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quarta-feira, 10 de maio de 2023
quinta-feira, 4 de maio de 2023
ALLAN KARDEC: TEXTO E CONTEXTO - A PROPÓSITO DAS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS” DE SUAS OBRAS - por JON AIZPÚRUA
EDITORIAL - Revista Evolucion de Caracas -CIMA
ALLAN KARDEC: TEXTO E CONTEXTO - A PROPÓSITO DAS EDIÇÕES
“ANTIRRACISTAS” DE SUAS OBRAS
I – O TEMPO DE KARDEC E OS AVANÇOS CIENTÍFICOS E SOCIAIS
Ao longo dos séculos, a humanidade passou por muitas e
intensas revoluções de conhecimento que vão oferecendo novas perspectivas para
a compreensão e interpretação daquilo que constitui o que se concebe como
realidade. É o que se denomina, segundo Kuhn, de mudanças de paradigmas, quer
dizer, a substituição de antigas abordagens por outras que se mostram mais
eficientes para explicar contradições, esclarecer enigmas e apresentar
hipóteses que parecem ter maior plausabilidade e que ao serem verificadas são
incorporadas ao acervo científico e cultural. O dinamismo e a interação desses
processos constituem a própria essência do progresso.
O surgimento de novos
paradigmas ou esquemas interpretativos sobre o universo, a vida, o ser humano,
bem como os princípios e valores que imperam no âmbito cultural de ordem ética,
moral ou jurídica, ocorrem em um determinado contexto social, histórico,
econômico, político ou espiritual, de tal forma que nenhum sistema de
pensamento escapa aos condicionamentos inerente à época em que aparece e se
desenvolve, os quais se manifestam na
aceitação das crenças dominantes e na linguagem empregada para expressá-las.
Evidentemente, o espiritismo não é uma exceção a essa lei
geral que indica o processo gradual de avanços no campo do conhecimento.
Surgido em meados do século XIX, graças ao minucioso trabalho teórico e
experimental realizado por Allan Kardec contando com a assessoria de espíritos
desencarnados de elevada condição intelectual e moral, não poderia deixar de
receber as influências do contexto geral de sua época. , representado pelas
ideias filosóficas, científicas, religiosas, sociais ou morais que imperavam na
sociedade francesa e europeia, o que é de todos bem representadas em seus
livros, discursos e outras publicações.
A doutrina fundada por Kardec constituiu uma autêntica
revolução epistemológica que veio sacudir o ambiente que já assinalavam as
correntes materialistas, as crenças religiosas tradicionais e o modelo espírita
em geral. À luz de seus novos conceitos, já não era mais necessário nos
resignarmos à desesperança causada por visões niilistas e ateístas; nem havia
que depender de uma fé baseada em dogmas antigos ou na pretensa autoridade
divina de um livro sagrado para admitir a existência e onipresença de Deus, a
continuidade e transcendência espiritual após a morte, nem foi preciso sucumbir
aos medos provocados pelas doutrinas de punições eternas ou castigos infernais.
Uma nova concepção, racional e otimista, abria-se caminho para mostrar a
sobrevivência do espírito e sua continuidade evolutiva em existências
sucessivas, bem como a interação permanente entre desencarnados e encarnados
facilitada pelos médiuns com o concurso de uma ampla gama de faculdades
psíquicas.
A objetividade e honestidade com que Kardec se entregou aos
estudos dos chamados "mesas girantes" ou "mesas falantes"
sem se deixar levar por preconceitos sobre sua origem e natureza, permitiu-lhe
abrir um canal de comunicação com espíritos de uma singular categoria e a
partir das informações obtidas e de sua própria investigação e reflexão, formular
um sistema coerente em torno da complexa realidade material e espiritual. Foi
assim que avançou do fenômeno ao método e, pela validação dele, sistematizou e
codificou a doutrina espírita.
Consciente de que o espiritismo estava em sua fase inicial,
Kardec nunca pretendeu que com seus escritos, já estivesse terminado de maneira
definitiva ou acabada. Em inúmeras ocasiões referiu-se à progressividade dos
conhecimentos espíritas, os quais estariam abertos a retificações de acordo com
o progresso da ciência e da cultura. Ele nunca reivindicou um papel messiânico,
tão pouco aceitou que os espíritos que o orientavam fossem "reveladores
predestinados" ou que seus ensinamentos fossem absolutos ou infalíveis. Se
dentro do movimento espírita tem proliferado a crença de que todas as ideias
contidas em suas obras têm o caráter de verdades absolutas, tal suposição não
encontra respaldo, nem na letra nem no espírito, nos textos kardequianos.
