“O senso de justiça e de cidadania a partir do ethos espírita” - Por Jacira Jacinto da Silva
1
Introdução
Vivendo num mundo tão plural, como este em
que nos vemos situados, parece razoável pensarmos também o espiritismo com este
mesmo olhar.
Este breve ensaio nasceu da ideia de pesquisar
a relação existente entre o comportamento da pessoa estudiosa da filosofia
espírita, mais especialmente no que tange às questões relacionadas com justiça
e cidadania, e uma suposta ética construída com base nesses postulados.
Realizada uma certa incursão pela discussão
que envolve a dualidade direito/justiça, bem como sobre a apreensão equivocada
que se faz do conceito de justiça, além de visitar perifericamente outras
formas de tratar com a sua aplicação, faz-se um questionamento sobre a possibilidade
de desconstruir as velhas bases nas quais ainda se sustenta.
Tanto o tema da justiça como o da cidadania
são tratados à luz da filosofia espírita, entrelaçando-se alguns conceitos.
Entra-se afinal no estudo da ética, embora de forma superficial, cruzando os
conceitos com fundamentos da filosofia espírita. Com uma rápida abordagem dos
principais parâmetros extraídos das Leis Morais de O Livro dos Espíritos,
passa-se às considerações finais.
Sendo assim, apresentam-se alguns lampejos propositivos de reflexão; talvez alguns fatos empíricos, com os quais podemos lidar no cotidiano, sugerindo avaliar se ainda há espaço para agir e pensar cidadania e justiça pelos parâmetros tradicionais, ou se conviria, dentro da casa espírita e pelas diretrizes fornecidas por essa filosofia, lançar o tema na roda, ainda que nesse espaço haja inúmeras posições, incontáveis visões provenientes das mais diferentes fontes do saber (política, religiosa, cultural, familiar, profissional, experimental etc. etc.).
2
Situando-nos
Saímos
de uma realidade em que havia baixa densidade urbana, enorme dificuldade de
comunicação, supremacia e concentração do poder econômico pela escravidão e
outras formas de imposição - o homem estava no centro do poder, a política era
dominada pelo poder econômico e escravocrata. Por longos séculos esse poder foi
representado pela Igreja.
Na
metade do século XX, quando foi proclamada a Declaração dos Direitos Humanos, a
humanidade já se deparou com outra realidade: O inegável progresso das
metrópoles industriais; o crescimento gigantesco das classes médias urbanas,
produzido e direcionado à imensidão de consumidores, e a consequente cultura de
massa.
Escancarava-se
aquela repressão predominante até então; sobrevindo o fortalecimento da
psicanálise e o desenvolvimento da ciência. A arte ganhou autonomia para o
mercado, revelando-se fenômenos que nos situam na pós-modernidade do mundo
globalizado.
Muito
antes do limiar do Sec. XXI, já era claramente visível o distanciamento de áreas
que historicamente caminhavam juntas: o conhecimento, a política e a liberdade.
Ao
menos institucionalmente já não se colocava peias ou restrições éticas ao
conhecimento, que passou a ser referendado a partir de então apenas pela autoridade
da crítica/saber (ainda que isso não tenha valido e não valha ainda hoje para
todos), vide exemplo da censura à exposição de arte no Rio de Janeiro agora, em
pleno final de 2017.
Viu-se,
enfim, a arte vicejar unicamente de acordo com as suas próprias normas, livre
do jugo e do domínio exercido ao largo dos séculos pela Igreja, ou pelo Estado
e, ainda o desnudamento da sexualidade, dos desejos e a busca de felicidade
individual.
Há
mais de meio século alguns já ousavam viver destemidamente a sua sexualidade,
pela sua própria orientação, independentemente das regras morais, movimento que
se fortaleceu por volta da quarta parte do século XX.
3
Justiça/Direito
3.1
Fato:
Prevalecendo uma visão positivista dos
conflitos sociais como fatos simples, passíveis de solução por uma norma posta,
chegamos à situação em que sujeitos de direitos e deveres não se sentem
inseridos nos próprios contextos, sejam eles, educacionais, familiares, sociais,
emocionais e até ambientais.
Disso se infere que o modelo do Direito
Liberal proveniente do período Moderno, com sua noção de Justiça e de imputabilidade individual, não responde
satisfatoriamente aos anseios do período contemporâneo.
Claramente, já não se admite mais,
especialmente no convívio atual,
decisões fundamentadas em cosmovisões metafísicas ou ditadas por autoridades,
sejam elas estatais ou religiosas. Evidencia-se na pós-modernidade o anseio
pelo pluralismo na democracia, entendendo-se
pluralismo como a coexistência
respeitosa de diversas opiniões e ideias.
3.2
Problema:
Instigante desafio para o Estado atual:
Convivendo uma grande variedade de culturas,
línguas, crenças, etnia etc., de inimaginável diversidade e procedência, como
resolver de forma justa os conflitos resultantes dessa estrutura não
convencional de Estado, já que as decisões coletivas não se mostram mais
suficientes?
É certo que não existe mais uma base comum de costumes para legitimar
eventuais decisões, ainda que assim continuem a se posicionar instituições
jurídicas e políticas.
Q: Cada cidadão deve orientar as suas ações
conforme a sua convicção particular e o seu projeto pessoal de vida, ou devemos
buscar estabelecer um consenso ético,
mediante a participação do povo no processo político de afirmação dos valores
coletivos?
Na defesa da primeira hipótese estão os
liberais, na outra os comunitaristas.
Existiria alguma implicação entre
argumentação racional e princípios morais e éticos?
Tradicionalmente, o positivismo jurídico
considerou as normas do direito autossuficientes para a resolução judicial dos
conflitos.
Será que esse conjunto de leis,
configurador do direito positivo representa, realmente, a vontade dos seus
destinatários? O fato de um projeto de lei ser escrito, em regra, por um grupo
de juristas escolhido pelos legisladores, e mais, o fato de esses legisladores terem
sido eleitos pelo povo, bastariam para garantir à lei aprovada, a referida
representatividade?
3.3
Desconstrução
No Brasil, possivelmente no liminar do Sec.
XXI, surgiu um movimento contrário ao uso de crucifixos nos Tribunais, sempre fixados
atrás da cadeira do juiz. A contenda se deu por motivo de crença, alegando os
contraditores que a Justiça é laica e, portanto, não poderia usar símbolos de
uma religião específica. Não obstante, talvez não se tenha observado nessas
disputas que referido símbolo pode representar apenas mais um acréscimo ao conjunto de simbologia utilizada para conceder à
Justiça autoridade superior, incontestável, inabalável.
Não à toa, a Justiça revela-se na figura da
deusa Thémis; seus representantes usam vestes talares, suas instalações, as
mais das vezes, são compostas por avantajadas mesas e cadeiras de madeira,
sendo os ambientes adornados por lustres e tapetes suntuosos, tudo a demonstrar
sua sagrada condição superior.
Atribuem a Michel de Montaigne, escritor e
filósofo francês do século XVI, que se colocou totalmente contrário às
injustiças (políticas e sociais), à violência, à crueldade e à corrupção, a
advertência de que as leis se mantêm em vigor não por serem justas, mas
por serem leis.
Seria o caso, então, de pensarmos na possibilidade de desconstruir o conceito de Justiça baseado nas normas
legais?
Nosso anseio hoje é oferecer uma
contribuição, ainda que mínima, para uma leitura crítica do direito, no seu
aspecto filosófico.
Cresce a necessidade de repensarmos os
antigos conceitos de Justiça, Direito, Ética e agregados, contra os quais se
arvoraram muitos pensadores, como Derrida, autor do seguinte pensamento: “(...), a justiça como direito não é a
justiça. As leis não são justas enquanto tais. Não se lhes obedece porque sejam justas, mas porque têm autoridade”.
Viceja, portanto, a corrente doutrinária
pela qual não se encontra o critério de
justiça no direito positivo, que apenas diz o que é lícito e o que não é lícito,
mas nas leis da razão, nas quais se
busca a base moral do conceito de justiça. Não à toa Kant se referia aos
“princípios metafísicos do direito.[1]
Segundo Rawls, princípios de justiça são:
“[…] aqueles que pessoas racionais
preocupadas em promover seus interesses consentiriam em condições de igualdade quando não se sabe ser beneficiado ou desfavorecido
pelas contingências naturais e sociais” (RAWLS, 1999, p. 17) – grifo
meu.
