DINÂMICA
DAS MUTAÇÕES DAS ESTRUTURAS MENTAIS
Jaci Régis (*)
Santos-SP, Brasil
PREÂMBULO
Em 1848,
Karl Marx e Frederich Engel lançaram, em Paris, o Manifesto do Partido
Comunista, com o propósito de inaugurar uma nova fase para a humanidade,
redescobrindo o valor da pessoa comum e pretendendo destruir a sociedade
burguesa, embora ambos fossem burgueses. Nesse Manifesto
eles afirmaram, prenunciando as mudanças radicais que propunham "tudo o
que é sólido se desmancha no ar , tudo o que é sarado é profanado e os homens
finalmente são levados a enfrentar(...)as verdadeiras condições de suas vidas e
suas relações com seus companheiros humanos".
O tempo era de propostas radicais para
revolucionar, combater a injustiças, lutar pelo estabelecimento da ditadura do
proletariado e uma sociedade sem classes sociais.
Marx criticou os filósofos que interpretavam
mas não transformavam a sociedade. Era a filosofia da praxis, da atuação
social.
Não importa se o sonho da sociedade comunista
tenha aparentemente naufragado, mostrando que não basta uma excelente idéia,
mas é preciso que existam pessoas capazes de, ética e eficientemente, colocá-la
em prática. O
que importa assinalar é que o mundo nunca mais foi igual, depois de Marx.
Em maio de 1855, o prof. Rivail começou uma
nova e fascinante virada de sua vida. Diante dos fenômenos mediúnicos afirmou
"vislumbrei naqueles fenômenos a chave do problema do passado e do futuro
da Humanidade, tão confuso e tão controvertido, a solução daquilo que eu havia
buscado toda a minha vida. Era, em suma, uma revolução total nas idéias e nas
crenças existente."
Allan Kardec, certamente, não pode ser
classificado entre os filósofos mais prestigiados da era moderna, como Kant,
Hegel e outros, que desenvolveram o pensamento filosófico com enunciados sobre
o idealismo, a crítica da razão, o comportamento, na tentativa de descrever o
ser e a razão das coisas.
Entretanto, a partir de princípios muito
antigos e mais ou menos difundidos, e sob o amplo relacionamento com os
Espíritos, ele elaborou uma doutrina filosófica de praxis. Uma doutrina de
transformação moral objetiva, na prática da caridade benevolente e benemerente
e no resgate dos princípios de comportamento, da ética, da moral de Jesus de
Nazaré, num momento em que as igrejas cristãs davam mostras de exaustão do seu
domínio na cultura ocidental.
Sem o viez partidário e ativista do marxismo,
Kardec baseou o sucesso de sua doutrina no impacto revolucionário que a
comprovação científica da imortalidade produziria sobre a sociedade, com profundas
modificações estruturais no pensamento individual e coletivo.
De raciocínio positivista e cartesiano,
temperado pelo humanismo pestalozziano, o professor Rivail sonhou e anteviu a
vitória do Espiritismo, enquanto produtor de novas estruturas mentais das
pessoas, a partir das bases da cultura ocidental.
Passados 143 anos do lançamento da doutrina,
certamente a revolução kardecista não aconteceu, mas a semente lançada pelo
Espiritismo germinou e germina continuadamente. Foi graças ao seu trabalho que
criaram-se condições para o desenvolvimento das pesquisas psíquicas que
envolveram sábios e investigadores de renome cultural e científico.
Embora não esteja consolidado na cultura,
podemos dizer que o mundo nunca mais foi igual depois de Allan Kardec.
Aliás, Kardec jamais teve a veleidade de
produzir a transformação social. Analisando as reformas e revoluções que se
sucederiam, dentro do aforismo "os tempos são chegados", ele afirmou
que "O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da humanidade é
que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas
tendências progressistas, pela amplitude de vistas, pela generalidade das
questões que abrange, o Espiritismo é mais apto do que qualquer outra doutrina
para secundar o movimento de regeneração, por isso é ele contemporâneo desse
movimento"( A Gênese)
Na verdade, Allan Kardec abriu uma nova visão
da realidade humana, revelando a existência funcional de uma humanidade
espiritual, movendo-se ora no plano extra físico, ora no plano físico, dando
novo significado para a vida , livre do misticismo e das fantasias sobre a
natureza humana.
Porque essa será a base da nova sociedade
mundial dos próximos séculos. Esta resultará do dinamismo das mutações, num
leque de contribuições dos vários setores da cultura, a se entrelaçarem
complementarmente numa nova ética – provavelmente uma composição da doutrinas
de Jesus de Nazaré, Buda, Confúcio, Maomé e outros tantos semeadores de luzes,
de todos os quadrantes.
Para ajudar na construção desse novo momento é
que Kardec quis preparar o Espiritismo.
TRABALHO
DE KARDEC
"A princípio, eu só tinha em vista
instruir-me. Mais tarde, quando vi que aquelas comunicações um conjunto e
tomavam as proporções de uma doutrina, tive a idéia de publicá-las para que
todos se instruíssem". Essas palavras de Kardec (Obras Póstumas - Minha
Primeira Iniciação no Espiritismo) mostram como ele desenvolveu seu trabalho de
elaboração da doutrina espírita.
É verdade que Kardec fez um trabalho solitário
e pessoal.