É que não há pensador ou autor, independentemente da
magnitude e importância da tarefa realizada, que esteja completamente afastado
da influência e dos condicionamentos de seu tempo, e por ele que se faz
fundamental levar em conta esse contexto quando se quer estudar suas
abordagens, compreendê-las adequadamente e também criticá-las. No nosso caso,
no que se refere ao espiritismo, admiravelmente definido por Kardec como
"ciência observacional e doutrina filosófica das consequências
morais", há espaço e relevância para o exercício de um esforço intelectual
e crítico em torno do conjunto de suas ideias com vistas para uma atualização
conveniente e inevitável.
Se tal revisão não for feita dentro do Espiritismo, outros a
farão de fora e, de fato, isso já vem acontecendo nos campos da medicina, da
psicologia, da parapsicologia e outras disciplinas, embora tal empreendimento
nem sempre tenha sido verificado com devido rigor e sem preconceitos
filosóficos, teológicos ou acadêmicos. Os espíritas podem e devem empreender
sem medo uma tarefa que exige estudo, disposição e mente aberta. Os princípios
básicos que sustentam o espiritismo (Deus, espírito, sobrevivência,
reencarnação, mediunidade, pluralidade de mundos habitados) estão aí, válidos e
muito sólidos como pilares que sustentam uma grande cosmovisão. No entanto,
inúmeras opiniões que aparecem nos textos fundadores do espiritismo e giram em
torno daqueles princípios, respondem às ideias científicas do século XIX e aos
padrões culturais, sociais e morais que prevaleciam naquelas sociedades, e não
mais correspondem à ciência. a cultura do nosso tempo.
De meados do século XIX até os dias atuais, o mundo mudou
mais rápido e mais intensamente do que nunca. Toda uma série de processos
complexos ocorre em campos tão diversos como a física, a biologia, a
neurologia, a medicina, a engenharia genética, a aeronáutica, a psicologia, a
economia, a política, a sociologia e a antropologia, a ecologia, as lutas
sociais, a arte, a religião, a indústria bélica ou tecnologias de comunicação,
incluindo a digitalização e os desafios perturbadores da inteligência
artificial. Esses processos, em constante mudança e expansão, surpreendem,
desconcertam e nos obrigam a uma revisão de crenças e a uma atualização
imprescindível. Os que não se incorporem às transformações somente restará
desviar o olhar e se refugiar no conforto da fé.
II – AS DENOMINADAS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS”
Dito isto, é hora de se posicionar a respeito de um
acontecimento que hoje está agitando o movimento espírita e tem dado origem a
inúmeras discussões e até acirradas polêmicas. Sucede que um grupo ou coletivo
espírita brasileiro chamado “Espíritas à Esquerda” começou a publicar algumas
obras de Allan Kardec colocando na capa, em letras e cores bem destacadas, o
rótulo: “EDIÇÃO ANTIRACISTA”. Até o momento surgiram dois livros: O
Evangelho Segundo o Espiritismo e O Livro dos Espíritos.
No prefácio que colocam no início de cada uma destas obras,
dão a conhecer as razões que motivaram a sua iniciativa. Desde logo, eles se
apoiam na decisão do Ministério Público Federal do estado da Bahia em 2007,
segundo a qual existem "trechos da obra literária de Allan Kardec, tidos
como supostamente discriminatórios e preconceituosos em relação aos negros e
outras etnias". grupos”, pelo que as editoras de tais livros devem colocar
notas de rodapé relativamente àqueles “textos que possam suscitar dúvidas pelo
seu carácter discriminatório ou preconceituoso”. Nove editoras espíritas
firmaram termo de compromisso com o Ministério baiano para o cumprimento dessa
disposição legal.
Argumentam os responsáveis pelo coletivo EàE que o pensamento de Kardec estava impregnado
das ideias predominantes na Europa do século XIX sobre diversos assuntos
humanos e sociais, como era o caso da frenologia, teoria que considerava cada
região do cérebro responsável por determinada função, e a fisionomia, cuja tese
central afirmava que o caráter e outros elementos da psicologia das pessoas
poderiam ser interpretados por meio de suas características exteriores. Essa
influência, somada à que recebeu de outras disciplinas científicas e humanísticas
de seu tempo marcadas pelo racismo estrutural, se refletiria na linguagem que
utilizou para se referir às raças antigas e contemporâneas, distinguindo as
etnias brancas como populações “civilizadas” enquanto as etnias negra e
indígena foram classificadas como populações “selvagens”.
Por esta tendência eurocêntrica e etnocêntrica que se percebe
em alguns textos de Kardec, os representantes de EàE denunciam em diversos
comentários “ o racismo científico
contido nas obras kardecistas” e sustentam que a leitura de algumas perguntas
formuladas por Kardec e das respostas dos espíritos deixam evidente os preconceitos
socias que animavam aqueles que exerceram a prática da escravidão até épocas
recentes da humanidade.