Nesse contexto, parece bastante oportuno
invocar as lições do Professor de Filosofia Alysson Mascaro, para o qual, o
sistema capitalista vigente impõe olvidar Aristóteles, cujo filósofo
preconizava evitar a carência e o excesso. O direito se apresenta como um
fenômeno de justiça. O nosso tipo de sociedade capitalista normatizou assim, de
tal modo que, para nós, alguns possuírem demais e outros, por outro lado, não
possuírem nada, é perfeitamente legítimo e justo. O que não seria justo e, isto
sim, seria inadmissível e injusto, seria estes que nada têm tomarem daqueles
que têm demais [Mascaro, Alysson].
O que é justiça, o que é a interação do
direito com a justiça? Justiça nos termos considerados pela sociedade
contemporânea é a justiça do capitalismo, é a ordem de dominação, de
distribuição da riqueza, ou, de exploração no sentido amplo. Se quisermos tomar
a Justiça numa concepção maior, mais elevada e desvinculada dos conceitos e
valores capitalistas, entenderemos que o direito não é a Justiça, é a constituição
do capitalismo. Para que a justiça seja algo a mais, haveremos de dissociar os
termos.[2]
Então, se estamos preocupados com um
sistema de Justiça, conforme já assinalado, é mister que pensemos em uma
comunidade na qual tenhamos a efetiva garantia de Justiça, em condições de
igualdade, sem saber se seremos beneficiados ou desfavorecidos, o que não se
alcança com meras declarações de direito. Na metade do Sec. XX surgiu a DUDH e
nem por isso esses direitos são garantidos décadas depois.
A propósito, convém lembrar Bobbio:
“Com efeito, o problema que temos diante de
nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se
trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu
fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas
sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados” (BOBBIO, 1992, p.45)[3] – grifo meu.
Qual é o conceito aristotélico de Justiça
ao qual se refere o Prof. Alysson? O
justo se dá no meio; o que é de menos e de mais não é justo. Ensina esse
renomado Professor que a Justiça para Aristóteles está no verbo dar, tirar de
quem tem demais para dar a quem tem de menos – distribuir justiça.
Ainda segundo o Prof. Alysson Mascaro,
nascemos inseridos numa cultura cuja forma de pensar o mundo sempre foi demasiado
influenciada pela seguinte realidade: a
propriedade privada está registrada na lei e a lei é inflexível. O princípio da
justiça, portanto, é a propriedade privada. Essa filosofia é a base do
direito que conhecemos.[4]
Perguntemo-nos, honestamente, o que tem representado
o modelo sacrificial e punitivo resumido no axioma Lex dura lex (lei dura, porém lei)? Ou, da mesma forma, vae victis (ai, dos vencidos!), seja nas sociedades conservadoras, ou mesmo nas
liberais.
Sem dúvida alguma, podemos considerar
produto desse sistema as frases ignóbeis, antidemocráticas, antissocialistas,
antiliberais, desumanas, grosseiras, que ouvimos na atualidade, do tipo:
“Ladrão tem que morrer; Que venha a pena de
morte; Pena máxima aos bandidos; Prostituta vagabunda; Ah! Era homossexual, sem
vergonha!; Morreu? Mas tinha passagem pela polícia ...; É bom castigar para
aprender; Grupo de extermínio, já!; Vingança, pelo menos ...”.
Inegavelmente, essa situação não passa de
um exemplo apenas a refletir o suposto Estado de Direito em que vivemos,
detentor de um aparato, compondo judiciário, ministério público e polícia, além
de outras instituições, com atuações muito distantes dos interesses dos seus
destinatários, em outras palavras, um suposto “Estado de Direito” que não realiza a res pública.
Disso resulta uma espécie de Estado
paralelo privado, com a presença de um poder paralelo de grupos, com mecanismos
de segurança (segurança privada); milícia paralela, guerrilha e tráfico, por
exemplo; que apesar de se tornarem auto justificáveis nas suas comunidades, não
garantem efetivamente os direitos dos quais os cidadãos são detentores.
Há um número incontável de pessoas, e isso
não acontece apenas no Brasil, que vive sob a cultura do medo, ante o recrudescimento
da repressão e até de movimentos reacionários.
É certo que nossas leis já não são
suficientes para a resolução judicial dos conflitos, levando-se em conta uma
concepção de direito, na qual se pretenda o exercício do direito respaldado
na moral supralegal, na ética, em síntese no sentido aristotélico de Justiça
(equidade e prudência).
Há quem atribua falsa substância ética em
seu conteúdo retórico; defeito de origem, pelas razões já bem conhecidas que
maculam o processo legislativo. Além disso, segundo o Prof. Alysson, esse
direito no qual respaldamos a nossa “justiça”, essencialmente técnico, não é
sensível, não vê diferença nos casos. A resposta é a mesma, revelando um gosto
pela uniformidade, o nosso gosto, que esse jurista brilhante denomina por
“comportamento de manada, opções de manada”, citando como exemplos as opções do
Judiciário, da OAB, do MP etc. [Mascaro, Alysson].
Discorrendo sobre a contradição da Justiça
Legal, Porteiro fez as seguintes considerações:
(...) dos hombres, en un momento de
acaloramiento, por razones y motivos propios, se toman a puñetes en la vía
pública: el agente de la ley los arresta, la justicia los pena, pues una riña
en público es un espectáculo inmoral y promueve desorden. Bien: en esa misma
sociedad, dos hombres adiestrados que comercian con sus puños y explotan la
imbecilidad humana, se exhiben ante un público de miles de personas: se golpean
brutalmente, se rompen las mandíbulas, se magullan el cuerpo, se aturden el
espíritu, y, ante la fiereza de sus golpes formidables, uno de ellos rueda por
el suelo sin sentido. Y esto se hace con el beneplácito, la presencia, las
apuestas y hasta el padrinazgo de los representantes de la justicia legal y con
el consentimiento tácito o expreso de la ley: la moral social aplaude, las
autoridades legales aplauden, la educación lo exige, la prensa defensora de la
moral y el orden establecido estimula, prestigia y también aplaude; el empresario
explotador de este vil comercio, cuenta los dólares y reparte el producto de la
explotación con sus exhibidos. Y esto, desde el punto de la justicia legal, ni
es inmoral ni atentatorio contra el orden.[5]
Aparentemente, os novos tempos exigem o
desenvolvimento de instrumentos modernos que permitam encontrar alternativas
razoáveis de aplicação da Justiça, suficientes para oportunizar o convívio
social de tal modo que a solução de eventuais conflitos, quando não seja
alcançada por consenso, mostre-se
definitivamente justa, sem violação aos próprios mandamentos Estatais, que seja
acima de tudo, fruto de resolução pacífica. Não se concebe que o órgão estatal
encarregado de fazer justiça lance mão de violência, ferramentas retrógradas,
viole as próprias leis, use de subterfúgios, ou por qualquer modo desrespeite
minimamente os direitos garantidos a quem se submete ao julgamento.
Mas como seria possível inverter tamanha
estrutura sedimentada como a cultura da Justiça baseada no direito positivado?
A ruptura de paradigma decorre naturalmente
dos grandes movimentos contemporâneos, dos quais cita-se exemplificativamente o
crescimento da psicanálise, a valorização ecológica e toda a defesa ambiental, a
retomada da espiritualidade, o uso de práticas alternativas, o estudo da física
quântica, a defesa dos direitos das minorias, a valorização da mulher [contrapondo-se
ao feminismo], a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o movimento de
cultura de paz, as revoltas socialistas, a globalização decorrente da
informática etc.
Essa mudança é realidade e por mais que
haja resistência não haverá retrocesso. O pouco que se caminhou não volta mais.
Surgiram as visões da alteridade e da Hermenêutica e chegou, enfim, o tempo de
se revelarem novos Direitos, ou específicos direitos, como: Direitos Humanos,
Direitos Difusos e Coletivos, Ambientais, do consumidor, Da infância e
juventude, Holístico, Bioético, Da internet, Da saúde pública etc. Agora talvez
seja tempo de se desenvolverem ferramentas capazes de fazer valer esses direitos
que vêm sendo teoricamente declarados.
Novos procedimentos e novos métodos de se
realizar Justiça também já despontaram há décadas como novas ferramentas
jurídicas, citando-se exemplificativamente, a Justiça Restaurativa, a Justiça
Terapêutica, o Direito alternativo anti-positivista, a Hermenêutica Jurídica; a
alteridade etc.
