terça-feira, 28 de junho de 2016

REFLEXÕES SOBRE O PENSAMENTO SOCIAL ESPÍRITA - por Ricardo de Morais Nunes

REFLEXÕES SOBRE O PENSAMENTO SOCIAL ESPÍRITA

Em época de polêmicas políticas nada melhor do que revisitarmos o pensamento social espírita, a fim de que possamos colher algumas orientações com vistas a nos posicionarmos da melhor forma ante os atuais  problemas políticos, sociais e econômicos brasileiros e também do mundo contemporâneo.O espiritismo nos traz três princípios fundamentais para a orientação de nossa vida social .Segundo o espiritismo o espírita deve prezar a ética, a liberdade e a justiça social.
Passaremos a fazer uma breve reflexão sobre estes princípios espíritas fundamentais. No que diz respeito à ética espírita podemos dizer que ela é rigorosa. O espiritismo nos convida a viver sem prejudicar moral ou fisicamente qualquer pessoa. Na verdade, o espiritismo vai além no sentido de ensinar que devemos querer para os outros aquilo que queremos para nós, conforme os ensinamentos de Jesus de Nazaré.
Kardec explica de forma magistral este tema em seu comentário à questão 876 de O Livro dos Espíritos: “ O critério da verdadeira justiça é de fato o de se querer para outros aquilo que se quer para si mesmo, e não de querer para si o que se deseja para os outros, o que não é a mesma coisa. Como não é natural que se queira o próprio mal, se tomarmos o desejo pessoal por norma ou ponto de partida, podemos estar certos de jamais desejar para o próximo senão o bem. Desde todos os tempos e em todas crenças o homem procurou sempre fazer prevalecer o seu direito pessoal. O sublime da religião cristã foi tomar o direito pessoal por base do direito do próximo.”
Este princípio nos convida à empatia, ou seja, à capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, de pensar e sentir a realidade do outro por um processo de abstração. Na prática, é muito difícil a aplicação deste principio à vida, pois os homens, em geral, pensam exclusivamente em seu interesse pessoal, para depois pensar, quando pensam, no outro. Kant com seu imperativo categórico nos faz lembrar esta máxima cristã quando diz: “Age de tal forma que tua conduta tenha caráter de norma universal”.
O espiritismo é uma doutrina da liberdade. Liberdade de pensamento, crença, expressão e ação. São valores fundamentais defendidos pelo espiritismo. O espiritismo estimula o livre-pensar e não procura violentar consciências. Cada um de nós está em um grau de maturidade pessoal e isto deve ser respeitado. Portanto, o espiritismo é democrático, pois busca respeitar cada individualidade. Certamente que esta liberdade postulada pelo espiritismo vem acompanhada da ideia de responsabilidade, pois o espiritismo não aprova que usemos a liberdade para prejudicarmos o outro. O uso de nossa liberdade deve ser norteada pela ética espírita.
E, finalmente, a questão da justiça social. A questão da justiça social toca em vários temas, entre eles o direito de propriedade. O direito de propriedade tem sido discutido por vários pensadores ao longo da história da filosofia. Alguns pensadores como Rousseau e Marx enxergam a propriedade privada de forma negativa, como origem dos males e desigualdades sociais. Outros pensadores, como Locke, possuem sua filosofia política assentada na garantia ao direito de propriedade.
O espiritismo é favorável ao direito de propriedade. Segundo Kardec na questão 882 de O livro dos Espíritos: “ Aquilo que o homem ajunta por um trabalho honesto é uma propriedade legítima, que ele tem o direito de defender, porque a propriedade que é fruto do trabalho constitui um direito natural, tão sagrado como o de trabalhar e viver”.No entanto, quanto a indagação de Kardec sobre o caráter da propriedade legítima os espíritos respondem de forma radical na questão 884: “Só há uma propriedade legítima, a que foi adquirida  sem prejuízo para os outros”.Se por um lado, o espiritismo afirma (questão 811) que a igualdade absoluta das riquezas “não é possível”, por outro (questão 808) afirma que as desigualdades das riquezas também podem ser produto da “astúcia e do roubo”.
Tais considerações nos levam a pensar sobre o melhor sistema econômico- político para um país. Muitas das discussões que estamos vivendo atualmente no Brasil e no mundo passam por esta questão. Entendemos, nesta linha de raciocínio dos princípios espíritas acima expostos, que o melhor sistema econômico-político para nós espíritas é aquele que privilegia a liberdade com justiça social. Pensamos que não é possível para nós espíritas, portanto, advogarmos um sistema que apenas privilegiasse a democracia formal, meramente legal, da igualdade de todos perante a lei, desconsiderando o problema das injustiças sociais.
 Desta forma, pensamos que é inaceitável a existência de espíritas que ignorem a fome, a miséria e o desamparo de milhões de pessoas e que apenas se preocupem com as facetas da liberdade. Neste caso, tais espíritas, desconhecedores das estruturas sociais injustas e dos mecanismos históricos de dominação, poderiam ser chamados, com propriedade, de alienados em termos ideológicos ou, na pior das hipóteses, reacionários.
Por outro lado, entendemos igualmente inaceitável a existência de espíritas que desejam a justiça social à custa da supressão da liberdade individual, seja a liberdade de crença, expressão ou qualquer tipo. Como ensina a própria filosofia espírita, o efeito da supressão da liberdade é tornar os homens hipócritas. Neste caso, podemos conjecturar que tais espíritas seriam pessoas dotadas de uma vocação autocrática, que se iludem com perigosos projetos de caráter ditatorial, em razão de ignorarem ou desprezarem os males que o ataque a liberdade ocasionou e ocasiona ao longo do processo histórico.

