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IDEIAS FUNDAMENTAIS PARA UM PENSAMENTO SOCIAL ESPÍRITA CONTEMPORÂNEO
“Os
homens se entenderão quando praticarem a lei da justiça” –Livro dos Espíritos
812a
Ante
as controvérsias políticas e sociais dos últimos tempos, no Brasil e no mundo,
um amigo questionou nas redes sociais se haveria um conjunto de princípios
básicos ou ideias, de índole política, que constituam um pensamento social espírita
contemporâneo com vistas a nortear a práxis dos espíritas no mundo. Trata-se, a
meu ver, de um questionamento muito pertinente para os espíritas da atualidade.
Nas linhas abaixo, descrevo aquelas ideias que, segundo penso, são
fundamentais, imprescindíveis, para a formação um pensamento social espírita neste
início do século XXI. Um pensamento social espírita compatível com as generosas
propostas humanistas contidas na filosofia espírita. O pressuposto da presente
reflexão é a crença na possibilidade de construção de uma nova arquitetura
social, a partir das lições da história, das ciências sociais e da política,
sem desprezar a contribuição do espiritualismo espírita a esta tarefa:
1- Defesa da democracia. Entenda-se democracia
não apenas em um sentido formal, de igualdade de todos perante a lei, mas em
sentido material, como possibilidade de todos os cidadãos acessarem aos bens
materiais, educacionais, culturais e serviços sociais fundamentais à vida. E
também na forma da mais ampla participação popular possível nas decisões da coletividade.
Nesse sentido, a expressão “aristocracia intelecto –moral” contida em “Obras
póstumas” de Allan Kardec deve ser superada. Tal expressão, apesar de indicar
corretamente a necessidade dos governantes serem dotados de aptidão intelectual
e ética para lidar com os assuntos de Estado e governo, na contemporaneidade,
época em que se valoriza a participação popular, apresenta-se com um caráter
elitista incompatível com os nossos tempos que aspiram à mais ampla democracia.
2- Desenvolvimento de um pensamento crítico em
relação ao capitalismo. O capitalismo,
enquanto sistema econômico, se por um lado teve aspectos revolucionários em
relação ao mundo feudal no sentido do desenvolvimento econômico, social,
científico e tecnológico, por outro, tem falhado em diminuir os abismos
econômicos entre pessoas e classes sociais, favorecendo, dessa forma, uma
enorme concentração de riqueza nas mãos de uns poucos eleitos do grupo social
em detrimento da grande maioria da população. Essa crítica deve ser realizada sem
meias palavras pelos espíritas, uma vez que essa desigualdade econômica e social
profunda coloca em risco o exercício da política e a própria ideia de democracia.
Neste tema é necessário não ignorar o que muitos teóricos das ciências sociais,
de Marx a Piketty, entre tantos outros, do passado e do presente, já reconheceram
na análise do referido sistema econômico.
3- Compreensão que o mundo não é algo dado
definitivamente, pronto e acabado. O mundo, indivíduo e sociedade, está em
transformação permanente. Nesse sentido, é imprescindível não abandonarmos a
utopia da possibilidade da transformação do mundo para melhor. Sempre
acreditando que o futuro poderá ser melhor que o passado e que a construção
desse futuro está em nossas mãos a cada dia do presente. Em nossa história, já
passamos pelo escravismo na antiguidade e também na modernidade, pelo
feudalismo na Idade Média, pelo capitalismo na modernidade e contemporaneidade
e por tentativas socialistas no século XX e nada indica que chegamos ao “fim da
história”. Aliás, a filosofia espírita nos ensina que a humanidade está submetida
a uma lei de progresso. Como será nomeada essa nova etapa da humanidade? Quais
as formas econômicas e institucionais que constituirão essa nova fase da
humanidade? Nesse momento histórico não sabemos, o que importa agora é a
esperança e a possibilidade de um novo tempo.
4- Defesa
da liberdade de crença, opinião e manifestação. Repudio a qualquer forma de
silenciamento. Nesse sentido, faz se necessário defender a ampliação ao máximo
dos meios de comunicação para que as diversas classes sociais possam se
manifestar, com especial atenção, no entanto, para as classes menos favorecidas
no grupo social, pois são as que mais sofrem as agruras de uma sociedade injusta
e precisam ter sua voz assegurada.
5- Defesa
da bandeira ecológica reconhecendo que as ações individuais de preservação do
meio ambiente são necessárias, porém insuficientes caso não se mude o modelo de
exploração atual da natureza de feitio predatório. Tendo claro que a questão
ecológica é uma das questões mais urgentes no mundo contemporâneo, pois
corremos o risco real de desequilibramos o ecossistema do planeta,
prejudicando, portanto, a vida em sua globalidade.