Afirmam também que esses elementos racistas têm se revelado
na composição e no funcionamento do próprio movimento espírita e, nesse caso,
fazem referência específica ao brasileiro, que é, de longe, o maior movimento
espírita do mundo. Segundo dizem, "os negros e negras estão acostumados,
na maioria das instituições espíritas, a participar apenas como subordinados,
coadjuvantes, no apoio às atividades operacionais e principalmente como
beneficiários de projetos assistencialistas, sendo raro vê-los ocupando cargos
de direção nessas instituições".
Eles então justificam seus esforços para dar lugar a
“edições antirracistas” a partir de um sentimento de reparação pelo que
consideram uma dramática injustiça cometida contra populações historicamente
discriminadas, agredidas e marginalizadas; como alerta de que tal comportamento
tem permeado o movimento espírita, causando sofrimento a negros e negras que
participam de casas, sociedades ou federações.
III – ENCONTROS E DESENCONTROS.
Partidários, como somos, de um espiritismo nitidamente kardecista,
e, portanto, laico, livre-pensador, humanista, progressivo e progressista,
aberto à discussão e à crítica, não podemos olhar com indiferença para uma
iniciativa deste calibre. Nem podemos descartá-lo com argumentos simplistas,
muito menos com desqualificações. Acreditamos nas virtudes do diálogo e do
debate respeitoso e construtivo, sem que isso implique renúncia a convicções
baseadas em princípios e valores. Um diálogo fecundo e alteritário que facilita
a compreensão das perspectivas dos outros, precisamente dos que pensam
diferente, e que substitua a prática negativa de um monólogo empobrecedor.
Ressaltamos de saída que não questionamos as boas intenções
que animam os integrantes do coletivo EàE nem sua condição de espíritas.
Sentimos sua iniciativa como a expressão de uma reivindicação angustiante sobre
a possibilidade de os textos kardecistas servirem de suporte direto ou indireto
a ideologias racistas ou discriminatórias de qualquer signo ou natureza.
Por outro lado, não podemos deixar de apontar nossa
coincidência com algumas considerações feitas nos parágrafos que servem para
apresentar a "edição antirracista" de O Evangelho Segundo o
Espiritismo e O Livro dos Espíritos, pois, de fato, eles constituem elementos
básicos de nossas próprias reflexões, as quais divulgamos há décadas em livros,
artigos e conferências. Situados em perspectivas diferentes e distantes da
mentalidade religiosa e messiânica que caracteriza um segmento altamente
significativo de espíritas no Brasil e no mundo, assumimos que nenhum ser
humano, e no caso específico do espiritismo, nenhum autor ou médium, encarnado
ou desencarnado, goza de infalibilidade, pois suas ideias, resguardando suas
valiosas contribuições, são passíveis de serem avaliadas, revisadas, criticadas
e até mesmo superadas. Obviamente, um processo analítico dessas proporções
requer muito estudo, serenidade de espírito, rigor científico e a aplicação de
alguns critérios metodológicos indicados por Kardec como o "controle
universal dos ensinamentos dos espíritos" e a "concordância entre as
informações ".
E, precisamente, para manter um espírito aberto e crítico, é
fundamental assumir que nenhuma ideia e nenhum representante dela escapam à
influência do meio social, do momento histórico e também espiritual em que surgem.
Visto que não há texto sem contexto, não seria adequado examinar o aparecimento
do espiritismo em meados do século XIX com O Livro dos Espíritos e demais obras
do corpo Kardequiano, sem levar em conta as inúmeras variáveis concomitantes
que intervieram na aqueles tempos, em que os valores da tradição judaico-cristã
e o peso institucional da Igreja Católica prevaleceram de forma determinante em
todas as esferas da sociedade. Considere-se, por exemplo, os antecedentes
representados pelas obras anteriores de Swedenborg, Mesmer, Kerner ou Cahagnet
até o surgimento dos diversos episódios mediúnicos que se cristalizariam no
“espiritualismo moderno”, que alguns, com pouco rigor, rotulam como
“espiritismo anglo-saxão”. Kardec foi informado de suas experiências e de suas
teorias, delas aproveitou no que julgou útil, e desenhou a doutrina espírita
com perfil autônomo.
No que diz respeito ao celeiro das teorias científicas,
filosóficas, políticas, sociológicas, antropológicas, demográficas ou
econômicas que agitavam o ambiente europeu, tampouco se poderia entender o
surgimento do espiritismo com a monumental obra de Kardec sem reconhecer a
poderosa influência que em seu pensamento, em sua paixão por estudar e
entender, em sua frieza e ceticismo aplicados ao diálogo com entidades
espirituais, em sua mentalidade racionalista e livre de pensamento, exerceram
correntes como o Iluminismo, o positivismo, as utopias sociais e o
evolucionismo.
