O SAMBA DA MANGUEIRA
Existem
espíritas que condenam o carnaval. Alegam que no carnaval homens e mulheres se
afastam de seus propósitos divinos e caem na tentação da luxúria, acompanhados,
é claro, por uma boa leva de espíritos obsessores. Muitos temem, em complexos
mal resolvidos, a exposição da beleza dos corpos femininos e masculinos que os
remetem a ideias de culpa e pecado introjetadas em seu inconsciente por uma
educação religiosa deturpada.
De
fato, existem excessos no carnaval, mas também fora do carnaval, e é difícil
acreditar que os que gostam de excessos esperem o carnaval para realizá-los.
Prefiro enxergar o carnaval como uma grande festa popular, rica em significados
profundos para alma do povo. O carnaval talvez seja a grande válvula de escape
psicológica do povo brasileiro, que sofre no dia a dia as agruras de uma
sociedade extremamente desigual e injusta e os desafios da existência
cotidiana.
O
carnaval é o momento da fantasia e da ilusão. O varredor de rua veste-se de rei.
O desempregado, por alguns dias, se transforma em um poderoso magnata árabe ou
em um banqueiro de casaca. A bela jovem brilha, como uma verdadeira mulher maravilha,
no carro alegórico. O rico e abastado se junta à massa popular e esquece por
alguns momentos suas distinções econômicas e materiais. O empregado dança a mesma
marchinha que seu patrão. Aqueles que nutrem esperanças no amor se transformam
em pierrôs e colombinas.
Além
da característica psicológica das festas de Momo, que permitem o extravasamento
de tensões emocionais e o alívio momentâneo das lutas de classe, ainda existe a
característica cultural. Esta característica pode ser observada nas letras dos
sambas enredo, no bailado cheio de alta estima e estilo do mestre sala ou do
passista, no orgulho da porta bandeira em ostentar o símbolo maior de sua
escola, na beleza das fantasias e dos trajes coloridos e na pulsação e ritmo da
bateria.
O
carnaval é muito mais do pensam os moralistas de plantão sejam eles espíritas ou
não. O carnaval pode servir para dar espaço a atos políticos cheios de
simbolismo e significado. Neste sentido, a escola de samba Mangueira do Rio de
Janeiro surpreendeu a todos neste ano de 2020 com um belo samba enredo de nome
“A verdade vos fará livre”. Este samba diz muitas coisas importantes a respeito
do real significado da mensagem de Jesus e faz uma crítica bem atual da
instrumentalização da religião para fins políticos de poder.
Uma das frases da letra do samba que me marcou
particularmente é a que diz “Não tem
futuro sem partilha nem messias de arma na mão”. Parece incrível que no
Brasil atual chegamos ao ponto de uma escola de samba ter que dizer uma coisa
tão óbvia, mas, que, curiosamente, causou impacto em muitos que se dizem cristãos
e versados em teologia e estudos bíblicos.
A escola de samba mangueira trouxe para a
avenida um Jesus da não violência, da paz, do amor, da compaixão com os
deserdados do mundo, da justiça social, e do respeito a diferença. Um Jesus que
se apresenta com “rosto negro, sangue
índio e corpo de mulher” e que “enxuga
o suor de quem sobe e desce ladeira”. Para alguns, fortemente condicionados
de ideologia conservadora: um Jesus comunista!
Na
verdade, a escola de samba mangueira, paradoxalmente, deu uma aula de
espiritualidade para muitos que se dizem religiosos, pois teve a capacidade de expressar,
com máxima clareza, um Jesus que não combina com armas de fogo, opressões, ou
com discriminações de qualquer natureza. Um Jesus que não combina com poder e
com dinheiro e que ama os simples, os que com o suor de seu rosto ganham o pão
de cada dia sem prejudicar ou enganar a ninguém.
A
mangueira fez um desfile revolucionário!
Ricardo
de Morais Nunes é Bacharel em Direito, licenciado em Filosofia, Presidente do
CPDoc e reside em Santos
Nota: Artigo
originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.
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