Na biografia publicada na edição de maio de
1869, da Revista Espírita, a primeira não redigida por ele, o biógrafo afirma
que "ele era só!....". No discurso à beira do túmulo, Camille
Flammarion, disse que ele "despertou rivalidades; fez escola sob uma forma
um tanto pessoal..." Na Revista de junho do mesmo ano, está a informação
de que "até hoje a Revisa Espírita foi essencialmente obra e criação do
sr. Allan Kardec, como aliás todas as obras doutrinárias que ele
publicou."
Ele começara a institucionalização do
Espiritismo, em torno de sua pessoa, com a publicação da Revista Espírita, em
janeiro de 1858 e com a fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas,
em abril do mesmo ano.
Sobre a Sociedade ele escreveu em 1º de
janeiro de 1867:"A sociedade de Paris foi um foco permanente de intrigas
urdidas por aqueles que se diziam meus partidários e que, agradando-me na
frente, me ultrajavam pelas costas".
Comentando sua decisão de editar a Revista
Espírita e tendo de fazê-lo sozinho e por sua conta ele disse "Reconheci
mais tarde que tinha sido uma felicidade eu não haver encontrado financiador,
porque fiquei mais independente, ao passo que um estranho poderia ter querido
impor-me suas idéias e sua vontade, entravando-me o andamento do trabalho.
Sozinho não tinha que prestar contas a ninguém por mais pesada que fosse minha
tarefa, com o trabalho".
Assinalo esses fatos para que entendamos como
surgiu a doutrina e o projeto que seu fundador tinha para seu desenvolvimento e
consolidação.
PARADOXOS
E NUANCES
É também
verdade que Kardec teve dificuldade para explicitar claramente seu pensamento,
não por falta de talento, mas de linguagem adequada.
Embora objetivo, o pensamento espírita que
Allan Kardec desenvolveu, de modo algum é simplista. Ao contrário. Exige
reflexão e não adesão de crença.
Mas, ao se tornar uma doutrina de fé
raciocinada, o Espiritismo lançou seu primeiro paradoxo, pois quando se
racionaliza para ser verdadeira, a fé já extrapola o conceito intuitivo que a
define, cuja sentença mais apropriada é sem dúvida a "crê ainda que
absurdo", pois a fé, enquanto fé não procura razões.
Da mesma forma, a sutileza das interfaces de
pensamento são constantes no Espiritismo de Allan Kardec, como na frase abaixo,
tirada do discurso de 2 de novembro de 1868:
"as reuniões espíritas devem ser feitas
religiosamente, sem que se tome, por isso,
como assembléias religiosas".
Eis aí uma questão da Lógica. Se as sessões
devem ser feitas religiosamente, logo, diria a lógica, são reuniões religiosas.
Mas Kardec diz que não e que a nuança é bem caracterizada.
Fazemos essas ponderações para mostrar que
para entender e seguir o pensamento espírita é necessário tirocínio e estrutura
mental capaz de perceber as nuances, viajar na busca de significados
específicos, em meio a um mar de palavras e expressões consagradas com sentido
muito definido.
DIRETRIZES
PARA O FUTURO
Na Revista Espírita de dezembro de 1868 Kardec
publicou a Constituição do Espiritismo, depois reproduzida em Obras Póstumas. Nela
ele estabelece uma série de diretrizes para o futuro da Doutrina.
O capítulo Dos Cismas, é uma firme diretriz
para o futuro do Espiritismo.
Comentando esse capítulo J. Herculano Pires
escreveu o seguinte: "Kardec reafirma, nesse trabalho, todas as posições
fundamentais da Doutrina Espírita que a
caracterizam desde o início: uma doutrina aberta , estruturada sobre a tríade
científica da observação, da experimentação e da pesquisa, avessa ao dogmatismo
e ao misticismo e, portanto, à estagnação, confiante na capacidade humana
sempre crescente de conhecer e por isso mesmo infensa também ao dogmatismo
materialista."
Eis aí a questão, Kardec confiava na
capacidade humana sempre crescente de conhecer . Ou seja, ele previu ou queria
um tipo de adepto com a necessidade e a disponibilidade de conhecer, mudar,
crescer.
Ele mesmo defrontou-se, durante a elaboração
do Espiritismo, com muitas vertentes e linhas de pensamento que seguiam
paralelas ao seu trabalho. Por isso, considerando que ele era o fundador da teoria
espírita, declarou que tinha o direito de estabelecer as premissas da unidade
da Doutrina.
Vejamos o que ele diz a respeito do caráter
evolutivo do Espiritismo.
A
AFIRMAÇÃO
"A Doutrina é imperecível, sem dúvida,
porque se baseia nas leis da Natureza e
porque, melhor que qualquer outra corresponde às legítimas
aspirações dos homens. "
FICAR
DENTRO DE IDÉIAS PRÁTICAS
"Não sair do círculo das idéias práticas. Se
é exato que a utopia de ontem muitas vezes é a verdade de amanhã,
deixemos que o amanhã realize
a utopia de ontem, mas não dificultemos
a Doutrina com princípios que
seriam considerados quimeras
e rejeitados pelos
homens positivos."
O
PROGRAMA
"O
programa da Doutrina só será invariável quanto aos
princípios que passaram a
verdades comprovadas; quanto
aos outros, ela
só os admitirá, como sempre
tem feito, a título de
hipóteses até que
sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está errada em algum
ponto, ela se modificará nesse ponto."