Em sua reflexão sobre o contexto sociopolítico, cultural e
científico que envolveu Kardec, os integrantes da EàE chegaram à conclusão de
que Kardec era racista, por ter assimilado teorias da frenologia, da fisionomia
e da visão social dominante à época. embora tenham reconhecido que os
princípios do espiritismo expostos em seus livros, quando devidamente
compreendidos e praticados, destruirão os "estúpidos preconceitos da
cor".
Nossa análise, entretanto, não nos leva a tal conclusão. De
forma alguma podemos concordar com a tese de que o fundador e codificador do
espiritismo era racista. Parece-nos um erro redondo contemplar a árvore e parar
de olhar para a floresta. Não se pode negar ou ignorar que existem opiniões de
Kardec e também dos assessores desencarnados que intervieram na elaboração da
doutrina espírita, que refletiam as crenças dominantes no século XIX acerca da
diferenciação entre "raças superiores ou civilizadas" e "raças
inferiores ou selvagens", mas são expressões secundárias e tangenciais a
todo o edifício doutrinário. Para além de algumas frases e termos que hoje
parecem inadequados e ultrapassados, o que é realmente essencial e cerne dos
ensinamentos kardecistas é o reconhecimento de que todos os espíritos são
livres e iguais em dignidade e direitos, e que a lei evolutiva da reencarnação
nos leva inexoravelmente à superação e erradicar todas as formas de
discriminação com base na cor da pele, nacionalidade, orientação sexual,
crenças, títulos acadêmicos ou condições socioeconômicas. E é isso que
aprendemos a partir do momento em que estudamos e internalizamos os princípios
e valores cardeais que sustentam e enriquecem a doutrina espírita.
Pensamos que as preocupações dos membros do coletivo EàE
poderiam ter sido canalizadas de maneiras diferentes. Por exemplo, editar os
livros em questão e colocar suas anotações no rodapé da página, informando que
são de sua autoria. Este é um procedimento legítimo e que pode abrir espaços
para discussões muito sérias. Ou, e talvez isso seja o mais relevante, escrever
e publicar artigos, ensaios, panfletos ou livros nos quais apresentem suas
análises, seus conceitos e suas críticas sobre esses temas. Consequentemente,
permitimo-nos convidá-los a realizar um maior esforço intelectual, com absoluta
autonomia, e a publicar e divulgar amplamente os textos resultantes do seu
trabalho. Tarefas que apontavam nessa direção já foram realizadas por diversos
pensadores espíritas como Quintín López Gómez, Manuel Porteiro, David
Grossvater ou Jaci Regis, entre outros. A esse respeito, parece muito oportuno
e esclarecedor transcrever aqui dois parágrafos extraídos do Espiritismo
dialético, obra monumental de Porteiro:
"A doutrina de Kardec e seus colaboradores, embora
verdadeira em seus princípios fundamentais, não pode ultrapassar os limites de
seu tempo ou romper totalmente com os moldes religiosos aos quais se
ajustou...". “Hoje, as exigências do espírito científico e filosófico, que
abarcam horizontes mais amplos, não se satisfazem com os expedientes religiosos
e morais de São Luís, de Santo Agostinho ou de qualquer outro santo filósofo ou
teólogo, nem com versos, preceitos ou parábolas extraídas da Bíblia”.
A inserção de qualquer texto acrescentado na capa dos livros
de Kardec parece totalmente equivocada e improcedente, ainda mais se for um
slogan carregado de tamanha agressividade como o de "edição
antirracista". Talvez não seja ilegal, nos termos estabelecidos pelas
normas do direito intelectual, nem constitua adulteração, stricto sensu, já que
nenhuma palavra ou parágrafo foi alterado ou excluído, embora alguns textos
tenham sido inseridos, pelo que podem considerar atos lesivos de acordo com os
princípios da lei moral. É que ninguém está autorizado a agir dessa forma,
independentemente da impressão que se tenha de um livro ou de seu autor. Há
muitos espíritas que se indignam com o que consideram uma afronta à memória do
fundador do espiritismo, e com razão. É fácil inferir que se são edições
“antirracistas” então as edições anteriores foram “racistas”, o que francamente
é inaceitável.
