REFLETINDO SOBRE - HÁ DOIS MIL ANOS
Tenho me dedicado a reler alguns livros espíritas
que li na juventude e que naquela época me impressionaram muito. Tento perceber
a impressão que tais livros me causam hoje em dia. Com este objetivo, acabei de
reler a famosa obra “Há dois mil anos”
psicografada por Francisco Cândido Xavier. Esta obra pretende ser uma biografia
de uma das reencarnações do Espírito Emmanuel, que teria sido, segundo
informação ali existente, o senador Publius Lentulus, legado do imperador
romano na Judeia ao tempo de Jesus.
Desde que foi
publicado, na primeira metade do século XX, o livro causou polêmicas quanto aos
fatos ali narrados. Na atualidade, podemos verificar na internet toda uma
discussão sobre a existência ou não deste senador na Roma antiga. Existe um
debate interessante sobre a veracidade de uma carta atribuída no livro ao
senador Publius Lentulus e destinada ao senado romano, na qual o senador teria
feito a descrição de algumas características físicas e morais de Jesus de
Nazaré.
Em minha opinião estas polêmicas não tiram o
valor literário e doutrinário do livro.
Trata-se de um bom livro, bem escrito, e que trata de alguns episódios da época
do cristianismo primitivo. Mesmo que a obra fosse ficcional, ainda assim teria
o seu valor. Se existem nela elementos de ficção e realidade tão ao gosto de
alguns escritores, não sei dizer. O fato é que Emmanuel não a oferece ao
público como obra ficcional, mas como relato de sua própria história naquela
distante Roma dos Césares, diz ele:
“Tenho-me esforçado, quanto possível, para
adaptar uma história tão antiga ao sabor das expressões do mundo moderno, mas,
em relatando a verdade, somos levados a penetrar, antes de tudo, na essência
das coisas, dos fatos e dos ensinamentos. Para mim essas recordações têm sido
muito suaves, mas também muito amargas. Suaves pela rememoração das lembranças
amigas, mas profundamente dolorosas, considerando o meu coração empedernido,
que não soube aproveitar o minuto radioso que soara no relógio da minha vida de
Espírito, há dois mil anos. Permita Jesus que eu possa atingir os fins a que me
propus, apresentando, nesse trabalho, não uma lembrança interessante acerca de
minha pobre personalidade, mas, tão somente, uma experiência para os que os que
hoje trabalham na semeadura e na seara do nosso divino Mestre. ”
De fato, o
livro dá a impressão de ter sido escrito por alguém que conhecia profundamente
aquela época da história de Roma, diz ainda Emmanuel:
“Ante
minha alma surgem as reminiscências das construções elegantes das colinas
célebres; vejo o Tibre que passa, recolhendo os detritos da grande Babilônia
imperial, os aquedutos, os mármores preciosos, as termas que pareciam
indestrutíveis...Vejo ainda as ruas movimentadas, onde uma plebe miserável
espera as graças dos grandes senhores, as esmolas de trigo, os fragmentos de
pano para resguardarem do frio a nudez da carne. Regurgitam os circos.... Há
uma aristocracia do patriciado observando as provas elegantes do Campo de Marte
e, em tudo, das vias mais humildes até os palácios mais suntuosos, fala-se de
César, o Augusto!”
Percebe-se que
o livro é escrito por alguém profundamente cristão, o que condiz com as
características ideológicas de Emmanuel e também de Chico Xavier, apesar de
ambos terem se convertido ao espiritismo. Emmanuel também teria sido, em uma de
suas reencarnações, segundo a tradição existente no movimento espírita, um
sacerdote católico.
A obra relata um amor frustrado entre o
senador Publius Lentulus e Lívia, sua esposa, que teria sido uma das primeiras
aristocratas romanas adeptas da mensagem cristã. No que diz respeito ao seu
relacionamento afetivo com Lívia, Emmanuel sugere na obra um conceito
questionável em termos de filosofia espírita, o de que seriam “almas gêmeas”.
O livro traz uma interessante descrição da
Roma dos Césares: do sofrimento e das atividades dos escravos, das competições
e cruéis divertimentos no circo, dos costumes patrícios, do domínio militar das
legiões romanas sobre os povos conquistados, das intrigas na disputa pelo poder
na política do império. A obra relata ainda as pregações de Jesus, sua
condenação e morte, a ascensão de Nero ao poder, a destruição de Jerusalém por
Tito, bem como trata das primeiras perseguições aos cristãos e termina com a
erupção do Vesúvio em Pompeia, entre outros temas. Daria certamente um grande
filme.
É necessário dizer que não acredito na
desonestidade de Chico Xavier na composição do livro. Neste sentido, alguns adversários
do espiritismo alegam que ele teria feito pesquisas sobre a Roma antiga para
escrever o romance. Não creio.
Outros defendem como fonte da obra o
inconsciente do médium, que seria capaz de captar, através de “superpoderes”,
sabe-se lá de que maneira, a narrativa do livro na mente de alguma pessoa em
qualquer lugar do mundo. Também não creio.
Seria a
obra um produto do inconsciente profundo do médium, de origem anímica, em razão
dele ter vivido naquela época em uma de suas reencarnações? Esta hipótese seria
possível, porém também não acredito nesta alternativa considerando as múltiplas
personalidades, com seus maneirismos, estilos característicos, perfis
psicológicos, intelectuais e morais diversos, que se manifestaram através da
psicografia de Chico durante toda a sua vida.
Muito
interessante é o breve período de tempo em que o livro foi escrito, quase 4
meses, de 24 de outubro de 1938 a 09 de fevereiro de 1939.
Vale a pena ler
este e outros romances psicografados por Chico Xavier e por outros médiuns, sem
perder de vista, é claro, que a obra psicografada de qualquer médium deve ser
analisada sob os critérios filosóficos, técnicos e éticos da ciência espírita. Para
entender adequadamente a obra de Xavier ou de qualquer outro médium é
necessário conhecer a obra de Allan Kardec, que nos ensina, entre outras coisas,
que nenhum médium está isento da análise crítica de sua produção mediúnica,
pois, afinal, não existe médium perfeito.
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