A RAZÃO
"No
estado de imperfeição de nossos conhecimentos, o que hoje
nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdade, devido à
descoberta de novas leis. Isto acontece na ordem moral como na ordem física. E
é contra esta eventualidade
que a Doutrina
nunca pode estar
desprevenida."
O
PRINCÍPIO PROGRESSIVO
"O princípio progressivo que inscreveu em
seu código será a salvaguarda de sua perpetuidade. E
sua unidade será mantida precisamente
porque ela não repousa sobre o princípio da imobilidade.
A imobilidade, em lugar de ser uma força, torna-se causa de fraqueza e ruína
para os que não seguem o movimento geral. Rompe a unidade, porque os que desejam ir para a frente separam-se dos que
se obstinam em ficar para trás."
MUDANÇA
NO TEMPO CERTO
"Entretanto, embora seguindo o movimento
progressista, é mister fazê-lo com prudência e evitar entregar-se às cegas aos
devaneios, utopias e novos
sistemas. Importa fazê-lo a tempo, nem
muito cedo, nem muito tarde e com conhecimento de causa."
AS DIRETRIZES
"Por ela não se deixar embalar por sonhos
irrealizáveis no presente, não se segue que deva imobilizar-se. Apoiada
exclusivamente em leis naturais, não pode variar mais do que essas leis, mas se
uma nova lei for descoberta deve juntar-se aos demais."
"Não deve fechar-se a nenhum
progresso, sob pena de suicidar-se. Assimilando todas
as idéias reconhecidamente justas,
de qualquer ordem
que sejam, físicas ou
metafísicas, nunca será ultrapassada, e esta é uma das principais garantias de
sua perpetuidade."
Vejamos, em resumo, o que Kardec exige do
Espiritismo:
NÃO
IMOBILIZAR-SE
NÃO
SAIR DO CÍRCULO DAS IDÉIAS PRÁTICAS
NÃO
DESDENHAR NENHUM PROGRESSO
ASSIMILAR
TODAS AS IDÉIAS RECONHECIDAMENTE JUSTAS
SEGUIR
O MOVIMENTO PROGRESSISTA COM PRUDÊNCIA PARA EVITAR ENTREGAR-SE ÀS CEGAS AOS
DEVANEIOS, UTOPIAS E NOVOS SISTEMAS. IMPORTA FAZE-LO A TEMPO, NEM MUITO CEDO,
NEM MUITO TARDE E COM CONHECIMENTO DE CAUSA.
APOIAR
A DESCOBERTA DE NOVAS LEIS TANTO DE ORDEM MORAL QUANTO FÍSICA.
CRÍTICA À PROPOSTA DE KARDEC
Não me deterei no exame dos processos
indicados por Kardec para a manutenção da atualidade do Espiritismo. Outros o
farão. Meu intuito é analisar a validade e a possibilidade da proposta em si
mesma. Isto é, o que significa criar uma doutrina cujas idéias possam evoluir,
progredir, negar-se e reafirmar-se?
A proposta de Kardec é um projeto possível ?
Será que é possível manter uma disponibilidade mental e existencial capaz de
suportar as mudanças?
As diretrizes acima expostas mostram várias
facetas do pensamento do fundador da doutrina.
Em primeiro lugar, ao afirmar que a doutrina
evoluiria com as idéias reconhecidamente válidas, no campo físico como no
moral, ele, de certa forma, desvincula esse progresso da sua anterior
afirmativa de que as mudanças dependeriam da confirmação universal dos
Espíritos.
Talvez o amadurecimento de seu convívio diário
com os Espíritos e com os espíritas, o tenha convencido de que seria muito
difícil universalizar o projeto mediúnico como base essencial do Espiritismo .
Por isso preferiu que a Doutrina se
organizasse em núcleos, como espécie de "observatórios do mundo
invisível", que produzissem idéias, pesquisas e propostas razoáveis e
concretas. Daí olhar o desenvolvimento da ciência, quer dizer de todos os
segmentos da cultura, como coadjuvantes ou mesmo produtores do progresso
doutrinário. Isso porque percebeu que a velocidade das mudanças logo tornariam
algumas proposições senão ultrapassadas, mas deficitárias.
Além disso, acreditou que a cada 25 anos, um
quarto de século, haveria tanta mutação no conhecimento humano que a doutrina,
em congressos orgânicos, analisaria o resultado das pesquisas e incorporaria as
que fossem compatíveis e lastreadas. O espaço de 25 anos seria um período muito
bom para que não se precipitassem mutações que não teriam a resistência do
tempo ou que a pesquisa não validasse.
Pelos cálculos de Kardec, considerando que a
elaboração do Espiritismo por ele proposta foi iniciada em 1857, já teríamos
realizado 5 congressos constitutivos.
Essa possibilidade de reunir e debater os
princípios doutrinários, humanizava a doutrina e a retirava da tutela total dos
Espíritos , mas não desprezava ou descartava a participação deles. Ao
contrário, pois os Espíritos são parte essencial da estrutura doutrinária. E
isso porque, sendo os princípios do Espiritismo parte da natureza, evoluiriam
com o conhecimento mesmo dos fundamentos da natureza, seja pelos desencarnados,
seja pelos encarnados.
Daí ser válida a questão que levanto.
Kardec ao propor esse processo de atualização,
teria em mente que as gerações de espíritas seriam formadas por pessoas capazes
perceber, analisar e adquirir novos conhecimentos, adequá-los à doutrina, sem
descaracterizá-la.