Se aprofundando nesse assunto, verá que tudo surge de um vício
de anacronismo, ou seja, de julgar conceitos expostos em épocas e contextos
anteriores de acordo com os ditames que derivam da aplicação de certos valores
e de giros semânticos que respondem aos
cânones do presente. Se essa forma de agir fosse aplicada aos milhões de livros
que constituem o patrimônio intelectual, cultural e espiritual da humanidade,
nenhum passaria no exame ou permaneceria intacto. Desde os textos básicos que
informam as diferentes tradições religiosas, até os admiráveis monumentos
filosóficos que surgiram no quadro do esplendor cultural helênico, e
continuando com as inúmeras criações do intelecto humano em todos os tempos,
nenhuma obra estaria exonerada de ser publicada com algum slogan que esteja de
acordo com as exigências do que hoje é considerado "politicamente
correto".
Nos perguntamos. Quantos slogans poderiam ser colocados na
capa das novas edições da Bíblia se nos ativermos à enorme carga de racismo,
homofobia, violência e discriminação que é fácil encontrar em inúmeros versos
entre a variedade de livros que a compõem? Também valeria a pena conjeturar se
as obras de Platão, Aristóteles ou outros clássicos gregos deveriam ser
publicadas com o aviso "edição antiescravagista" por razões bem
conhecidas.
Continuando com os trabalhos de Kardec, quem pretender fazer
uma nova edição de O Livro dos Espíritos e aceitar como bom o procedimento
seguido pelo coletivo EàE, poderá inserir na capa uma expressão altissonante
que, a seu critério, ajudaria a esclarecer os leitores. Por exemplo, que tal
uma "edição antissexista" ou uma "edição feminista" já que
existem conceitos naquela obra que refletem os valores culturais predominantes
do século XIX e que são inaceitáveis dados os avanços que foram feitos em a
favor do reconhecimento da igualdade entre mulheres e homens. E, continuando na
mesma ideia, poderia surgir uma "edição laicista" de O Evangelho
segundo o Espiritismo, para propor novas redações sobre aqueles pontos que
se prestam a confusão em questões como as descrições antropomórficas de Deus ou
o uso repetido de expressões tão inoportunas quanto as punições ou pecados.
Imaginemos o tratamento que seria dado a “A Gênesis”, obra em que Kardec
se propunha a examinar as teorias científicas de seu tempo em matérias tão
sensíveis e mutáveis quanto as que correspondem às investigações da biologia,
geologia, astronomia e outras disciplinas, contribuindo com elementos derivados
da análise espírita. É mais do que evidente, para qualquer pessoa estudiosa e
bem-informada, que várias das teorias que ele considerava corretas foram
completamente corrigidas e superadas. A Gênesis seria publicado com um slogan
na capa anunciando que é uma “edição científica, corrigida e atualizada”?
E o que dizer da obra O mundo invisível e a guerra,
em cujas páginas o admirado pensador Léon Denis conclama o povo francês a se
mobilizar para se juntar à defesa militar da pátria contra a invasão dos
exércitos alemães e invoca a ajuda de Juana d’ Arc e outros espíritos
protetores da Gália para derrotar os "bárbaros alemães". Se fosse
publicado atualmente, seria necessário colocar na capa o aviso de que se trata
de uma "edição antibelicista" e os textos seriam intercalados com
novas redações ou seria mais adequado inserir notas de rodapé nas questões
correspondentes esclarecendo que Denis estava escrevendo em 1919 no contexto da
primeira guerra mundial?
Paremos de contar. Com o que foi dito basta para deixar
claro nosso contundente desacordo com a decisão do coletivo EàE, sem deixar de
reconhecer que houve uma compreensível preocupação com os efeitos negativos que
poderiam derivar de uma posição crédula e acrítica em relação ao fundador as
obras do espiritismo em todas aquelas questões que os avanços científicos e
tecnológicos, a terminologia utilizada, bem como os resultados positivos das
lutas sociais, aconselham que sejam levados em conta para retificar o que seja
necessário e continuar avançando, tal qual
recomendou Kardec.
Já o dissemos e agora reiteramos: a nossa opinião, o
espiritismo começou com Kardec, mas não termina com ele, embora, até agora, o
estudo de suas obras seja essencial para conhecer e interpretar corretamente os
postulados teóricos e experimentais do doutrina que fundou. Não há verdadeiro
espiritismo sem Kardec, embora nem todo espiritismo esteja contido em seus
livros, nem tudo o que ele escreveu está
vigente. Além disso, a contribuição oferecida por autores encarnados e
desencarnados para o enriquecimento do patrimônio cultural do espiritismo não
pode ser subestimada. A espiral do progresso marca o rumo seguido pela evolução
da humanidade e o espiritismo não deve ficar de fora, mas, ao contrário,
deve-se insistir que ele tem muito a contribuir nos campos da filosofia, da
ciência, da reflexão ética e suas aplicações morais, com seu enfoque espiritualista
e humanista em questões transcendentais como a existência de Deus, a
sobrevivência espiritual, a evolução geral do universo, a comunicação
permanente entre as humanidades encarnadas e desencarnadas, o progresso eterno
através de vidas sucessivas e a cosmovisão de mundo que coloca a vida em na
Terra em um contexto universal.
