão era algo descabido para a época. Por sua vez, hoje, ser humanista parece uma atitude reacionária, retrógrada, em meio à vigência do culto ao individualismo, do hedonismo. É como se o ser humano estivesse fora de moda, junto com o Humanismo.
Agir sob a égide de uma postura humanista significa agir em rota de colisão com o culto do ego, do eu sozinho, do culto às celebridades, do espetáculo social, em aparente contradição com os princípios de uma modernidade supostamente ultrapassada, arcaica, anacrônica. E seu contraponto, a chamada pós-modernidade, algo ainda difícil de se definir e de se localizar historicamente de modo claro, é muito mais do que a expressão do individualismo e, longe de legitimá-lo, ela extrapola o hedonismo exacerbado ao questionar as bases da modernidade e, indiretamente, o Humanismo, um de seus filhos mais diletos.
Além da ditadura do dogmatismo egocentrista, observamos hoje a ditadura do cientificismo, do que supostamente a ciência prova, a ponto de identificarmos um certo exagero em seu uso como oposição à religião. Fato observável, por exemplo, na propaganda de bens de consumo onde, amiúde, aparece um sujeito de jaleco no laboratório, com sotaque estrangeiro, numa imagem que serviria para expor a demonstração científica de que o produto “é bom, testado e aprovado”. Isso quando não vemos as práticas mais pseudocientíficas serem legitimadas sob a chancela de adjetivos pomposos, como o termo quântico, que serve para qualificar as práticas mais absurdas e destoantes de um pensar filosófico e científico.
Enquanto isso, o ser humano parece esquecido. Ao mesmo tempo em que nunca se valorizou tanto o individualismo na história da Humanidade, também é difícil crer que essa mesma Humanidade possa se desumanizar ainda mais do que a temos visto fazê-lo, desde o Holocausto e o Apartheid. O individualismo exacerbado desumaniza o ser humano. A espiritualidade, então, torna-se opaca, sem sentido, inútil, incômoda, quando não vira, com frequência, mais um bem de consumo ou uma desprezível fonte de renda. Desumanizado e desalmado, assim parece ser a condição do ser humano de nosso tempo, numa moldura exageradamente tétrica, imersa num “eterno” suplício, mas prenhe de significado.

Laicismo e Humanismo

Normalmente, aqueles que se opõem à ideia de um Espiritismo de conotação laica associam, de modo ingênuo e equivocado, a laicidade ao antirreligiosismo, ao ateísmo, a ponto de imaginarem uma forma ateia de se pensar/praticar a Doutrina Espírita. Haveria, portanto, um paradoxo curioso: o surgimento de um Espiritismo ateu ou, talvez, um Espiritismo iconoclasta, anticristão, comunista, como se fosse possível conceber a existência de um pensar espírita que não seja deísta. A fim de se evitar esse tipo de equívoco tão comum, é imprescindível compreender que a laicidade no Espiritismo não está exclusivamente associada à separação entre o Estado e a Religião. Mas sim, fundamentalmente, ao seu caráter humanista, ao Humanismo enquanto concepção de mundo, do qual o pensamento espírita é um lídimo representante.
A palavra Humanismo possui dupla acepção. Expressa dois sentidos que não se opõem, mas se complementam. O primeiro caracteriza-se pela extrema valorização do ser humano, situando-o como o centro das atenções, o sentido e a finalidade do conhecimento na construção do que se convencionou chamar de antropocentrismo, em oposição ao teocentrismo medieval. E o segundo sentido, pela formação intelecto-moral fundamentada nos clássicos latinos, nos autores gregos e romanos da Antiguidade, responsáveis pelo desenvolvimento da filosofia, da literatura, da cultura ocidental, das chamadas ciências humanas.
O Humanismo é fruto de uma conquista histórica, filosófica, ética, em todos os sentidos, tanto na preocupação com a humanidade como na formação obtida pelo estudo da cultura greco-romana, latina, na construção de uma paidéia, de um ideal de beleza e sabedoria. Ele representa uma dramática, trágica e longa luta dos intelectuais pela liberdade de pensamento, pelo conhecimento científico, obscurecido pelo dogmatismo religioso, pelo poderio eclesiástico e os poderes firmados no período medieval.