Em que tipo de adepto pensava ele?
Exigiu que este fosse suficientemente capaz de
não se fossilizar e manter-se dinamicamente a par do progresso. Ou seja, não
imaginava pessoas conservadoras, medrosas, sem ousadia.
E eu pergunto, Kardec não teria sido ingênuo?
Não teria criado uma impossibilidade?
Vejamos as posições de J. Herculano Pires que,
em sua obra Agonia das Religiões, diz, no Capítulo IX, intitulado "Dúvida
e Certeza":
"No Espiritismo a dúvida é considerada
como condição necessária à busca da verdade.
Kardec a aconselha como método de controle das
manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios doutrinários.
A crítica se torna, assim, elemento básico da
filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por
pessoas que tenham condições de cultura e bom senso para criticar."
( Fim da
terceira parte)
O ESPIRITISMO BRASILEIRO
Tudo o que acima foi dito representa o ideal,
o Espiritismo projetado por Kardec, mas não é o Espiritismo real, o que existe
e influencia as pessoas.
Com a falência do movimento espírita na Europa
e com a sua pouca repercussão na América, o Brasil é o lugar onde nominalmente
ele floresceu.
Entretanto, desde o início, o movimento que se
organizou em torno da doutrina, não resistiu à pressão da cultura brasileira. A
criação do jornal Echo D’Além Túmulo, em 1863, por Luiz Olympio Telles de
Menezes, na Bahia, mostra claramente essa tendência e a mistura que desde então
cercou a doutrina no país.
É difícil imaginar que, tornado uma doutrina
popular, a massa que acorreu aos Centros tivesse condições para entender o
projeto audacioso que acima mencionei.
Movidos pelas suas convicções, os iniciadores
do movimento espírita brasileiro, esquematizaram o pensamento espírita,
simplificando-o para, de certa forma, adequa-lo ao modelo de culpa e castigo do
cristianismo. Essa simplificação transformou o Espiritismo numa crença
espiritualista baseada na lei de talião, mistificada como lei de causa e
efeito, dentro de uma visão estrita e confessional. Todo o movimento se baseou
nessa perspectiva de pagamento de dívidas do passado e a reencarnação passou a
instrumento de punição divina.
Na verdade, podemos afirmar a existência de um
"Espiritismo Brasileiro". Pois o Espiritismo real, que se instalou no
Brasil, há de ser diferenciado como uma derivante do Espiritismo kardecista.
A doutrina propriamente dita, as idéias,
ficaram para trás e, no vácuo dessa desistência, infiltraram-se com facilidade
os conceitos do catolicismo e modos do protestantismo. Tanto que o livro básico
do Espiritismo brasileiro é o Evangelho segundo o Espiritismo, que embora não
sendo, como não é, um livro tipicamente religioso, mas uma análise prática de
textos esparsos do Novo Testamento, foi tomado como um livro sagrado ou uma
substituição espírita dos evangelhos canônicos.
É notório que as diretrizes de Allan Kardec,
tanto no projeto 1868 quanto na Constituição, foram desprezadas. O Espiritismo
tomou feição de movimento religioso, consolador, provedor de benefícios.
Esse imobilismo impede de ver que não existe
uma dicotomia, um confronto entre o ser a divindade, como tem sido apregoado e
estabelecido, mas que a criatura humana é parte integrante e inteligente da
obra divina.
O Espiritismo brasileiro, na prática, mantém
intacta a falsa compreensão que divide a vida entre o profano e o divino, que
as religiões de todos os tempos acentuaram como forma de domínio e poder, uma
vez que se situaram como intermediárias e provedoras da salvação, e do perdão
divino. Para elas tudo de bom provém ou está no Além, lugar de julgamento.
ESPIRITISMO BRASILEIRO NÃO É REVOLUCIONÁRIO
Nesse contexto, o Espiritismo deixou de ser
uma proposta revolucionária, para conformar-se com o papel de reformador de
estruturas arcaicas, trabalhando sobre elas mesmas. Pois a visão espírita ficou
muito parecida com a visão cristã comum ao embalar-se com promessas do
profetismo, pelas quais a intervenção divina é que muda as coisas, retirando do
ser humano a iniciativa e o mérito das transformações sociais e do pensamento.
Por fim, condenará o Espiritismo ao papel de
espectador e não de agente ou pelo menos de agente coadjuvante , nas mudanças
que se processam diariamente no cenário mundial.
Ao lado de pessoas de excelente capacidade
intelectual, principalmente entre a elite de iniciadores, perfilaram-se
milhares de criaturas de pouca cultura, sem uma estrutura mental positivamente
progressista.
Mas tanto os intelectuais como os menos
intelectuais, uniram-se no discursos evangélico e obscurantista que reduziu,
afinal, o Espiritismo a uma religião ou quase religião porque, mesmo sem
qualquer justificativa prática, continuaram afirmando-lhe os caracteres
filosóficos e científicos.
Basta verificar a história do Espiritismo
brasileiro para constatar que ele afastou-se do pensamento de Kardec, para
criar um misto de kardecismo e evangelismo, engessando-se numa visão
conservadora de homem e de mundo, sem desenvolver um processo dinâmico de
entendimento progressivo..
O perfil do movimento e dos adeptos é bem
específico.