Mas como dar vida a esses instrumentos de
otimização a um sistema de justiça válido sem considerar o contexto: social,
econômico, histórico, cultural, sistêmico etc.?
Incontestavelmente, no limiar da terceira
década do século XXI não será possível mais insistir na aplicação de um sistema
de justiça válido para o início do século XX.
3.4
Proposta - significação
distinta para a Justiça
Talvez
já estejamos prontos para compreender a complexidade e
a interdependência da natureza humana, e o quanto isso implica nos conflitos
individuais e coletivos.
Que ao invés de castigar os agressores, a
Justiça deve buscar uma resposta capaz de oferecer algum tipo de restauração
emocional, financeira, social para as vítimas, sem focar unicamente nos
agressores, que igualmente devem e necessitam do mesmo olhar restaurativo.
Mas seria isso ao menos imaginável?
Bastaria que tentássemos nos colocar no lugar do outro, em qualquer circunstância,
ou que os Tribunais e seus
representantes fossem treinados para colocar as pessoas em condições de
praticar esse primeiro exercício. Quando cada indivíduo se perguntar se, “nas mesmas circunstâncias, provavelmente
tomaria a mesma atitude no lugar do outro”, provavelmente abrirá uma porta
imensa para enriquecer a sua compreensão e descobrirá a delicadeza humana e a sua
capacidade de relacionar-se socialmente.
A história do direito na nossa cultura está
escrita, especialmente no mundo ocidental, na
cartilha da repressão, começando pela reverência à mitologia repressora do
diabo. Aliás, vivemos na corda bamba de uma linha tênue sempre temerosos de
sucumbir na dualidade do bem e do mal, impregnados pelo maniqueísmo herdado da
cultura judaico-cristã.
Uma simples discussão num grupo de debates,
ou de WhatsApp, revela a nossa dificuldade de amar; de nos desapegarmos dos
sombrios sentimentos alimentados no orgulho e no egoísmo, e de entendermos
quanto fomos influenciados por uma visão dramática, dual, circunscrita no
limite estreito do certo-errado, que desagua inevitavelmente na visão limitante
do pecado/castigo. Uma simples troca de lentes, uma pequena mudança no modo de
interpretar os mesmos fatos e circunstâncias, é o bastante para darmos um passo
importante na construção de outra cultura; de paz, de restauração dos
sentimentos nobres, revelando a capacidade de mediar e o potencial para
solucionar sem conflitos ou injustiças.
Há muita gente agnóstica, de religiões
diversas e até ateus, lutando pela consolidação de uma Justiça que não empunhe
a espada; que não se sustente mais na dicotomia certo/errado, bom/mau, confiável/não
confiável; muito mais ética, portanto. Ora, por qual razão, espíritas,
seguidores dessa filosofia essencialmente humanista, haveriam de desejar outra
coisa?
O argumento mais utilizado pelos defensores
da Justiça retributiva é o de que o castigo não pode recair sobre a vítima,
devendo o ofensor receber uma resposta do Estado à altura da gravidade de sua
ação: em regra, a pior pena condenatória prevista no sistema penitenciário.
Por mais que esse sistema se revele
ineficiente, improdutivo, ineficaz e pernicioso, prejudicial à própria
sociedade, nenhum argumento tem convencido a população em geral de que esse modo
de responder ao crime e de tratar a pessoa que transgrediu a lei está falido e
de que a sociedade necessidade de novas propostas. É que impor a dor a quem
praticou um delito tem se revelado contraproducente ao longo dos séculos, tanto
para a vítima, quanto para o ofensor. Não deu resultado, não dá resultado, e
isso está provado, bastando ver as
condições de segurança em que vivemos atualmente.
Poderíamos experimentar outras
alternativas? Poderíamos agir, ao invés de continuar batendo na mesma tecla que
não rende frutos, custa caro, traz prejuízos enormes ao infrator, à vítima, ao
Estado e a toda sociedade? E o que dizer das reintegrações de posse?
Na proposta da justiça restaurativa importa
reconhecer os danos das vítimas e suas necessidades; ouvi-las, compreender o
contexto dos fatos, o histórico, as circunstâncias, todos os personagens, para,
a partir de esforços combinados,
trabalhar os recursos interiores dos ofensores, conjugados com aportes
familiares e possivelmente de outros agentes comunitários, encorajando-os a
assumirem suas responsabilidades. Nesse contexto, a possibilidade de assumirem
e corrigirem seus erros é muito mais efetiva.
Não se trata de mera imposição de pena, mas
de resgate de cidadania, de dignidade e até de vínculos sociais, num processo
que concede espaço positivo, de transformação de vida, tanto para vítimas como
para ofensores (H. Zehr).[6]
Nossa! Mas quem se disporia a fazer isso?
Realmente dá trabalho. O fácil nós já temos há séculos. Estuda-se o processo e
aplica-se uma pena. O resultado? Não temos.
Tudo que se queira fazer para promover
mudanças, para buscar novas alternativas, para sair de um patamar prejudicial,
dá muito trabalho. Há que se dedicar, suar, trabalhar, muito, muito.
Já vimos que o Direito e a Justiça,
enquanto Instituição, assim como o Estado, não realizam verdadeira e profunda
Justiça pautada na ética da alteridade e no sistema social.
Numa vida ética, a verdadeira liberdade vem
da responsabilidade; falar ao outro, prestar contas, cuidar do outro etc.
Façamos a experiência de analisar quantas
vezes fomos capazes, verdadeira e honestamente de, em um diálogo, ou discussão,
concluirmos: não tenho a razão última de
nada, não tenho a palavra final?
Nós somos capazes de pensar, nos atos da
vida comum, do dia a dia, que a prioridade do outro vem antes da nossa? Da minha?
Mas isso pode ser Justiça para a ética da alteridade.
Como não fazemos esse tipo de reflexão, fica
fácil o julgamento condenatório, repressor, pois é sempre o outro que está na
berlinda.
Culturalmente, fomos treinados, a partir
da formação escolar, para ganhar do outro, como se a vida fosse uma eterna
competição. Mas o melhor exercício nesse suposto jogo social, de caráter
dialético, seria saber dialogar, não ter a necessidade de “ganhar”, mais que isso, de “ganhar sempre” do
outro, como se tivéssemos nascido predestinados a morrer em um ringue.
Esse referencial vem produzindo
frustrações, desejos de vinganças, sentimentos ruins, desavenças sociais.
Por qual razão temos tanta resistência à
crítica? Porque temos de justificar, apresentar motivos, discutir e, no final,
ganhar, temos de ganhar, invariavelmente.
Ex. terrível para a população da cidade de
São Paulo, no plano político, foi a convivência de duas políticas de cuidado
com o dependente químico, durante 4 anos, que não dialogavam.
A incapacidade para o diálogo, tema caro à
hermenêutica e às filosofias do diálogo, diz muito da incapacidade para ouvir. Por vezes, ouvir o outro e acolher é quase
toda solução. Somos carentes de alguém que nos ouça. Ouvir verdadeiramente
é raro, sem julgar previamente, compreendendo a fragilidade humana, que é sempre
a minha também. Eis um dos grandes ensinamentos da Comunicação Não-violenta à
serviço da mediação de conflitos e do diálogo. (...). Trata-se, basicamente, de incluir o outro em vez de reforçar a
mentalidade da exclusão (os grifos são meus).[7]
No mês de maio gerei a maior polêmica num
grupo de discussão do WhatsApp por sustentar que o sistema penitenciário
brasileiro é falido, não recupera ninguém, e por isso mesmo deveria ser
reservado apenas a criminosos violentos que precisam ser alijados do meio
social.
Um colega defendeu ferrenhamente a prisão
de uma mulher que subtraiu ovos de páscoa no supermercado para dar aos filhos.
Absolutamente, ninguém aqui vai defender a
conduta da mulher; por favor, as pessoas têm o mal hábito de escutar o que não
dizemos. Subtrair é crime pelo nosso CP. Nossa lei garante o direito de
propriedade, então, óbvio, não podemos permitir que ninguém saia subtraindo os
bens alheios.
Calha lembrar: “O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não
despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito,
mas sem recorrer a categorias metafísicas” (BARROSO, 2008, p.7).[8]
Mas daí a sustentar que inserir uma mãe no
sistema penitenciário que temos hoje pelo delito cometido, especialmente diante
das bárbaras imunidades penais concedidas aos colarinhos brancos que temos
visto, escancaradas todos os dias na TV, vai uma distância enorme.