6- Defesa
dos valores da espiritualidade no sentido de valorização da vida terrena, sem
perder de vista a perspectiva imortalista e reencarnacionista ensinada pela
filosofia espírita, que ensina que o ser humano transcende a morte biológica em
um processo infinito de aperfeiçoamento intelecto-moral que inclui o retorno ao
planeta terra várias vezes, ocasião em que encontrará em seu retorno tudo
aquilo que plantou em existências anteriores tanto no aspecto positivo quanto negativo.
7- Defesa do princípio da fraternidade como
orientador supremo da vida social, compreendendo que os princípios da liberdade
e da igualdade só se realizarão efetivamente dentro de uma ideia maior de
fraternidade entre os homens. A defesa do princípio da fraternidade não
significa ignorar ou fechar os olhos para a dinâmica sociológica da luta de
classes e para a violência estrutural do sistema econômico capitalista em
relação as classes sociais não detentoras dos meios de produção, violência que
se reflete em vários níveis de exploração social. Essa defesa do princípio da
fraternidade significa uma aposta na possibilidade do diálogo entre as classes sociais.
Não se desconhecendo, de forma ingênua, porém, as enormes barreiras ideológicas
e de interesses que impedem frequentemente esse necessário diálogo.
8- Enaltecimento
por parte dos espiritas dos ideais de liberdade e igualdade. Enquanto por um
lado os ideais de liberdade favorecem à construção de sociedades mais livres,
que não menosprezem a importância dos deveres sociais de cada um. Por outro
lado, os ideais da igualdade devem favorecer a compreensão que igualdade não é
nivelação, massificação, de todos os seres humanos desconhecendo as diferenças individuais.
Porém, sempre dentro do princípio que as diferenças individuais nunca deverão
chegar ao nível que haja seres humanos que não tenham o fundamental para a
existência material, educacional e cultural.
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- Reconhecimento da dialética indivíduo-sociedade a partir da compreensão que o
indivíduo influencia a sociedade, mas a sociedade e suas instituições também
influenciam o indivíduo. Nesse sentido, é necessário rompermos com concepções
individualistas, idealistas, verdadeiramente metafísicas, que imaginam o
indivíduo distante de influências ideológicas heterônomas, como se os homens e
mulheres no mundo estivessem em uma bolha de proteção em pleno exercício de
autonomia, sem a influência consciente ou inconsciente de fatores externos na
formação de sua subjetividade. Portanto, devemos superar a falsa ideia de que
ideologia se escolhe. Na verdade, desde o nascimento bebemos os valores
ideológicos predominantes em uma determinada sociedade e é necessário muito
pensamento crítico para escapar dessa influência. Nesse sentido, os espíritas
devem refletir sobre as possibilidades da autonomia sem desprezar o problema da
ideologia. E sem ignorar que, a ideologia predominante formadora das
mentalidades no mundo contemporâneo, a que possui uma infinidade de aparelhos
ideológicos a disseminar por todos os meios seus valores, é a ideologia
capitalista, que aponta para a valorização do ter em detrimento do ser, para a
concorrência individualista ao invés da solidariedade. Na atualidade, mesmo a
ideologia religiosa tem sido cada vez mais colocada a serviço dos valores do
capitalismo. O paraíso no céu tem sido cada vez mais substituído pela busca do
paraíso na terra. Deus passou a intervir no sucesso material das pessoas.
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- Defesa de uma educação emancipadora, humanista, que vise ao bem geral da
humanidade, não apenas instrumentalizada para servir aos interesses do mercado
de trabalho. Nós, adeptos da filosofia espírita, somos discípulos de um
educador humanista. A educação é um dos caminhos para a construção de um novo
ser humano e de um novo mundo. Neste tema mais importante do que o ensino
religioso nas escolas, é a reflexão sobre os valores universais da
espiritualidade que apontam para o respeito à vida, às diferenças, para
compaixão, altruísmo, desprendimento dos bens materiais, respeito a natureza,
etc. E que favorecem a ideia de que o ser humano é um ser cósmico dotado de
dignidade intrínseca.
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- Abandono da ideia de neutralidade em questões políticas e sociais. Se por um
lado não devemos descer ao nível da criação de um “partido espírita” ou da
indicação de candidatos ou partidos dentro dos centros espíritas, por outro,
não devemos esquecer jamais que somos seres sociais e que a política, em seu
melhor sentido, quer queiramos ou não, se entrelaça em nossa vida individual e,
portanto, nos interessa e constitui. Sempre levando em conta que o espiritismo,
enquanto filosofia, se desdobra na possibilidade de um pensamento sociológico,
uma sociologia, como queria o pensador espírita argentino Manuel Porteiro.