Diz-se que a maioria "veio pela
dor", que é elevada a única forma de redenção dos pecados praticados no
passado. Substituiu-se o "pecado orignal"da Igreja, pelo "pecado
originário do passado", no mesmo entendimento da Justiça Divina e da vida
terrena.
A adepto virou crente. Ao iniciar-se no
Espiritismo mantém praticamente sua estrutura mental adquirida nas religiões,
pois aqui encontrou modificações apenas pontuais, dada a forma como o ensino e
doutrina foram transmitidas e a maneira como as instituições foram criadas.
Uma clara perspectiva desse perfil pode ser
encontrada na frase "A vida é mais importante que a verdade" que me
foi dita pelo médium Francisco Cândido Xavier, transmitindo, segundo disse,
idéia do Espirito André Luiz.
Nesse entendimento, manter a vida, física e mental
das pessoa, consola-las, dar-lhes esperanças é muito mais importante do que
fazê-las pensar, discutir idéias, recriar imagens e seguir o próprio caminho.
Manteve-se o mesmo sentido da brevidade e do
peso da vida terrena, encarada como uma forma de castigo e de exílio.
Todo o esquematismo do Espiritismo brasileiro
gira em torno dessa perspectiva para a vida terrena, mantendo o pensamento
mágico e a posição de medo e obscurantismo diante da vida e da atuação da Lei
divina.
Daí,a exaltação da mediunidade e a elevação
dos médiuns à posição de sacerdotes e porta-vozes do divino, numa espécie não
consciente de santificação dos mortos e de desprezo pelo esforço humano, uma
vez que toda a sabedoria emanaria do Além.
Como no cristianismo, a vida terrena é considerada
um "vale de lágrimas" e o que cada um deve fazer é sofrer suas dores,
como prêmio divino para a redenção futura. A existência ficou, praticamente,
sem outro sentido senão o de ressarcir dívidas, dada a quase eterna
indisposição das criaturas para o bem.
Então, quando estamos tratando de atualizar a
doutrina, na verdade estamos tentando reencontrar sua estrutura criada e
pensada por Allan Kardec. É a partir daí que devemos encetar nosso esforço, o
que em relação à maioria esmagadora do espiritismo brasileiro, representa
recriar a doutrina.
DINÂMICA
DAS ESTRUTURAS MENTAIS
Allan
Kardec elaborou a Doutrina para um tipo de adepto capaz de mudar, de
transformar, de aceitar o novo, sem desestruturar-se.
Uma exigência bastante difícil de ser aceita
por um grande número, talvez a maioria das pessoas.
Porque, psicologicamente, as pessoas tendem a
se acomodar, a ser conservadoras.
Cada pessoa, direi Espírito, para situar a
construção dos conceitos através do tempo e encarnações, vai sedimentando conhecimentos
e experiências Essa estrutura mental define a individualidade permanente,
cerne, base, fundamento das personalidades que cada um de nós assume nas várias
encarnações. E determina o perfil psicológico do ser.
É um processo complexo e desenvolve uma visão
particular, um código com o qual o conjunto da vida é decodificado. Cria a
própria e específica interpretação dos fatos, das idéias, a partir dessa
maneira pessoal de olhar, sentir e perceber fatos e idéias.
As estruturas mentais se tornam, pois,
consistentes, como fatores constitucionais do ser e vão sendo consolidadas:
a) pela força dos modelos culturais,
insistentemente repetidos e mantidos, seja pela instituição familiar, pela
classe social, pelos clãs, sobretudo pela crença religiosa, através processo
evolutivo atemporal;
b) por convicções específicas que atendem à
visão de mundo que cada um desenvolve por afinidades de afetos (perspectivas,
sonhos) ou compensação (medos, angustias, etc.);
c) como forma de manter-se relativamente
estável (mesmo na loucura) diante das incertezas naturais ou alucinadas.
Tais estruturas constitucionais, pertencem ao
acervo espiritual e podem persistir encarnação após encarnação, com
modificações pontuais, até que sejam abaladas por fatores variados.
Então, o abalo é assimilado ou rejeitado
produzindo reações contraditórias:
a) às vezes as reações são violentas,
agressivas, como recursos de salvaguarda da própria estrutura mental existente,
surgindo condutas de confronto como medida de força e inibição da diversidade
conceitual. São os choques religiosos, por exemplo, entre facções adversárias.
b) outras vezes, o ser desenvolve desvios
conceituais, argumentação falaciosa para sustentar antigas convicções ou,
também, pode simplesmente tornar-se indiferente negando-se a perceber os abalos
da convicção nela permanecendo acomodado
c) não poucos entregam-se ao desalento e à
descrença. Quando esse estágio move-se para uma busca de outras alternativas ou
respostas, inicia-se um período de grande conturbação interior.
Abre-se um vazio existencial.
Medos, ansiedades estão na base desse processo
de definição existencial. Mesmo nas mentes que possamos considerar
razoavelmente sadias, subsiste, também, o medo de mudar.
A angústia do novo provoca um longo período de
incertezas. Nem sempre a clareza de raciocínio é fator positivo no processo de
mudança. Muitos apenas alcançam novo nível de acomodação mental. Refugiam-se
numa determinada crença, seja espiritualista ou materialista e não chegam a
elaborar uma nova visão de homem e de mundo.
Porque há uma diferença sensível entre a
acomodação e a mudança. A mudança representa a descoberta, um novo caminho, um
novo entendimento. A acomodação é uma forma sutil de manter as mesmas posições,
com formas e modos meramente exteriores.