Nessas situações veem-se claramente as barreiras ou verdadeiras divisões de classes, etnias,
e outras que a mentalidade da exclusão tem imposto, colocando uma proteção
injustificável para quem menos a mereceria em detrimento de quem dela
necessita, tudo em decorrência do
preconceito e da discriminação.
Esses pensamentos e sentimentos estão tão
enraizados na nossa cultura, na nossa consciência e, portanto, na sociedade,
que não conseguiremos transformar o nosso sistema de justiça se não
enfrentarmos a discussão dessas questões. São
muros construídos ao longo de séculos, os quais contaminam nossas
instituições e por isso mesmo precisam ser transpostos pela ética da alteridade.
Ainda que não pareça, as nossas ações
individuais refletem no coletivo e criam uma consciência social que vai
desaguar nas instituições. Bem por isso, preciso me perguntar se as minhas
ações não são exclusivas. O meu próprio jeito de ser, como sujeito social está
produzindo quais referências?
Há mais de trinta anos, quando eu vivia em
uma cidade do interior, havia um profissional de carreira estatal destacada, espírita,
que estava crescendo bastante profissionalmente. Era amado e bajulado nos
centros espíritas em razão da sua oratória eloquente. Os funcionários que lhe
eram subordinados o detestavam.
As pessoas nos observam o tempo todo, tanto
quanto observamos os outros.
A vida egoísta, o mundo fechado, o círculo
elitista, egocêntrico, está muito distante dos anseios do ethos comunitário. Quem está acostumado a viver egoisticamente não ouve, quem não ouve não sabe o que aflige o outro; quem
não sabe o que aflige o outro não
inclui, quem não inclui não
contempla as necessidades diferentes na sua pauta. Não conviver com o
diferente significa construir muros (PELIZZOLI, Marcelo).
Nem de longe a pretensão aqui seria pregar a produção de pessoas boazinhas ou
ingênuas. Uma justiça que restaura ou que defende o excluído pode também
agir com rigor, mas com base na compaixão ou não-violência ativa, não na raiva e na punição.
4
Espiritismo:
4.1
Como o Espiritismo pode
configurar um certo senso de justiça a partir dos princípios, crenças e valores
que propugna? E, será que pode?
Primeiramente, convém destacar as leis
morais, nas quais devem-se pautar todas as pessoas que se dizem espíritas, ao
menos como bússola teórica. Especificamente no capítulo denominado Justiça, Amor e Caridade, há informação
consistente e orientação segura para o delineamento da conduta ética.
É certo que o Espiritismo se consolidou com
a contribuiu de outras literaturas que sobrevieram a Kardec, acrescentando contribuições
valiosíssimas, mas cabe ressaltar que O
Livro dos Espíritos já contempla enunciados suficientes para balançar as
estruturas da pessoa que vigia o seu agir e se preocupa com o aproveitamento da
sua existência terrena, bastando destacar o texto que se reporta ao caráter do
“homem de bem”.
4.2
Como, de posse desse
instrumental, devemos agir na sociedade com vistas à promoção da cidadania?
O pedagogo Rivail trazia em si o dom de educar.
Vamos lembrar que antes de fundar a
filosofia espírita o então Professor havia sido educador por três décadas, inclusive
com vasta produção literária.
Sua trajetória de estudos e trabalho, bem
identificada nos seus escritos revela que na sua concepção Cidadania se produz
com educação integral permanente.
Não se referia o fundador da Filosofia Espírita apenas à educação de crianças, somente
em escolas, mas especialmente nos espaços públicos, nas Instituições públicas e
privadas, nas famílias, nos grupos sociais, nas congregações religiosas, na
vida comunitária. Kardec falava em educação que incute hábitos; dizia que a
educação é o conjunto dos hábitos adquiridos [Q. 685a OLE]
E como temos agido em nossa sociedade
contemporânea?
Como juíza corregedora do cartório
judicial, cansei de tentar convencer os funcionários de que seria bom e
produtivo para todos, para o ambiente e para cada um individualmente, se o
melhor, aquele mais produtivo, tivesse a capacidade de terminar a sua tarefa e
ajudar o servidor mais lento, aquele cuja produtividade era naturalmente menor.
Raramente vi um grupo capaz de produzir conjuntamente; em regra havia
discórdia, reclamação, inveja, ciúmes, intolerância etc. Ao final todos
perdíamos em decorrência da herança
do sistema da competitividade, do “ganha-perde”.
Saí da experiência muito convencida de que
só há ganhadores quando somos capazes de compartilhar, colaborar, ajudar,
produzir e fazer juntos.
Por certo, todo o trabalho na construção do
conhecimento tem como objetivo final e central o ser humano, de modo que para
as pessoas em particular, ou para os indivíduos, devem se dirigir os esforços
visando à melhoria da educação. Vale lembrar Kardec uma vez mais, dada a
importância e a pertinência da questão 796 de OLE, que segue transcrita:
No estado atual da sociedade, a severidade
das leis penais não constitui uma necessidade? Uma sociedade depravada certamente precisa de leis severas.
Infelizmente, essas leis mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que
a lhe secar a fonte.
Só
a educação poderá reformar os homens, que,
então, não precisarão mais de leis tão rigorosas (os grifos são meus).
Um parêntese se faz necessário para pontuar
que neste planeta, considerado por Kardec de expiação e provas, há uma variação
infinita de graus evolutivos, sendo comum nos deparamos com seres bastante
angelicais convivendo muito próximos de outros que demonstram sinais de
instintos animalescos.
Todos estamos em processo evolutivo,
carentes de educação, ainda que nossas necessidades sejam distintas.
Bem sabemos que, feito cangurus, cada um de
nós carrega consigo uma bolsa invisível na qual são armazenados apenas bens
morais e intelectuais que compõem a nossa individualidade,
que sobrevive à matéria, nos diferencia dos demais nas sucessivas encarnações,
nos identifica e nos singulariza, realizando o processo evolutivo.
Vale ressaltar que desenvolver e expressar
essa individualidade constituem os mais importantes e legítimos direitos da
pessoa humana, atingíveis apenas se houver oportunidade real de educação.
Toda ação de uma pessoa capaz de
influenciar a outras, positivamente, pode ser considerada educativa. Em outras
palavras, educar seria estimular alguém a crescer, material, moral ou
intelectualmente, mas de forma a despertar no outro a livre manifestação do seu
potencial criador, sem imposições ou coações. Uma vez mais, Kardec: “Não se refletiu que a educação se compõe de
todos os instantes da vida, pois a toda hora a criança pode receber impressões”.[9]
É lindo assistir ao despertar de um bem que se manifesta no legítimo curso educativo,
especialmente se o educador permite ao educando aderir natural e
voluntariamente à sua oferta, mesmo que este [educando] não tenha percebido o
processo pelo qual capturou a
transformação.
A
educação está relacionada com a evolução. Sendo a
nossa existência uma grande oportunidade para o nosso aperfeiçoamento moral e
intelectual e tendo a reencarnação a primordial finalidade de permitir que
façamos a nossa parte na obra da criação, ou seja, que ajudemos a melhorar as
condições de vida no planeta, a palavra de ordem é evoluir. Mas como evoluir
sem educação?
5
Ética
A palavra ética provém do termo grego ethos, que significa caráter, modo
de ser de um indivíduo, conjunto de crenças e valores que configura nosso
modo de ver, pensar, apreciar e agir na sociedade. Ao nos referimos à ética, estamos nos reportando ao conjunto de
valores morais e aos princípios refletidos nas condutas individuais e coletivas
de uma sociedade, as quais, por si mesmas espelham seus valores, mais ou menos plurais,
mais ou menos solidários, mais ou menos ego, ou altruístas, mais
ou menos justos.
A propósito, convém ressaltar que, conforme
lições do Professor Alysson Mascaro, o fundamento mais importante de todos da
ética jurídica consiste no seguinte: Os
bens do mundo têm dono. Segundo ele, poderá chegar um dia, na humanidade,
que achemos isso um horror. Ex. os rios
não têm dono. Achamos um absurdo que os rios tenham dono, mas não achamos um
absurdo que as terras tenham dono.[10]
Insiste esse renomado Professor que o nosso
padrão ético está calcado no direito de propriedade: todos passam a ser
sujeitos de direito, todos só transacionam mediante sua vontade, fazendo
desaparecer com isso a ética do passado; qualquer forma de senhorio, escravo ou
feudal. Refere-se o eminente filósofo ao que denominamos de igualdade formal, “todos igual perante a lei”, e, diz ele,
só perante a lei, pois o jurista contemporâneo não tem a sensibilidade de
enxergar qualquer diferença em concreto.
