segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A Liberdade de Ser e Escolher - Jaci Régis publicado no Jornal Abertura - novembro de 2013


Talvez o que caracterize as aspirações das pessoas de nossos dias seja encontrar a sua identidade.

O que somos, porque vivemos, para onde vamos?

Essa questão tem sido colocada há milênios, sem uma resposta satisfatória. Apenas que tudo são “insondáveis desígnios de Deus”, aos quais ninguém tem o direito de  questionar.

Foi estruturado um modelo de vida, a partir de uma suposta rebeldia da criatura com Deus, o pecado original. Indignado Deus teria determinado que as consequências desse pecado se transmitisse para toda a espécie humana, em todas as gerações. Tudo foi fechado no pressuposto da vontade de Deus. Porta vozes dessa pretensa vontade, as crenças estabeleceram regras, ordenações, que se  sobrepuseram às virtudes naturais.

Pecador nato, réprobo, o ser humano, não tem direito à liberdade de escolha. A vida, o corpo, o ar, a terra, a chuva, o sol, a morte, seu casamento, seus filhos, eram propriedade divina. Sua única esperança é o futuro, além da morte, caso aceite sem reclamação todas as dores e humilhações, se castre e renuncie a si mesmo. O modelo humilha a pessoa, não considera seus sentimentos, nem sua estrutura de ser.

Durante muitos séculos tal modelo não foi contestado. Veio, porém, a ruptura e chegamos ao século vinte, onde a ciência, desligada desse modelo, avançou rapidamente, penetrando no que se chamava “desígnios de Deus”.

As transformações se sucederam e a autoridade das religiões, criadoras e guardiãs do modelo, caiu ao ponto da sociedade rebelar-se contra a atuação desse Deus que as crenças sustentam.
 
Jaci Régis

 

E O ESPIRITISMO?

 

O Espiritismo afirma ter resolvido a equação: quem somos, de onde viemos e para onde vamos?

Em tese é verdade, dentro do seguinte enunciado: “Somos Espíritos imortais, criados simples e ignorantes e estamos no processo de crescimento evolutivo, em segmentos reencarnatórios”. Ele também apresenta uma nova visão da humanidade como um conjunto de Espíritos, ora encarnados, ora desencarnados.  Esse novo modo de entender as reações e interações físico-mentais, introduzirá uma forma mais ampla de avaliar o objetivo da vida e do projeto individual de cada um.

Na prática, contudo, esse enunciado sucumbe pela utilização de linguagem e conceitos muito parecidos com o modelo das igrejas.

Kardec aceitou, na elaboração de O Livro dos Espíritos, a utilização pelos Espíritos de uma linguagem que mantém, em parte, a falsa relação entre Deus e a criatura, constantemente ressaltada nos textos bíblicos. Felizmente podemos analisar suas ideias no contexto atual, em relação ao contexto em que as escreveu.

Ali encontrarmos expressões como Deus não permite. Como ousais pedir a Deus conta dos seus atos? Pensais poder penetrar os seus desígnios? Os únicos sofrimentos que elevam são os naturais porque vêm de Deus. Deus castiga a humanidade com flagelos destruidores, para fazê-la avançar mais depressa.  As classes que chamais sofredoras são mais numerosas porque a terra é um lugar de expiação.

944 – O homem tem o direito de dispor da própria vida?

Não. Somente Deus tem esse direito.

953.a – Concebe-se que, em circunstâncias, seja o suicídio repreensível, mas figuremos o caso em que a morte é inevitável e em que a vida só á abreviada por alguns instantes.

-É sempre uma falta de resignação e de submissão à vontade de Deus.

Outro ponto básico da doutrina espírita é o livre arbítrio. Sem ele o ser seria uma máquina, é textual. O livre arbítrio, contudo, tem sido mais usado como explicação para os fracassos e justificar as dores, numa aplicação direta da Pena de Talião. E não como pedra angular do edifício da vida universal, no pleno exercício da liberdade de construir seu próprio destino. A liberdade  é vista, sob certa forma, como problema,  dada as consequências dos atos, gerando culpa e castigo.

Que dizer então da pretensa supremacia dos Espíritos sobre os encarnados?
 Nesse sentido a sua influência é maior do que supondes, porque muito frequentemente são eles que vos dirigem”  diz O Livro dos Espíritos, anulando a teoria do livre arbítrio.

A elaboração das ideias pelos gênios e pessoas inteligentes, “somente algumas proveriam deles próprios. Pois frequentemente são apenas interpretes do pensamento de Espíritos, estes sim, sábios e superiores”.

Mantido esse entendimento é difícil tornar aceitas as teses espíritas.

 

UM NOVO PERFIL

 

É necessário modelar um novo perfil para a pessoa humana e para a sociedade.

Agora as pessoas pretendem ter liberdade de escolher o próprio destino, sem o tacão de Deus.

São legítimas essas pretensões? Afinal o que se pretende? Destruir a sociedade? Viver sem valores, sem regras, sem limites?  Eis as questões que precisam ser consideradas. 

Aborto, eutanásia, células embrionárias, liberdade sexual, liberdades civis. Geralmente esses temas são logo combatidos pelas religiões que pretendem parar o sol, com seus dogmas e falar em nome de Deus.

Os espíritas não têm por que temer debater essas reivindicações. Não se trata de aceitá-las ou negá-las simplesmente. Nem, muito menos, engrossar o protesto frágil das religiões. Devemos, com bom senso, aceitar o desafio, pois o progresso se faz sempre.

A sociedade materialista e também niilista, segue adiante.

Kardec disse que o Espiritismo “Não deve fechar as portas a nenhum progresso, sob pena de suicidar-se.” E adverte “Entretanto, embora seguindo o movimento progressista, é mister faze-lo com prudência e evitar entregar-se às cegas aos devaneios, utopias e novos sistemas. Importa faze-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde e com conhecimento de causa”.

Orientação mais segura e positiva impossível.

O Espiritismo tem base para uma nova visão de Deus e do ser humano. Mas precisa reelaborar algumas posições, que o afastam das aspirações mais legítimas.

Que será do mundo sem Deus?

Mas que Deus?

Estes textos parecem definir bem o que o Espiritismo pode afirmar:

“Deus tem as suas leis, que regulam todas as vossas ações. Se as violardes, a culpa é vossa. Sem dúvida, quando um homem comete um excesso, Deus não expende um julgamento contra ele, dizendo-lhe, por exemplo: tu és um glutão e eu te vou punir. Mas ele traçou um limite: as doenças e por vezes a morte são consequências dos excessos. Eis a punição: ela resulta da infração da lei.”

“A sabedoria de Deus se encontra na liberdade de escolha que concede a cada um, porque assim cada um tem o mérito de suas obras.” (123).

 

Nota da Redação : Este artigo data de junho de 2007 não encontramos evidências de que tenha sido publicado anteriormente.

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