Além disso, a incerteza generalizada sobre as
razões mais profundas da vida e a inevitabilidade da morte, desenham o quadro
final desse complexo.
Mudar é, pois, um processo traumático.
Podemos, figurativamente, ilustrar esse
processo na visão de uma árvore frondosa, cheia de folhas verdes no verão, que
se desnuda e fica com galhos secos e nus, no outono e inverno, e que novamente
refloresce e se enche de folhas verdejantes.
O primeiro momento é o tempo em que a pessoa
está confiante e confortável com suas crenças, idéias, seu modo de ser.
O segundo momento é o tempo de transição, da
dúvida, do questionamento, do abandono de crenças, idéias, acalentadas e muitas
vezes muito sedimentadas.
O terceiro momento representa a recuperação
das idéias, das crenças, em novo sentido, prisma e conceito.
Muitos temem o segundo momento, os galhos
secos, a nudez das folhas, a exposição da alma ao incerto, à insegurança da
transição e permanecem com suas velhas folhas, sem coragem, disposição ou
necessidade de atravessar esse outono-inverno , esse trânsito da certeza para a
incerteza em busca de novas certezas.
Entretanto, sem essa mutação a árvore fenece e
não pode produzir flores e frutos.
Duro é o discurso da mutação, da mobilidade
conceitual.
Transcrevo as linhas de carta que recebi, num
momento de transição de nossa vida espírita, de um ex-companheiro de doutrina,
dotado de inteligência e trabalhador assíduo do movimento, ao se despedir,
ausentando-se da luta que travamos:
A revisão de valores que você tem comandado e
que eu, em bem reduzida parte cooperei, ganhou um ritmo para mim acelerado,
acima da minha capacidade de apreensão. Em alguns momentos, tudo isso tem me
confundido a mente. O que era não é, o que valia não vale mais. Olhar para trás
significa auto-acusação. Aí vem o desconforto duro, porque foram muitos anos de
empenho, trabalho e crença, que chamamos ideal. E pôr outras coisas nesse espaço não tem sido
fácil.
É preciso
advertir que essa flexibilidade mental, que se permite examinar as contradições
e ouvir as incertezas internas e não desestruturar-se com a queda de crenças,
mitos e idéias a que se consagrou durante muito tempo, não tem uma relação
objetiva com escolaridade.
Faço esse
apontamento porque serão inevitáveis as críticas ao elitismo ou à ironia sobre
os "doutores" e outros mecanismos de que se servem intelectuais que,
não obstante, combatem a intelectualidade, supondo que os "simples"
seriam excluídos, sendo que denominam "simples" os que não possuem condições
mínimas de entendimento e, por isso, engrossam as fileiras dos freqüentadores e
- pasmem! - de certos dirigentes dos centros espíritas.
Um pormenor
importante nessa elucubração é que não se trata de pessoas "letradas"
no sentido eufemístico ou pretensioso. Mas de pessoas capazes de refletir, de
pensar e crescer, independente de títulos. É claro que, quando o país luta para
livrar-se totalmente do analfabetismo, não seria a doutrina que louvaria a
não-cultura.
É uma
questão de amadurecimento e de assumir uma nova rota, quando a que se trilha se
esgotou.
Friso isso
porque muitos não evoluem, desiludem-se.
Não
crescem, abandonam o caminho.
Não
questionam profundamente; reclamam , mascarando o sofrimento e o medo de mudar.
O princípio
do progresso das idéias inclui a negação simbólica para abrir espaço ao debate
e à crítica, fertilizando as idéias.
Como
afirmei, existe uma tendência à acomodação no processo de aprendizagem. E o
progresso no que tange ao pensamento espírita é, sem dúvida, um processo de
aprendizagem.
Como diria
Mc Lhuan, referindo-se à escola dos tempos de mudança, que o aluno deveria
saber aprender, desaprender e reaprender, dada a mutação constante dos fatores.
Na verdade,
é preciso abrir um parêntese, para afirmar, segundo meu entendimento, que a
mudança de paradigmas é um processo secular, enquanto a mudança dentro dos
paradigmas é um processo de mutação constante. Ou seja, só se muda um paradigma
quando este esgotou sua capacidade de aceitar a reciclagem das idéias, por
estar saturado de obscurantismo ou cristalizado de tal maneira que não
possibilita nenhuma forma de questionamento.
Nesse
sentido, não creio que os paradigmas estabelecido por Kardec estejam superados,
mas que permitem ainda uma reciclagem de linguagem e de sentido, sem perder as
ligações originais.
COMO, POIS, DEFINIR O ADEPTO DO ESPIRITISMO?
Kardec
disse :"Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e
pelos esforços que emprega para domar suas más inclinações" (O Evangelho
Segundo o Espiritismo, capítulo XVII, item 4). Embora essa afirmativa tenha
sido, quase sempre, entendida sob o aspecto moralista, verificamos que ela
caracteriza o espírita como alguém que quer evoluir constantemente, inclusive
moralmente.
Encontramos
no O Livro dos Espíritos, uma análise interessante sobre o progresso.
779. O
homem tira de si mesmo a energia progressiva ou o progresso não é mais do que o
resultado de um ensinamento?
O homem se
desnvolve por si mesmo, naturalmente, mas nem todos progridem ao mesmo tempo e
da mesma maneira; é então que os mais adiantados ajudam os outros a progredir,
pelo contato social.