IV – UNIDADE NA DIVERSIDADE
Nós concluímos. É legítimo que haja discrepâncias entre os
espíritas na interpretação de diversos assuntos. Afinal, é natural que isso
ocorra em torno de uma doutrina que não se sustenta sobre dogmas e no seio de
um movimento que não deveria se constituir como uma religião
institucionalizada. As divergências podem ser processadas por meio de um
diálogo respeitoso e fraterno, com "ouvidos para ouvir", priorizando
o substantivo e deixando de lado os adjetivos ou desqualificações.
O certo é que para além das diferentes opiniões que cada um
mantenha, prevalecem os valores morais em que todos concordamos. Valores que se
resumem em lições de indiscutível vigência e transcendência como as ensinadas
por Jesus de Nazaré, “o homem incomparável” como dizia Renan: ame o próximo
como a si mesmo; não faças ao outro o que não queres que façam para ti; que atire a primeira pedra
quem está livre de culpa, e só a verdade te libertará. Orientações que nos
convocam a esforçarmos em nosso processo
íntimo de superação moral e ao mesmo tempo trabalhar, aqui e agora, pela construção de um mundo melhor, mais
livre, igualitário, equitativo, solidário, fraterno e amoroso; uma sociedade
sem racismo ou discriminação sob qualquer pretexto. Conectados em torno dessa
aspiração superior, todos nós, espíritas e partidários de qualquer ideologia,
podemos dar as mãos e seguir em frente.
JON AIZPÚRUA
Tradução para o português – Alexandre Cardia Machado
domingo, 23 de abril de 2023
Medo da Morte por Alexandre Cardia Machado
Medo da Morte
Os espíritas não deveriam
temer a morte, pois a prática do Espiritismo nos permite o contato constante
com o outro lado da vida, ou seja, o Mundo dos Espíritos como bem o denominou
Allan Kardec. Assim que sabemos que existe apenas uma cortina entre dois
mundos.
Nestes meses de verão
tive a oportunidade de ler um interessante livro chamado – A morte é um dia
que vale a pena viver - Editoria Sextante, de autoria da médica geriatra
Ana Claudia Quintana Arantes, presente de minha filha também médica Beatriz.
Creio que o li em uma semana, apesar do tema, que sempre nos impressiona, pois
mesmo sem termos medo da morte e sabermos que ela virá para todos, a gente tem
uma certa aversão ao tema. Ana Claudia nos leva pelos caminhos da morte onde
ela é mais comum, nos hospitais e casas de repouso.
A sensibilidade da autora
se destaca pelo valor que ela dá à preparação para o momento da morte, anos ou
meses antes, se for possível. Dignificando a pessoa humana que está presente e
na maioria das vezes consciente deste processo.
A autora do livro de
educação cristã se demonstra ao longo da obra por ter adquirido uma visão de
mundo budista, que de certa forma se mostra interessante, pois ao menos no que
tange os cuidados com a pessoa que se aproxima do fim desta vida guarda muita
semelhança com o que médicos espíritas fariam.
Não quero dar spoiler
deixo aqui apenas o convite para aqueles que ainda sentem arrepios, só de
pensar no tema, para que enfrentem o livro de 222 páginas.