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- Compreender que se o espiritismo possui uma dimensão política, humanista,
sociológica, no entanto, também é, em específico, uma filosofia espiritualista
que aponta para a dimensão metafisica do ser humano, sendo seu principal
objetivo, conforme seu fundador, o combate ao materialismo. Nesse sentido,
política e metafisica são duas dimensões do espiritismo. O espiritismo não é um
espiritualismo alienante como os do passado que prometiam o céu a partir da
renúncia da terra, no entanto, os espíritas não devem ser absorvidos apenas
pelas questões políticas, sendo necessário alcançar um equilíbrio neste tema.
13-
No que diz respeito a atuação política, à práxis do espírita no mundo, é
necessário lembrar que o compromisso do espiritismo com a ética universal de
Jesus aponta para os princípios da não violência. Esta postura de não violência
deve ser encarada sem ilusões. Os exemplos de Gandhi, Martin Luther King, Dom
Hélder e tantos outros, conhecidos e não conhecidos, nos mostram que, mesmo os
não violentos, quando tratam de assuntos políticos, acabam por se expor à
possibilidade de algum tipo de violência física ou moral.
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- Defesa do Estado laico. Os espíritas, desde o auto de fé de Barcelona,
compreendem que Estado e Religião não devem se misturar. Nesse sentido, as
guerras e perseguições religiosas que fizeram tantas vítimas na história serão
sempre lembradas pelos espíritas, sendo o Estado laico, portanto, uma conquista
civilizatória da modernidade que deve ser defendido.
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- Defesa das atividades e conquistas da ciência. O espiritismo, filho tardio do
iluminismo, valoriza a ciência que é uma das expressões da razão. Defender a
ciência em tempos de “terra plana” e de negacionismos de variada natureza é um
verdadeiro ato político que deve ser realizado com coragem pelos espíritas.
Obviamente que esta postura de defesa das atividades científicas não significa
ignorar os grandes problemas éticos que o desenvolvimento desta atividade
enfrenta na contemporaneidade.
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- Criação, nas instituições espíritas, de cursos de política e cidadania.
Obviamente que uma sociedade espírita tem compromisso principal com os cursos
introdutórios e avançados de espiritismo e com os cursos de teoria e prática
mediúnica, sendo o estudo e divulgação do espiritismo a tarefa fundamental dos
centros espíritas. Se uma sociedade espírita apenas tiver esses cursos já
estará cumprindo seus objetivos, pois essa tarefa só pode ser realizada pelos
espíritas. Porém, nos centros espíritas existem atividades complementares que
também podem ser realizadas, como as de assistência e solidariedade social ou
atividades de caráter cultural. No campo das atividades de caráter cultural,
podem ter lugar cursos de política e cidadania. Justifica-se esse tipo de curso
porque, nós, espíritas, devemos estar conscientes dos problemas políticos e
sociais. Desnecessário repetir que tais cursos devem ser realizados de forma
não partidária, com vistas a conhecer, do ponto de vista da história, da
sociologia, da filosofia e do espiritismo o que é a sociedade, suas dinâmicas e
conflitos dialéticos, visando, por fim, refletir sobre as possibilidades de
melhoria da mesma. Esta medida favorecerá a formação de espíritas conscientes
dos problemas do mundo, preparando-os para uma atuação humanista e critica na
vida social. Esta ideia não é nova, Manuel Porteiro já havia imaginado nas instituições
espíritas o que ele chamou de “cátedras de sociologia”. Normalmente, os
adversários desta ideia referem-se à interdição de Kardec no artigo primeiro do
regulamento da sociedade parisiense. Porém, é inegável que os temas políticos e
sociais, de um ponto de vista filosófico e humanista, são tratados ao longo de
toda a obra de Allan Kardec, o que enseja o desenvolvimento de um verdadeiro
pensamento social espírita. Geralmente o espírita apressa-se a fazer juízos
morais sobre a política e a história. É necessário, porém, conhecer e
reconhecer a complexidade dos problemas sociais e políticos antes de julgar de
maneira simplista ou maniqueísta. Há muito o que aprender com a história das
ideias políticas. De Platão a Noam Chomsky há uma reflexão política e social
profunda, a qual os espíritas kardecistas não podem e não devem ignorar, sob
pena de não participarem do debate do mundo contemporâneo, o que os colocaria à
margem dos processos de evolução social.
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Nota: Artigo
originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.
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