780. O
progresso moral segue sempre o progresso intelectual?
É a sua
conseqüência, mas não o segue sempre imediatamente.
780-a. Como
o progresso intelectual pode conduzir ao progresso moral?
Dando
compreensão do bem e do mal, pois então o homem pode escolher. O
desenvolvimento do livre arbítrio segue ao desenvolvimento da inteligência e
aumenta a responsabilidade do homem pelos seus atos.
Nesses
ensinamentos verificamos como o Espírito, ao longo de sua vida, desenvolve
qualidades diferenciadas, retratando as estruturas psicológicas que constrói.
Idéias e
sentimentos formam estruturas mentais, que são flexíveis ou inflexíveis,
criando bloqueios a serviço da defesa do ser, sempre ameaçado pela incerteza e
pelos acontecimentos.
Lembremo-nos
que o ciclo nascimento, vida, morte, repetindo-se ciclicamente, é um processo
de incerteza constante, até que o Espírito tenha plena e razoável compreensão
de sua natureza e perceba a vida terrena como instrumento de sua ascensão, mas
que não o reduz a um organismo.
Isso
explica as dificuldades e as repetições dos mesmos sintomas, erros e idéias,
vida terrena após vida terrena, porque nascer, viver, morrer, não representam,
por si mesmos, rupturas estruturais. São condições necessárias para preparar o
Espírito para essas rupturas, sob o impacto de descobertas, abalos de crenças e
outros fatores externos que mobilizem motivações internas, único caminho para
verdadeiras transformações das estruturas mentais.
Daí, a
confirmação de que as mudanças são iniciadas na reelaboração de idéias,
timidamente assumidas, para depois se tornarem reais, exigindo uma unidade de
tempo.
Por isso, a
diversidade de prontidão para mudar.
Alguns
estão abertos a isso pela assimilação de experiências e porque encontraram um
caminho de aplicação da liberdade de pensar e reelaborar.
Outros,
retraem-se. Chegam, mesmo, a considerar novas idéias como sadias, excelentes
para seus problemas e incertezas, mas titubeiam, hesitam e, muitas vezes,
permanecem acomodados.
Por fim, há
os que refutam, no momento em que vivem, qualquer possibilidade de mudar,
mantendo inflexíveis suas estruturas e nem mesmo considerando a possibilidade
de transformação.
O espírita
que Kardec aspirava, precisa ensaiar a liberdade de pensar, suportar o medo da
travessia, sem precipitação, mas sem relutância, num ritmo certo, pois as
mudanças reais são amadurecidas e consubstanciadas.
Não é
fácil, por vezes, fazê-lo.
Mas é
inevitável fazê-lo.
CONTUDO, É PRECISO MANTER-SE ATUALIZADO
Quando
Galileu Galilei foi obrigado a desmentir-se publicamente sobre o movimento da
Terra. Teria dito, entre dentes "mas se move...". Também, diante da
realidade do movimento espírita, muitos poderiam crer que o serviço ao próximo,
a consolação que o Espiritismo dá, confere-lhe uma autoridade e uma aura de
credibilidade que não pode ser mudada, sob pena de frustrar as milhares de
pessoas que buscam nele a reposta para seus problemas e dores.
Esse
raciocínio é um sofisma que, se aceito, reduziria o Espiritismo, num prazo
relativamente curto, a uma seita marginal, alternativa, como muitas que surgem
e desaparecem.
Embora a
afirmação de que a "a vida é mais importante que a verdade" pareça
justa, em termos do cotidiano, ela é inócua e injusta ao longo do tempo.
Principalmente se pretender cercear a busca da verdade como não apenas
desnecessária, mas como instrumento da vaidade.
O Livro dos
Espíritos é claro.
O
conhecimento da verdade fertiliza o sentimento. Senão, transformaremos o
consolo da doutrina, em apelo à conformação, ao aceitar como determinação
divina e, portanto, irrevogável, todos os acontecimentos da vida terrena.
Se não
negarmos o sentido punitivo da lei de causa e efeito, acabaremos por nos
tornarmos esquematicamente deterministas, sujeitos ao destino e às condições
que nos cercam.
A
conformação como sintoma de aceitação de que forças mais altas nos dominam,
cercearia todo o esforço de progresso, que poderíamos definir como a descoberta
de leis naturais desconhecidas e a construção de novas formas de convivência,
conforto e bem-estar.
Isso também
nos cega diante da realidade. A hanseníase, por exemplo, é doença que persiste
nos países subdesenvolvidos e está erradicada dos países desenvolvidos. Para justificar
esse atraso, poderíamos usar o velho estratagema de que os Espíritos que aqui
reencarnam ainda "precisam" dessa prova, enquanto os que lá encarnam
já não necessitam desse aguilhão. A assertiva é um sofisma porque os habitantes
dos países desenvolvidos não apresentam um comportamento ético sublimado, nem
suas sociedades estão longe do crime, dos erros e da violência.
Nesse, como
em outros casos, não precisamos criar uma explicação engenhosa para
"salvar" a Justiça Divina. Em primeiro lugar, as condições sanitárias
são básicas para o desenvolvimento de certas moléstias. Além disso, não
dispomos de todos os elementos para fazer um julgamento realista das
modificações do comportamento humano.