Para refletir, vejamos:
A ética antiga dizia respeito à questão
acerca da verdadeira felicidade humana, promovida pela prática das virtudes.
Por exemplo, para Aristóteles a melhor forma de vida - theoria - é a actividade
racional que consiste na contemplação de verdades eternas (vida intelectual ou
contemplativa); já para a Ética Cristã a virtude máxima é o amor pelo próximo.
A tica aristotélica formula uma definição de virtude segundo uma ordem eterna
do cosmos, e de acordo com o lugar que o homem ocupa nesse cosmos. Ainda que de
modo diverso, o cristianismo pressupõe também a existência de uma ordem
superior, de uma entidade transcendente - Deus - que constitui o princípio e a
fonte das normas éticas.[11]
Ao que parece, ao menos do
ponto de vista dos balizamentos éticos, há, sem dúvida, grande diferença,
tomadas as considerações do Professor Alysson Mascaro entre os parâmetros da
antiguidade e os atuais.
Cabe perguntar se e quanto isso tem a ver
com o fato de pessoas, governos, Instituições, governamentais e não
governamentais, estarem se revelando tão doentes, violentas, escandalosas,
desrespeitosas, corruptas, inábeis, ineficientes. Na tentativa de buscar
respostas, não se pode ignorar reflexões como a do historiador da Unicamp (SP)
Leandro Karnal, para o qual “Não existe
país com governo corrupto e população honesta”. Para esse especialista, a ética deve começar pela família e pela
escola:
Está faltando, além da crítica à falta de
ética em Brasília e das grandes empreiteiras, que nós consigamos pensar na
microfísica do poder, ou seja, na falta de ética na escola, nas famílias e nas
empresas. Não existe país no mundo em que o governo seja corrupto e a população
honesta e vice-versa.[12]
Poucos discordariam de que nessa marcha e
toada, propusemos e construímos uma sociedade egocêntrica, da qual resultaram
pessoas e instituições sociais marcadas, naturalmente, pela mesma
característica egoísta. Apenas se não quisermos não compreenderemos a origem do
alto preço que estamos pagando por termos nos recusado a assimilar o sentido transcendente da reprodução
desses valores (ou da ausência de tantos outros), na vida das pessoas e do
mundo em que vivemos, entendida a questão do ponto de vista ético e sistêmico.
Talvez pudéssemos pensar que a moral
conservadora marcou um tempo natural da evolução humana, mas não poderíamos
deixar de reconhecer que também resultou na moral niilista: estando diante da morte, do nada, a pessoa
pode fazer o que bem entender - fruto também da moral burguesa.
Parece que o momento exige amadurecimento,
superação dessa fase axiológica infantilizada; muito trabalho na construção de
outras pilastras; edificação de fundamentos capazes de garantir um futuro mais
ameno, menos turbulento, em que o ego não apareça como o principal protagonista.
Ao que tudo indica, os acontecimentos
atuais (recrudescimento do egoísmo entre grupos e nações) estão colocando por
terra a moral conversadora, desmascarada pela incapacidade de gerar bons frutos,
produzir fraternidade, paz no mundo, solidariedade. Mais que isso, induziu à violência,
quando deveria, verdadeiramente, combatê-la.
5.1
Ética espírita?
Pensemos na assimilação, ou na
identificação, da ética corroborada pelos valores espírita (já que não se
conceberia uma ética exclusivamente espírita), com os quais convivemos
diuturnamente, alguns desde a mais tenra idade. Por evidente, existe uma
cultura calcada na filosofia espírita, que apregoa o bem comum, a caridade, o
amor ao próximo, a solidariedade, a fraternidade, a generosidade, a ideia da
imortalidade e da possibilidade de comunicação com os espíritos, da obsessão, e
tantos outros conceitos e valores, nobres em sua essência. O perdão às ofensas,
a misericórdia, a compreensão, a capacidade de olhar para o outro como um
espírito em evolução (assim como necessariamente deveríamos nos ver também),
com histórias pregressas de sucesso e de equívocos etc., seriam, em tese, o
sustentáculo da ética das pessoas forjadas na cultura espírita.
Então, qual explicação encontraríamos para
o fato de, a despeito dessa suposta construção ética, com o aporte da filosofia
espírita, adotarmos costumes egoístas, com os quais nos adaptamos tão facilmente,
considerando natural, por exemplo, a existência de:
- Ricos protegidos pela lei e pobres mal
assistidos;
- Crianças na rua e pessoas vestindo
casacos de pele;
- Pessoas utilizando, desregrada e
irresponsavelmente, os recursos naturais exclusivamente em benefício próprio;
- Pessoas colocando-se sempre em primeiro
lugar, resguardando para si mesmas mais direitos do que aos outros;
- Apartheids sociais, religiosos,
culturais/acadêmicos, étnicos, e outros tantos, que nos impedem de ver o rosto
do outro (eu, ou o meu filho, um de nós deve estar entre os melhores; a escola
do meu filho, pelo menos há de ser a melhor; alguém, pelo menos nosso amigo
próximo precisa ser alguém bem melhor que as outras pessoas).
Nós podemos até achar isso um absurdo,
assim na forma teórica, mas a verdade é que nos acostumamos com tudo isso
porque está na essência da nossa sociedade; faz parte do caldo de cultura que
herdamos ao nascer. Mais que isso, fomentamos esses hábitos e costumes durante
nossa existência, mesmo tratando-se de costumes conservadores, fomos levados
naturalmente a não perceber a prática de hábitos antiéticos. Esses costumes,
tão familiares na nossa cultura, não
fazem parte dos valores espíritas e, portanto, não poderiam estar na rotina de
pessoa alguma que pretenda construir a sua ética com a contribuição dos valores
espíritas, especialmente por não refletirem a chama do Amor presente nessa
Filosofia humanista.
5.2
Quais são nossas bases
filosóficas e os nossos parâmetros?
5.2.1
A Lei da Reencarnação.
Uma só existência sobre o nosso planeta, de
outra parte, não é mais que um instante insignificante na série inumerável de
encarnações do ser vivente.[13]
O parâmetro oferecido pela filosofia
espírita é, portanto, o da capacidade do ser humano, ou da potencialidade
jazente. Os humanos fazem-se por si mesmos porque pensam, agem, fazem escolhas,
gostam, desgostam, agitam, são. Impensável recusar capacidade às pessoas e,
portanto, absolutamente desnecessário emprestar-lhes muletas. Nós, pessoas
racionais, inteligentes, capazes, aptas a aprender e deliberar por nosso
próprio juízo, não carecemos de suplicar nada a Deus, não precisamos que Deus nos
facilite nada, nem que proveja algo para nossas vidas.
No dizer de Humberto Mariotti, a lei
palingenésica traz consigo uma nova atitude espírita em face do mundo e dos
seus valores. Especificamente a respeito da política, escreveu:
(...) se o espírita se movesse e atuasse de
acordo com o pensamento clássico da sociedade, não contribuiria em nada para a
renovação do mundo, e sua alma estaria vazia de riquezas espirituais. Ao
contrário, se o espírita se relaciona com a sociedade, ao renovar seu mundo
interior, forçosamente terá que modificar seu mundo exterior, isto é, a
organização social onde desenvolve o seu ser, dando lugar assim a uma
verdadeira política do espírito encarnado.
Segundo a Filosofia Espírita, a política é um fenômeno social que tem sua
origem na essência ética do indivíduo, razão pela qual o cidadão se manifesta
não somente como um ser moral, mas também como um ser político (...)[14] [o grifo é meu].
Basta ler esse pequeno trecho de Humberto
Mariotti para constatar o significado da reencarnação como uma lei natural que
possibilita ver a vida num processo contínuo, sem falsas expectativas de culpas
ou recompensas o que, reconheçamos, faz tremenda diferença na construção do
nosso patrimônio moral e intelectual.
Crer na possibilidade de que um Deus, ou um
ser superior qualquer, possa dar-nos uma bênção especial, conceder-nos a graça
de: uma união feliz, um bom emprego, a conclusão de uma faculdade, uma empresa
promissora, uma cidade mais civilizada, um governante menos corrupto etc.,
definitivamente não faz parte do ethos
forjado na cultura espírita, ou pelo menos não deveria fazer.