Allan Kardec e o Humanismo

Ao conceber o ser humano como um espírito imortal, livre, perfectível, o Humanismo Espírita situa-se numa via alternativa entre o niilismo da concepção materialista e o dogmatismo da ideologia judaico-cristã. Trata-se de uma visão otimista, enobrecedora, emancipadora, que valoriza e engrandece o ser humano sob um enfoque espiritualista e deísta, não-fatalista, sem os prejuízos do espírito de sistema, do fundamentalismo e do sectarismo religioso, e avesso a qualquer tipo de autoindulgência.
O pensar humanista e a ação humanitária são o apanágio da práxis espírita, cujos atributos e características peculiares acham-se determinados pela liberdade e a alteridade. O Espiritismo é, ao mesmo tempo, humanista e humanitário. Humanista, pelo resgate da dignidade humana, no aqui e agora, sem fixar os olhos no passado palingenético e sem se perder numa visionária e alienante idealização do além-túmulo. E humanitário por tomar a caridade em seu sentido mais amplo, como o componente motivador de sua práxis.
O Espiritismo não admite que o ser humano seja tratado como um objeto, como uma coisa desprovida de humanidade, de dignidade. Essa visão não é propriedade do cristianismo e não se inicia com ele, mas sim na Antiguidade. Todavia, será em Jesus de Nazaré que a natureza humana terá o seu momento maior de compreensão ética e valorativa. Daí que, apesar de não ser cristão, o Espiritismo incorpora em seu ideário humanista os princípios morais ensinados por Jesus de Nazaré. Portanto, não foi à-toa que Allan Kardec afirmou que a moral espírita e a moral cristã são essencialmente semelhantes.
A filosofia espírita se insere no contexto do Humanismo Espiritualista do século 19, anticlerical, secular e de inspiração iluminista, fatores presentes na ação e no pensamento dos socialistas utópicos Robert Owen, Conde de Saint-Simon e Charles Fourier. No entanto, a maior influência no pensamento humanista de Kardec vem do Iluminismo, especialmente Jean-Jacques Rousseau.
Allan Kardec conhecia os clássicos e traduziu obras da literatura clássica francesa para o alemão, como Telêmaco, de Fénelon. Dominava fluentemente o latim, grego, italiano, holandês, inglês, gaulês e o castelhano. Foi um profundo estudioso da filosofia grega, como pode ser observado em sua análise do pensamento filosófico de Sócrates e Platão, os quais considerou, ao lado de Jesus de Nazaré, como precursores do Espiritismo, na magistral introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Educado no Humanismo pestalozziano, de nítida influência do pensamento ético e pedagógico de Rousseau, o fundador do Espiritismo possuía uma formação clássica, enciclopédica, típica dos humanistas de seu tempo. Segundo Deolindo Amorim “é considerado humanista, no sentido antigo, aquele que tem uma cultura geral muito sólida, com fundamentos mais profundos nas ciências básicas, na história, nas línguas. Allan Kardec, por exemplo. Podemos considerá-lo pedagogo, moralista, pensador entre os mais autênticos, mas é bom não esquecer que sua formação, antes de tudo, era de humanista. Pelas questões que levantou, pela segurança com que formulou as teses fundamentais da Doutrina em seus diálogos com os espíritos instrutores e pelas próprias linhas mestras de sua estrutura intelectual, vê-se logo que havia, nele, os recursos culturais de humanista completo”. (Ideias e Reminiscências Espíritas, p. 78. Grifo meu).


Demasiadamente Humano...

A visão do Espiritismo como uma forma de Humanismo entrará inevitavelmente em choque com o “Espiritismo Evangélico”, com o dogmatismo doutrinário, o religiosismo, com a mentalidade cristã e cristrólatra. O caráter humanista do Espiritismo é absolutamente inegável.
Em um simples exercício estatístico, podemos observar que a palavra homem, no sentido de representante do reino hominal, aparece em O Livro dos Espíritos (2ª edição) 679 vezes. A palavra humanidade tem 81 ocorrências e humano, 50. Esses números são suficientes para demonstrar, ao menos em termos quantitativos, que a filosofia espírita tem no homem, no ser humano, o objeto primordial de suas reflexões, conceituações e ensinamentos. O caráter humanista do Espiritismo é parte integrante de sua natureza. Sua filosofia é humanista, assim como sua antropologia, sociologia e psicologia, tanto quanto sua pedagogia, todas elas ciências aplicáveis em estado embrionário, em estado de potência ainda por ser desenvolvido.
O pensamento humanista espírita se expressa não somente pela via filosófica, mas também pela via cultural, na valorização dos clássicos e da cultura humanista de todas as épocas. Mas, sobretudo, pela tomada de posição manifesta em relação ao ser humano, como elemento primordial de qualquer processo de transformação moral, social e política. O Espiritismo, apesar de sua aparência supostamente religiosa, cristã, transcendental, é essencialmente humano, demasiadamente humano...

(*) Eugenio Lara, arquiteto e jornalista, é editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense] e membro-fundador do CPDoc - Centro de Pesquisa e Documentação Espírita. E-mail: eugenlara@hotmail.com

Posteriormente à elaboração deste artigo, em 2012, Eugenio Lara publicou um livro denominado " Breve Ensaio sobre o Humanismo Espírita - publicado pelo CPDoc - Santos -SP, 102 páginas. Disponível para venda aqui no nosso site, basta entrar em contato pelo email: ickardecista1@terra.com.br .


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