Devemos
lembrar que coexistem, no fim do século vinte, esplendores científicos,
tecnologias de ponta, projetos quase fantásticos para a informática, viagens
interplanetárias, estudos adiantados sobre a natureza do universo, com a crença
nas grandes cidades e países do primeiro e de todos os mundos, no vudu, na cartomancia,
nas adivinhações e exotismos de toda espécie.
Esses
segmentos oferecem a fantasia e a magia que milhares de pessoas cultuam no
frenesi de resolver seus problemas sérios ou fúteis, através de sortilégios,
rituais e práticas primitivas.
O Espiritismo
precisa também definir o papel dos Espíritos na Doutrina Espírita. Aliás, Allan
Kardec deixou bem clara a variedade dos graus evolutivos dos desencarnados,
eliminando o fascínio sobre um suposto domínio ou sabedoria dos
"mortos". Como ele, não podemos, sem dúvida, desprezar a participação
dos espíritos na atualização e no progresso do Espiritismo.
Afinal, a
doutrina nos abre os horizontes de uma compreensão sem fronteiras entre a vida
física e a vida extra física, no meio da qual estão os fenômenos da morte e do
nascimento, ciclicamente.
Entretanto,
essa comunhão deve ser feita sem deslumbramento e com recíproco respeito e
compreensão dos fatores determinantes das estruturas mentais e morais de cada
um.
O
Espiritismo só tem, pois, um caminho se quiser contribuir para a mudança do
processo vivencial humano: dinamizar idéias, pesquisar novos caminhos, ousar na
procura de entendimento mais coerente com as idéias da Justiça divina e da
própria existência de Deus, atuando positivamente no plano, na vida cotidiana,
não apenas das pessoas, mas das coletividades
Kardec
estabeleceu a forma dessa atualização que deve ser contínua e constante, sem
pressa e sem atraso, no seu tempo, maduramente.
Nem
utopias, nem prepotência.
Coerência e
integração com a cultura em andamento.
Firmeza de
princípios e flexibilidade de entendimento.
Fora disso
cairá na repetição. Fechado ao progresso, imobilizando-se, ficará para trás,
retendo em seu seio e alimentando suas fantasias, multidões retrógradas, sempre
à espera da intervenção do oculto para fazer, por elas, o percurso que
inevitavelmente terão de fazer, ainda que perdendo o ritmo e a oportunidade de
crescimento.
DELIMITAR O CAMPO
Kardec
pretendeu que o espírita tivesse a mente científica.
Explico-me.
Não quer dizer que ele desejou que todos os espíritas fossem cientistas. Mas
que tivessem a mente como se fosse um deles, ou seja, capaz de aceitar que
sempre se pode encontrar novos caminhos, penetrar mais a fundo em todas as
coisas.
Um dos
males que obstam o desenvolvimento do Espiritismo, é a pressuposição de que ele
tem respostas para todas as questões.
Dada a
impossibilidade de analisar, com base, as variadas e surpreendentes ações
humanas, restou a prepotência de que se tinha um esquema pronto, um manual de
respostas acabadas para cada tipo de problema.
Esse
estratagema só serve para tumultuar as idéias e dispersar o trabalho de
expansão da idéia espírita.
Precisamos
lembrar que Kardec enfatizou que era "preciso não sair do círculo das
idéias práticas," ou seja, evitar utopias, sonhos e pretensões eufóricas.
Creio que o
primeiro passo para criar adeptos capazes de atender às exigências do fundador
da doutrina será delimitar o campo de atuação doutrinária. Quer dizer, escolher
os tópicos, conhecimentos, em que a doutrina pode contribuir de maneira
ponderável. Os conhecimentos humanos evoluíram de tal forma que o generalista,
o que conhece tudo não sobrevive.
O perigo,
quando se defende a abrangência ilimitada do interesse espírita, será o
dispersar de energias e abrir campo para afirmações exóticas ou sem fundamentos
lógicos e científicos.
Não será mais produtivo aprender, como
espíritas, a reflexionar, a filosofar?
Deveríamos, talvez, definir o Espiritismo como
uma forma de humanismo, uma filosofia humanista, que se debruça sobre as
relações do ser humano consigo mesmo e com o outro. Nesse campo, teremos ampla
possibilidade de aprofundar nossos conhecimentos e pesquisas, pois isso envolve
a natureza do ser em si mesmo, a comunicação mediúnica e a inserção do Espírito
no processo evolutivo, a partir, naturalmente, da imortalidade.
Recordemos as palavras de Kardec:
O que hoje pode ser verdade amanhã pode ser
mentira.
O imobilismo não faz parte do pensamento
espírita.
Não rejeitar novas idéias e descobertas.
Para que incorporemos o progresso aos nossos
princípios não precisamos e nem devemos rejeitá-los, nem enxertá-los com
cientificismos ou misticismos, idéias espiritualistas ou esotéricas.
(*) Psicólogo Clínico, Presidente do Instituto
Cultural Kardecista, de Santos, fundador e diretor do Jornal Abertura,
presidente do Conselho Administrativo do Lar Veneranda, escritor, autor dos
livros "A Mulher na Dimensão Espírita" (co-autoria), "Amor,
Casamento e Família", "Comportamento Espírita", "Uma Nova
Visão do Homem e do Mundo", "Caminhos da Liberdade",
"Muralhas do Passado", Introdução à Doutrina Kardecista" e
"A Delicada Questão do Sexo e do Amor"