A propósito, em lição muito semelhante à de
Mariotti, disse outro esplendoroso pensador argentino, daquele professor:
Dedicando o Espiritismo a resolver somente
problemas metafísicos, próprios da velha escolástica, somente à investigação do
além-túmulo, preso à velha moral das religiões, que ensina a respeitar falsos
direitos e injustos privilégios, como coisas absolutamente necessárias e de
acordo com a justiça divina e causalidade moral de cada ser, perde seu caráter
de ciência integral e progressiva e, em vez de ser um ideal humano, propulsor
do progresso e das causas nobres, aberto a toda iniciativa de bem-estar social,
a toda tendência renovadora e libertária, torna-se, em mãos de espíritos
limitados, numa doutrina retrógrada e conservadora, numa arma formidável para
abater consciências e conter todo impulso generoso que tenda a estabelecer um
novo regime social, mais justo e conforme as exigências do progresso.[15]
Ambos
fazem um convite em suas oportuníssimas advertências para a reflexão sobre a
importância de vivermos a vida intensamente, aqui, encarnados, sem nos
ocuparmos da vida futura, ou com a dimensão espiritual da vida, pois a nossa
maior incumbência agora é dar conta das tarefas imediatas, quais sejam, o nosso
aprimoramento moral e intelectual, com o fim de ajudarmos a alavancar ao mesmo
tempo o progresso da terra que nos abriga.
Com essa concepção torna-se possível a
compreensão da divindade, não antropomórfica como aprendemos a assimilar, mas
como o espírito do Universo, nas palavras do sábio astrônomo contemporâneo de
Kardec, de cujo magnífico texto sobre Deus, extrai-se, a título de ilustração,
pequeno trecho:
Deus aparece-nos sob a ideia de um Espírito
permanente e residente no âmago das coisas. Deixa de ser o soberano a governar
das alturas celestes, para ser a lei invisível dos fenômenos. Não habita um
Paraíso povoado de anjos e de eleitos e sim a amplidão infinita, repleta da sua
presença, ubiquidade imóvel, totalizada em cada ponto do Espaço, em cada
instante do tempo, ou, por melhor dizer — eternamente infinita e sobranceira a
tempo, espaço e ordem de sucessão, qualquer passado e futuro existem para nós,
seres sujeitos a tempo e medida, não para o Eterno.[16]
Que de resto, muito se assemelha à definição
de Espinoza, segundo pude capturar em diversos sítios da internet:
Deus
de Espinosa (...) Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde,
de tuas relações, do mundo. Te sentes olhado, surpreendido?... Expressa tua
alegria! Esse é o jeito de me louvar. Para
de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim.
A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está
cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas
explicações? Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro de ti... aí
é que estou.[17]
5.2.2
As Leis Morais (Leis de igualdade, de liberdade, de
Amor, Justiça e Caridade)
Embora este estudo se assente, no que diz
respeito à filosofia espírita, basicamente na parte terceira de OLE, que trata
das Leis Morais, especificamente sobre a lei de Amor, Justiça e Caridade, carece
anotar a importância e a pertinência da observância das leis de igualdade e de
liberdade.
Não seria possível uma reflexão sobre
ética, cidadania e justiça, sem pincelar ao menos esses dois princípios tão
caros ao tema em estudo.
Iniciando o capítulo IX, que trata da Lei
Da Igualdade, em resposta à pergunta 803, pela qual Kardec indagou se todos são
iguais perante Deus, os espíritos responderam:
(...) Todos os homens estão submetidos às
mesmas leis da Natureza. Todos nascem igualmente fracos, acham-se sujeitos às
mesmas dores e o corpo do rico se destrói como o do pobre. Deus a nenhum homem
concedeu superioridade natural, nem pelo nascimento, nem pela morte: todos, aos
seus olhos, são iguais.
Não se sabe a razão por que essa obviedade
desaparece na pratica da vida real. A leitura da terceira parte de O Livro dos
Espíritos parece revelar direitos e deveres inquestionáveis, perfeitamente
conhecidos e simplesmente naturais; entretanto, não são nada simples na
vivência diária.
Mas a questão mais impactante deste
capítulo que trata da Lei da Igualdade, ao menos no ponto de vista desta
autora, é a 813, cujas pergunta e resposta merecem transcrição:
Há pessoas que, por culpa sua, caem na
miséria. Nenhuma responsabilidade caberá disso à sociedade?
Mas, certamente. Já dissemos que a sociedade
é muitas vezes a principal culpada de semelhante coisa. Demais, não tem ela que
velar pela educação moral dos seus membros? Quase sempre, é a má-educação que
lhes falseia o critério, ao invés de sufocar lhes as tendências perniciosas.
Simplesmente não importa o motivo pelo qual
a pessoa se acha em situação de miséria. Qual a razão que a levou a se entregar
às drogas, por que a pessoa desistiu de tudo e passou a viver em situação de
rua; nada disso importa, senão que na atual condição ela necessita de amparo e
proteção. Essa é a lei ditada pelos espíritos em OLE.
Quando tratam da Lei de Liberdade, considero
por demais importante a resposta dada pelos espíritos à questão 826 no mesmo
livro. Salvo melhor juízo, nela se encerra muito do que se tem procurado
compreender neste estudo. À indagação de Kardec sobre as condições em que
poderia o homem gozar de absoluta liberdade, esclareceram: “Nas do eremita no deserto.
Desde que juntos estejam dois homens, há entre eles direitos recíprocos
que lhes cumpre respeitar; não mais, portanto, qualquer deles goza de liberdade
absoluta.”
Por evidente, ainda que a liberdade seja
desejada, seja necessária, e represente uma conquista da civilização, o que a
pessoa fará com a sua liberdade se não tiver com quem compartilhar a vida? E se
tiver de conviver com um só indivíduo que seja já não terá mais liberdade
absoluta, pois a existência do outro pressupõe a existência de deveres meus
para com ele.
6
Interpretação equivocada da
reencarnação e de outros fundamentos espíritas?
Pois bem, incorporado esse ethos espírita (caráter, modo de
ser de um indivíduo), a proposta é criarmos, via educação, como prática
social que se dá em todos os âmbitos e a todo momento (lembremos as lições de
Kardec e Karnal), estratégias de inculcação de novos padrões e esquemas mentais
em que se inclua, definitivamente, o outro como objeto de desejo e realização.
Ou seja, efetivar o processo de socialização, pois em uma sociedade ególatra e
narcisista, na qual cada um toma somente a si como objeto de desejo, não há
possibilidade de construir e constituir cidadania.
Vamos refletir um pouco sobre um caso:
Finlândia. Todos sabemos que a Finlândia deu um salto qualitativo em todos os
seus indicadores a partir, principalmente, da revolução na educação que teve
início na década de 70. Começou por igualar a qualidade de ensino, filhos de empresários
e dos mais simples serviçais passaram a frequentar as mesmas escolas. Os
professores foram valorizados, criando um novo conceito de dignidade do
Professor. O governo investiu em inclusão social e quem ganha mais paga mais
impostos. Reduziram a carga horária e a quantidade de provas na escola para que
o aprendizado seja algo prazeroso, de modo que os alunos pensem
independentemente. Para os finlandeses Educação pública de qualidade é
Resultado também de políticas sociais, pois o estado de bem-estar social
financiado pelos impostos é fundamental para o sucesso do sistema.
E para todos: Mesa farta no refeitório da
escola, professores assistentes, psicólogos e pedagogos auxiliando todo o tempo
na escola, porque acreditam que todos têm o potencial de aprender. Isso,
definitivamente, exclui o conceito tão festejado entre nós de meritocracia.
Nossa educação foi programada para a
competitividade; portanto, não podemos dar outra resposta diante desse “deus”
tão dominador que conhecemos pelo nome de “mercado”, senão, “serei um vencedor”.
Não nos damos conta de que se a regra é “premiar alguém” automaticamente significa
que, em geral, outros foram ultrapassados [PELIZZOLI, Marcelo]. Nem percebemos
quanto somos engolidos por essa regra de que quanto mais seguirmos à risca a regra
imposta por esse tal mercado, muito maiores serão os “méritos”.
Em outras palavras, há “os bons” e “os
ruins”. Isso é tão forte culturalmente que posturas, métodos, iniciativas
diferentes, ainda nos assusta e nos repugna. Vai aqui uma confissão: A minha
educação foi tão rígida que há cerca de 35 anos recordo-me de ter ouvido com
indignação uma mãe tratar amorosamente a filha que havia reprovado na escola.