Quero chamar a atenção ao
relato interessante do momenta na vida desta médica, quando, tendo de trabalhar
muitas horas de plantão, com a irritação que sua vida provocava, dormindo mal, cheia de problemas,
como de certa forma todos nós podemos ter em nossa vida. No entanto ela
encontra a sua vocação, talvez do modo mais improvável, num momento de laser,
assistindo uma peça sobre Gandhi. Acho que todos que leram sobre a vida deste
personagem importante do século XX, podem ter tido um momento em que pensaram,
como alguém pode ser assim? Despojado e focado no bem comum. Pois bem, a
autora, nas suas palavras nos descreve o momento: “ Fico em pé, olhando Gandhi
com minha alma nua. Uma epifania ... Em poucos instantes, eu compreendi o que
estava para ser o grande passo da minha carreira, da minha vida. Naquele dia,
eu me dei conta de que a maior resposta que eu procurava havia chegado: todo o
trabalho de cuidar das pessoas na sua integralidade humana só poderia fazer
sentido se, em primeiro lugar, eu me dedicasse a cuidar de mim mesma e da minha
vida. Me lembrei dos meus tempos de carola. Me lembrei de um ensinamento importante
de Jesus: “amai o próximo como a ti mesmo”. E cheguei à conclusão de que tudo o
que estava fazendo pelos meus pacientes, por minha família, por meus amigos era
uma imensa, enorme, pesada e insuportável hipocrisia. Nesse dia, fui tomado por
uma fortaleza e uma paz que eu jamais imaginei que morassem em mim. Desse dia
em diante eu teria a certeza de estar com os pés no meu caminho: posso cuidar
do sofrimento do outro porque estou cuidando do meu”. Esta foi a chave que ela
encontrou para fazer cada vez melhor o seu trabalho. A passagem de Gandhi, que
a fez dar este salto de qualidade em sua vida, é bem simples- em certo momento
uma mãe vai ao seu encontro e lhe pede que diga ao seu filho que não coma
açúcar, o pedido é muito simples mas a resposta é surpreendente, Gandhi pede 2
semanas para poder ajudar a mãe. Passadas as duas semanas a mãe com o filho
retornam e Gandhi por fim dá o conselho ao filho. A mãe agradece, mas pergunta
a ele, porque ele precisou de duas semanas e Gandhi reponde, porque eu
precisava primeira passar duas semanas sem comer açúcar para depois poder
aconselhar.
O insight da médica é
claro, como ela poderia aconselhar seus pacientes se não estava fazendo consigo
mesma o que ela dizia.
Mas o mais importante,
acredito seja que cada um de nós encontre o seu momento, no qual passe a acreditar
que possa fazer a diferença primeiro a si mesmo.
Levamos desta vida, com a
nossa alma ao mundo dos espíritos, a vida que a gente leva, No Espiritismo
aprendemos que devemos trabalhar até o limite de nossas forças, e devemos fazer
isto com gosto, em coisas que nos dão prazer e que podemos ajudar a nós mesmos
e com isto ajudar os outros.
A Ciência da Alma, como proposto
por Jaci Régis dispões com relação a vida, a morte e nossa transcendência o
seguinte:
“Devemos desenvolver um espírito
crítico e explorar a realidade essencial do ser humano dentro da lei natural,
da naturalidade dos processos evolutivos, através da reencarnação, como uma
alma atemporal, imortal e em crescimento, seja no campo íntimo seja no campo
social.
Assim, o Espiritismo pretende
equacionar o ser humano essencialmente como uma alma, definindo sua natureza,
sua evolução, seu destino, dentro de um conjunto metodológico de reflexão,
observação e pesquisa.
A ciência espírita elabora seus princípios
a partir de um espaço interexistencial, onde a alma desenvolve sua vida
atemporal. Nesse espaço, sem fronteiras definidas, coexistem tanto a matéria
concreta quanto as energias que constituem o universo. Ali interagem o mundo
corporal e um plano extrafísico.
Na verdade, o corporal se insere nesse espaço
interexistencial como um hiato onde a alma se exterioriza na sociedade
organizada como humanidade em transição permanente, isto é, vida e morte.
Homem - o definirá essencialmente como um ser inteligente
- um espírito - atemporal temporariamente ligado a um organismo físico.
Essa atemporalidade sugere que o ser inteligente é
permanentemente atual. Ele não é de ontem, nem do amanhã é de hoje.
Atemporalidade o define como o ser que vive sua atualidade constante.
A imortalidade sinaliza a natureza espiritual do ser
inteligente. Ela o define como um ente que permanece. Este ser atemporal não
depende de um organismo para ser. Ontologicamente ele é. E vive a sua
experiência no nível mental na expectativa de desenvolver potencialidades que
lhe são inerentes”.
Como conclusão não devemos temer a morte e devemos sim
tentar viver o melhor possível, cuidando de nossa alma imortal.
Se você gostou do artigo, leia mais o Abertura de março:
quinta-feira, 20 de abril de 2023
Racismo e o Espiritismo por Alexandre Cardia Machado
Racismo e o Espiritismo
Da mesma forma que a sociedade, como um todo, passamos pelo mesmo processo de crítica à literatura, é o caso dos grupos antirracistas, que lutam pela revisão da história, este é um fato recorrente mundo afora e não seria o Brasil um caso diferente.
As obras literárias escritas antes da Segunda Guerra mundial estão sendo criticadas e em muitos casos forçadas a serem alteradas.
Pessoalmente, quando leio um livro dos anos 80, ou assisto um filme desta época, espero encontrar lá um pensamento desta época. Não me parece que seja necessário escrever, numa nova edição, ou na apresentação de um filme " esta obra representa o modo de pensar da época em que foi produzida" isto é óbvio. No entanto isto atingiu obras de Allan Kardec.
Não é possível mudar o passado e a mente eurocentrista de escritores do século XIX.