Ao apreciar os sistemas políticos e econômicos na história entendemos, portanto, que o socialismo real, tal qual existiu nos chamados países socialistas, mal chamados de comunistas, não seria o ideal para nós espíritas, pois tais países atingiram um certo grau de igualdade, porém com supressão da liberdade individual em vários níveis.Ao mesmo tempo, somos de opinião que o sistema  neoliberal, defensor do Estado mínimo, também não seria a saída para um mundo melhor, pois este sistema privilegia a riqueza, mas não leva em conta a exclusão de milhões de seres humanos do acesso aos bens fundamentais da vida.
Imaginamos como mais compatível com o ideário de liberdade e justiça social, sob o ponto de vista das possibilidades concretas, um sistema muito próximo da chamada social-democracia europeia da segunda metade do século XX e ainda vigente em alguns países na atualidade. Neste sistema, um Estado forte compensa ativamente as desigualdades sociais, sem inibir a liberdade do individuo e  a iniciativa na  produção de riquezas.A concepção social-democrata nasceu de uma circunstância histórica bem específica, das discussões entre marxistas ditos revolucionários e  os chamados revisionistas.
 Alguns certamente dirão, em um espírito neoliberal, que postula uma metafísica “mão invisível” do mercado que pretensamente ou ficticiamente levaria a distribuição de riquezas a toda sociedade, que tal Estado não se sustenta economicamente. Neste caso, podemos responder que a outra opção é a barbárie. E que deveremos em um determinado momento escolher entre o ser humano, na perspectiva de um projeto humanista de sociedade e governo, de caráter inclusivo de todos os cidadãos aos benefícios da saúde, educação, habitação e outros direitos individuais e sociais, e o lucro, sem medida e responsabilidade social da maioria dos grandes grupos econômicos e financeiros.
Finalmente, para que exista um Estado deste tipo, quem tem mais condições financeiras, ou seja, quem é mais rico, deve contribuir mais para a manutenção dos benefícios sociais, sob o principio de uma justiça tributária que trata desigualmente os desiguais. A este sistema ideal não deve faltar, obviamente, uma ética rigorosa na condução dos negócios públicos e uma democratização progressiva dos processos decisórios governamentais, os quais incluiriam, cada vez mais, a participação da sociedade civil. Será isto uma utopia?  Diz Kardec na questão 793 de O Livro dos Espíritos, quando comenta sobre a verdadeira civilização:
 “ De dois povos que tenham chegado ao ápice da escala social, só poderá dizer-se o mais civilizado, na verdadeira acepção do termo, aquele em que se encontre menos egoísmo, cupidez e orgulho; em que os costumes sejam mais intelectuais e morais do que materiais; em que a inteligência possa desenvolver-se com mais liberdade; em que existam mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíproca; em que os preconceitos de casta e de nascimento sejam menos enraizados, porque eles são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; em que as leis não consagrem nenhum privilégio e sejam as mesmas para o último como para o primeiro; em que a justiça se exerça com o mínimo de parcialidade; em que o fraco sempre encontre apoio contra o forte ; em que a vida do homem, suas crenças e suas opiniões sejam melhor respeitadas; em que haja menos desgraça e, por fim, em que todos os homens de boa vontade estejam sempre seguros de não lhes faltar o necessário”. (negritos meus)
Se acreditamos verdadeiramente na lei de evolução, devemos crer que é possível chegar a esta nova sociedade. Não é fácil, mas é possível. É necessário lutar no nível individual combatendo o egoísmo. Porém, é necessário lutar também no nível coletivo e institucional, por meios pacíficos, na busca de uma sociedade mais igualitária, democrática, fraterna e justa. O espírita fala muito no advento do mundo de regeneração. Esta nova fase da humanidade deverá ser conquistada pelos homens, não será obra dos espíritos. Os últimos acontecimentos políticos em nosso país nos fazem refletir se avançamos ou não na direção do projeto de uma sociedade melhor. Que cada um de nós reflita por si mesmo.

P.S.: A presente análise busca um senso de realidade e possibilidade na aplicação dos sistemas políticos e econômicos. Temos grande simpatia pela sociedade ideal imaginada por Marx. No entanto, a compreendemos como utópica, pelo menos em nosso atual estágio evolutivo, apesar de não desconhecermos a importante função das “utopias concretas”, no dizer de Ernst Bloch, como horizonte de dilatação das possibilidades humanas, como o sonho ainda não realizado. Porém, o homem novo de Marx ainda é, para o mundo contemporâneo, um super-homem com capacidade de guiar-se autonomamente na sociedade em harmonia com os outros homens, em verdadeiro espírito de altruísmo e solidariedade na produção da riqueza coletiva, da qual todos seriam construtores e beneficiários. Este novo homem de Marx, portanto, é um ser dotado de uma super consciência social. Infelizmente, não é esse o homem que observamos no cotidiano. Costumamos brincar com os amigos dizendo: quer saber o que é o homem? Seja síndico de seu prédio!


Ricardo Nunes

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