Pensei: Como assim? Ela ainda ganhou presente?
Atente-se ao seguinte texto do Professor Marcelo
Pelizzoli do Departamento de Filosofia da UFPE, sobre justiça restaurativa:
(...). Isso concretamente pode começar com a
dis-posição ao dia-logos e à socialidade como generosidade. O logos significa
originalmente palavra, sentido, depois traduzido como razão e estudo. No
diálogo, não tenho a razão última de nada, não tenho a palavra final, sou
dependente do jogo social, da dialética, e preciso saber jogar, saber viver.
Não se trata, no dia-logos, de ganhar do outro, pois o sistema ganha-perde pode
apenas produzir novas frustrações, ou vinganças. No dia-logos e na
generosidade, literalmente, a palavra é atravessada, passamos a palavra, de
ouvido em ouvido; e assim, damos algo, o tempo inteiro a vida é doação e
serviço. Para isso funcionar, é preciso aprender a ouvir e a dar de si sem
neuroses.[18]
Quantas vezes, diante das situações complexas que nos rodeiam,
perguntamo-nos que apropriação temos feito da compreensão da reencarnação?
Condenamos demasiado os movimentos
separatistas em nível internacional. Os europeus que não acolhem os refugiados
da Síria, os catalães agora odiando seus irmãos espanhóis, os americanos
levantando muros pra todo lado ... como se nós não estivéssemos do mesmo modo,
diuturnamente, criando cercas, as mais diversas, numa pretensão inexplicável de
nos colocarmos acima e além. Esquecemo-nos completamente de que esta
experiência é por demais transitória, fugaz, e até por nossa própria escolha
daqui a pouquíssimo tempo poderemos experenciar a outra face dessa moeda que hoje
pisoteamos.
Não é possível defender pena de morte,
manicômio, penas cruéis, a restrição à livre manifestação do pensamento,
impedir a manifestação da orientação sexual livremente, nada que ameace os
direitos humanos, ou praticar qualquer cerceamento ao exercício desses direitos
e das liberdades individuais, das livres escolhas, sejam elas de religião, profissão,
entretenimento, ou quais forem, sem olvidar a lei de reencarnação.
Não nos enganemos na tradicional e usual apropriação
da dimensão da Reencarnação. As leis de
Igualdade e de Liberdade bem colocadas na parte terceira de O Livro dos
Espíritos precisam ser invocadas para que se explicite de forma clara e
inconfundível esse senso de justiça, construído a partir da Filosofia Espírita.
Quando nos distanciamos desses conceitos
espíritas tão claros, estaríamos interpretando equivocadamente a lei da
reencarnação e outros fundamentos básicos do espiritismo? Não os compreendemos?
Ou estamos vivendo à margem deles?
Dois casos de comentários em listas de
discussão espírita pela internet causaram bastante indignação. O primeiro, há
vários anos, ocorreu quando um espírita português, por ocasião das guerrilhas
em Serra Leoa, manifestou-se contrário à ideia da maioria de deflagrar uma
campanha para que nossos governantes intercedessem junto ao governo daquele
país africano a fim de cessar aquela barbárie, na qual pessoas tinham braços e
pernas decepados impiedosamente. Argumentou o português que não se poderia
fazer nada, pois eventual interferência atrapalharia a oportunidade de nossos
“irmãozinhos” resgatarem suas dívidas.
Mais recentemente, na lista de debates da
CEPA, um debatedor sustentou o direito das pessoas de serem miseráveis:
(...) “há pessoas que vivem na miséria ou
quase miséria por que querem, e são felizes assim!” (...) “Mas ao supor um
Estado que vai acabar com essas diferenças sociais, você está tirando o direito
dessas pessoas escolherem viver com aquilo que elas elegeram como suficiente em
suas vidas” (...).[19]
Nem precisaríamos pensar em fraternidade,
ou caridade, bastaria ler o capítulo de O Livro dos Espíritos que trata das Desigualdades
sociais, questão 806. É lei da Natureza a
desigualdade das condições sociais? “Não; é obra do homem e não de Deus.”
Mas, parece imperioso analisar o conceito de Caridade
proposto por Kardec na Lei de Justiça, Amor e Caridade, por ser revolucionário;
por agasalhar, salvo melhor juízo, a principal base do ethos espírita.
Aqui por certo podemos sintetizar a
verdadeira expressão do que necessitamos como bússola para nossos atos diários.
6.1
Caridade e amor do próximo
886. Qual o verdadeiro sentido da palavra
caridade, como a entendia Jesus?
“Benevolência para com todos, indulgência
para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
O amor e a caridade são o complemento da lei
de justiça, pois amar o próximo é fazer-lhe todo o bem que nos seja possível e
que desejáramos nos fosse feito. Tal o sentido destas palavras de Jesus:
Amai-vos uns aos outros como irmãos. A caridade, segundo Jesus, não se
restringe à esmola, abrange todas as relações em que nos achamos com os nossos
semelhantes, sejam eles nossos inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores.
Ela nos prescreve a indulgência, porque da indulgência precisamos nós mesmos, e
nos proíbe que humilhemos os desafortunados, contrariamente ao que se costuma
fazer. Apresente-se uma pessoa rica e todas as atenções e deferências lhe são
dispensadas. Se for pobre, toda gente como que entende que não precisa
preocupar-se com ela. No entanto, quanto mais lastimosa seja a sua posição,
tanto maior cuidado devemos pôr em lhe não aumentarmos o infortúnio pela
humilhação. O homem verdadeiramente bom, procura elevar, aos seus próprios
olhos, aquele que lhe é inferior, diminuindo a distância que os separa.
A proposta, afinal, é sempre a de pensarmos
pelo menos no exercício de mudar a nossa predisposição para fazer, já que a transformação
dar-se-á no curso natural da vida se tivermos predisposição para tanto. Começar
limpando as nossas lentes, pois vendo de forma um pouco mais clara teremos
vontade de mudá-las.
É confortável pensar que alguém punirá quem
infringiu um direito nosso, mas nós também podemos nos propor a discutir como
tudo começou, quantos e quais foram os danos, quem foram os envolvidos e se
podemos participar do processo de reconstrução da normalidade.
Todos gostamos de ganhar, ter, desfrutar de
bens e situações confortáveis e prazerosas, mas infelizmente ainda não sabemos,
verdadeiramente, compartilhar. Até concordamos em doar o excesso, míseros inservíveis,
mas pouco conseguimos experimentar o prazer de facilitar o bem-estar alheio com
esforço pessoal nosso.
Já temos plenas condições de exercitar
algumas iniciativas interessantes, como:
·
Na Justiça: Experimentar a
utilização de alternativas à Justiça convencional – ilustrativas e
inspiradoras, como a Justiça Restaurativa, a Mediação, a Justiça Terapêutica, a
aplicação do Direito Alternativo.
·
Na Educação: A Aprendizagem-Serviço,
utilizada como ferramenta de desenvolvimento da Justiça social por estudantes
universitários; tantas outras práticas pouco aplicadas, vistas ainda à margem,
mas que ainda podem configurar iniciativas de vanguarda, “construtivismo” por
ex., escola da ponte, entre outras. Mas muito além desses exemplos, talvez o
ideal seja pensar em conceitos. Recorramos uma vez mais a Porteiro falando do
que necessitavam os espíritas ao seu tempo:
o
(...) intensificar nuestra acción moralizadora y transformadora de
los valores sociales, acción destructiva y a la vez constructiva, en el sentido
de neutralizar la falsa educación, la moral interesada y discordante, que se da
al hombre desde su niñez, y le enseña a cumplir deberes y a respetar derechos
que no son sino imposiciones arbitrarias, que están en con la justicia y con el
derecho natural y, por consiguiente, con los principios morales del
Espiritismo; educación que se inculca con el propósito de mantener esta
sociedad de privilegios, venero de odios, de guerras, de robos e inmoralidades;
destructiva, en fin, en el sentido de criticar y combatir, franca y abiertamente,
todas las injusticias, crímenes y prerrogativas sociales, enseñando a no
reconocer otras riquezas ni otros títulos de superioridad que aquellos que han
sido adquiridos con el esfuerzo propio y sin perjuicios de un segundo; y
constructiva en el sentido de enseñar la moral espirita en toda su fuerza, que
pone por encima de todas las ambiciones materiales, de todos los egoísmos y
orgullos, los cuales constituyen el fundamento del privilegio, la caridad, el
amor, la igualdad y la fraternidad.[20]
·
Para a Cidadania: métodos
diferenciados para alfabetização, especialmente de pessoas portadoras de algum
tipo de deficiência; alfabetização de adultos; inclusão de dependentes químicos
e portadores de deficiência física; ações afirmativas (oportunidade de trabalho
e estudo universitário); acesso à informação; acesso a práticas esportivas para
todas as pessoas, incluindo deficientes físicos, dependentes químicos e idosos
etc.