Podemos e devemos sim escrever artigos novos, ou outros livros que tratem destes fatos. Devemos nos declarar e praticar o antirracismo. Mas existem muitas dúvidas quanto à forma revisora na fonte.
Os jornais ligados à CEPA estão o tempo todo analisando, criticando e mesmo propondo mudanças na visão espírita. A própria CEPA, juntamente com o CPDoc lançaram a série literária - Livre Pensar- Espiritismo para o Século XXI, atualizando o pensamento com os avanços científicos e sociais.
No entanto, tempos de indignação são assim mesmo. Passa-se aqui e ali do ponto, entendemos que não com a intenção de adulterar uma obra, mas contextualizá-la, portanto, conviver com notas explicativas, em livros, não parece um problema.
Nos anos 80, Herculano Pires fez isto, ao traduzir os livros de Allan Kardec na LAKE, adicionou uma série de notas explicativas, não o fazia na forma de revisão, mas sim com o intuito de esclarecer, ou mesmo trazer para o português coloquial do fim do século XX alguns aspectos que podem trair o leitor.
Entretanto é inequívoco que Allan Kardec teve sim uma visão científica equivocada na questão dos indígenas e africanos, algo que nós chamamos a atenção, talvez pela primeira vez, já em 1997 no V Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, em Cajamar -SP, no trabalho “O ser humano e a evolução, uma análise pré-histórica”, não por menos este artigo é o mais acessado no blog do ICKS. https://icksantos.blogspot.com/2011/12/o-ser-humano-e-evolucao-uma-analise-pre.html. Parte deste texto está incorporado em nosso livro – Uma breve história do Espírito - num capítulo de mesmo nome.
“A posição de Kardec, ... os selvagens também fazem parte da humanidade e alcançarão um dia o nível em que se acham seus irmãos mais velhos. Mas, sem dúvida, não será em corpos da mesma raça física, impróprios a um certo desenvolvimento intelectual e moral”. (Gênese,1868)
A utilização de técnicas genéticas - ... Com relação às raças existentes atualmente, comparando as amostras coletadas dos mais diversos grupos étnicos, os cientistas verificaram serem pequenas e triviais as diferenças entre as raças. “A cor da pele, por exemplo, é resultado de mera adaptação ao clima – negra na África, para se proteger do sol forte; branca na Europa, para facilitar a absorção dos raios ultravioleta, que ajudam a produção da vitamina D.” (Revista Superinteressante, setembro de 1988). O que nos leva, portanto, a crer que, antes da expansão do homem moderno os nossos ancestrais comuns eram todos negros. (Celso Lima, A Evolução Humana 1990)
Todas as experiências feitas até hoje com seres humanos de diversas origens jamais conseguiram demonstrar a superioridade racial de qualquer tipo sobre os outros, qualquer ser humano, dispondo de condições semelhantes de alimentação e educação, apresentará resultados médios semelhantes em quaisquer testes psicológicos. É evidente que a comparação direta entre um europeu com um índio semicivilizado do interior da Amazônia, dentro de critérios desenvolvidos por europeus demonstrará uma superioridade muito grande a favor dos europeus, mas o inverso ocorrerá se colocarmos um europeu no meio da selva amazônica.
O racismo é uma criação recente, surgida com os grandes descobrimentos, quando por razões econômicas iniciaram-se as escravidões em massa de negros e índios, no século XVI.
Claro está que os seres humanos brancos, de olhos azuis, são oriundos dos primeiros homens modernos, que eram africanos e de pele negra e que as diferenças na inteligência e na posição social ocupada pelas diversas raças, se originam de sua história natural e não da sua história biológica. Somos todos da mesma família originária há 150 mil anos.
O conhecimento sobre este tema avançou infinitamente, com relação ao que se pensava então, em meados do século XIX. Tanto Allan Kardec como qualquer outro estudioso daquele tempo pensariam da mesma forma na sua época.
Isto é mais uma evidência de que precisamos atualizar o conhecimento, principalmente na forma de produção de conteúdo novos e não revisando obras antigas, pois elas em muitos aspectos estão superadas como não poderia ser diferente. Einstein não revisou Newton, simplesmente apresentou uma nova teoria da relatividade. Seguimos estudando as leis de Newton, naquilo nas quais as mesmas se aplicam perfeitamente, quase ninguém estuda Newton na fonte, razão pela qual não se faz necessária nenhuma alteração na mesma.
Por outro lado, defendendo a tese de que Kardec não era racista estrutural, lá atrás no século XIX ele ressaltava que "na reencarnação desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade". Uma ideia muito além de sua época.
Extraído do editorial do Jornal Abertura de abril de 2023.
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