7
Considerações finais
Este início de trabalho se interrompe aqui,
mesmo com a convicção de que será necessária muita dedicação até sua evolução
ao patamar de uma efetiva contribuição para o pensamento em termos de cidadania
e justiça a partir da ética que se pode construir nas bases espíritas.
Jamais houve a pretensão de trazer
inovações, senão a de pincelar boas e oportunas reflexões eventualmente
inseridas em contextos maiores que podem ser revisitados para, percebidas
adequadamente, somar, contribuir, agitar o nosso saber.
Houve um passeio por alguns conceitos
básicos da filosofia espírita com o fito de suscitar a indagação sobre a
relação que temos mantido, a despeito do convívio com essas lições, com as
questões relacionadas com justiça e cidadania, e uma suposta ética construída
com base nesses postulados.
Uma tímida investigação à visão contemporânea
de direito/justiça permitiu questionar a possibilidade de desconstruir as
velhas bases sobre as quais se sustenta a Justiça ainda nos tempos atuais.
O estudo da ética limitou-se a parcas
pesquisas que mais serviram a compreender o significado da palavra e algo sobre
a construção do conceito do ponto de vista social e jurídico, abrindo a
possibilidade de trabalhar as contribuições trazidas pela filosofia espírita,
em especial os principais parâmetros extraídos das Leis Morais de O Livro dos
Espíritos.
A finalização do trabalho se faz com a oferta de um texto
considerado bem expressivo no que pertine ao tema em debate. Propõe-se,
singelamente, para o fechamento definitivo deste trabalho, que o centro
espírita se transforme, efetivamente, em espaço aberto à discussão de todo e
qualquer assunto relacionado ao convívio humano e social, dentro ou fora da
casa espírita. Em especial, que os centros espíritas possam agir e pensar cidadania e justiça pelas diretrizes fornecidas pela filosofia espírita, submetendo o tema aos interessados, ainda que nesse espaço haja inúmeras posições diversas, visões provenientes das mais diferentes fontes do saber (política, religiosa, cultural, familiar, profissional, experimental etc.).
Encerro deixando para a última reflexão, o
texto de Marcelo Pelizzoli:
Compreensão chocante e humilde da própria
Sombra “Encontrei o inimigo: e ele está dentro de mim” (Ditado Hindu) “Atire a
primeira pedra quem não tiver pecado” (Jesus). Há uma tendência primitiva
encarnada ainda em nossa sociedade, a mesma que está por trás da instituição
Justiça e da moral conservadora: o mal tende a ser projetado sempre para fora,
seja em nível pessoal, seja numa projeção coletiva (como os judeus no nazismo).
A não aceitação de si, da própria alteridade, ou seja, da sombra íntima, do mal
e estranheza que nos habita, faz com que não nos percebamos como partícipes de
sintomas chamados “ladrões, prostitutas, criminosos, depravados”, que são
odiados, mas, não obstante, no fundo, igualmente desejados! Deveras,
sintomatizam doenças psicossociais que nos habitam. Imagine se não tivéssemos
espelhos?!
Eis um belo ditado indiano: “Encontrei o
inimigo. Quem é ele? Ele sou EU!” Parece difícil admitir que um foco de
violência, uma ponta de iceberg visível, traz à tona o que temos dentro, de
raiva, medo, ódio, frustração, violação.
Laudamus te. Não é simples admitir que há um
ser maquiavélico dentro de nós, um sujeito inquieto, que se diz consciente e
autônomo e livre, e que olha o mundo a partir de si como centro, e tende a
desmoronar quando perde o controle da situação. Tudo deve estar em seu mundo,
no seu campo de visão, e à mão; a mani-pulare. E assim, desafortunadamente, o
mal também está bem dentro. Quando olho o outro com os olhos do julgamento
voraz, aquilo que vejo é sempre algo que já tenho em algum grau dentro de mim.
Gloriosa interdependência! Que me une ainda mais com a miserabilidade que penso
alheia. Felizmente, isso serve também para o bem, o bem que vejo em mim é tal
presente nos outros. Admitir isso é atuar na humildade, ou seja, na terra (húmus);
pôr os pés no chão, aceitando que o outro pode ter qualidades maiores que as
minhas, e que eu possa ter hábitos perniciosos iguais ao de quem considero
“ladrão”, “prostituta”, “cafajeste” etc. A diferença é uma linha tênue que a
qualquer momento – mudança de ambiente – pode se desfazer. É por isso
igualmente que podemos dar crédito ao humano mesmo em situação de degradação
econômica, pois na mudança do ambiente, temos outras condições de justiça, de
não violência.[21]
8
Bibliografia
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direito. 2008. Disponível em: http://georgemlima.xpg.uol.com.br/barroso.pdf.
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[1] KANT, I. 1982. Die Metaphysik der Sitten.
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[2] MASCARO, Alysson Leandro. Ética e direito. https://www.youtube.com/watch?v=eljt4HdqTBc&t=2630s
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[3] BOBBIO, Norberto. “Presente e futuro dos direitos do homem”. In: A
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Janeiro: Editora Campus,1992. p. 45-65.
[4] MASCARO, Alysson Leandro. Ética e direito. https://www.youtube.com/watch?v=eljt4HdqTBc&t=2630s
capturado em 7/9/2017, 9h.
[5] PORTEIRO, Manuel S., Origen de las Ideas Morales – Manuel S.
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Social Espírita – www.viasantos.com/pense,
p. 12.
[6] ZEHR, Howard. The little book of restorative
justice. Intercourse, Good Booksm.
[7] PELIZZOLI, Marcelo. Fundamentos
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Capturado em 22/5/17, 16h.
[8] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização
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Acesso em 15/05/2017.
[9] Textos Pedagógicos. 1ª Ed. São Paulo. Comenius, 1998.
[10] MASCARO, Alysson Leandro. Ética e direito. https://www.youtube.com/watch?v=eljt4HdqTBc&t=2630s
capturado em 9/10/2017, 14h.
[11] GONÇALVES, Gisela. Comunitarismo ou liberalismo? http://bocc.ubi.pt/pag/goncalves-gisela-COMUNITARISMO-LIBERALISMO.html
Capturado em 21/5/2017, 20h.
[12] KARNAL, Leandro. http://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2016/05/nao-existe-pais-com-governo-corrupto-e-populacao-honesta-diz-historiador.html
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[13] Geley. Gustavo. Ensayo de revista general y de interpetación
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[14] Mariotti, Humberto. Parapsicologia e materialismo histórico.
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[15] PORTEIRO, Manuel S. Espiritismo dialectico. Prólogo de Jon
Aizpúrua. Barcelona, Espanha: Edicomunicación, S.A., 1990.
[16] FLAMMARION, Camile. Deus na natureza. Rio de Janeiro: FEB, p. 402.
[17] Deus segundo Espinoza. http://visao.sapo.pt/artigossiteantigo/artigosimportadosforum/o-deus-de-spinoza=f733623
Capturado em 3/10/2017, 17h02.
[18] PELIZZOLI, Marcelo. Fundamentos para a restauração da justiça.
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http://gajop.org.br/justicacidada/wp-content/uploads/fundamentospararestauracaojustica.pdf capturado em 3/10/2017, às 21h35.
[19] Lista de discussão da CEPABrasil 07/11/2016.
[20] PORTEIRO, Manuel S., Espiritismo doctrina de vanguardia las mejores
páginas del humanismo espírita. Ediciones CIMA Apartado 3425 Caracas (1010) -Venezuela,
s.d., p. 104.
[21]PELIZZOLI, Marcelo. Fundamentos para a restauração da justiça.
resolução de conflitos, justiça restaurativa e a ética da alteridade/diálogo
http://gajop.org.br/justicacidada/wp-content/uploads/fundamentospararestauracaojustica.pdf capturado em 3/10/2017, às 21h35.