sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O Espírita na Civilização do Espetáculo - por Alexandre Cardia Machado

 

O Espírita na civilização do espetáculo

 

A partir de 1968, num movimento iniciado na França, estudantes anarquistas armam barricadas em Paris e este movimento ganhou o mundo, os estudantes predominantemente socialistas queriam mais liberdade, mais espaço, menos estado, deste movimento nascido na Universidade de Paris e a seguir vai pela Sorbonne surgiu a chamada  contracultura como imortalizada na canção de Caetano Veloso - É proibido proibir.

No ocidente a moda pegou. Em Praga, justamente no mundo socialista, na reclusão da Cortina de Ferro a iniciativa terminou com os tanques acabando com a festa na chamada Primavera de Praga contra o Stalinismo. Houve claro reações na França e em outros países, mas a resultante deste movimento só proliferou mesmo onde já existia o estado democrático de direito implementado. Qual foi a resultante disto? O sistêmico ataque à tradição, a implantação das ideias socialistas nas áreas humanas das universidades e a valorização do pluralismo em todas as suas formas. Vivemos este processo que tem pontos positivos e negativos.

Não buscamos aqui criticar esta ou aquela tendência ideológica, mas sim reconhecer que estamos mergulhados na sociedade ou até na civilização do espetáculo.

Mario Vargas Llosa - Prêmio Nobel de Literatura em 2010 -  escreve em 2012 um livro denominado – A civilização do espetáculo – Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, livro que compila alguns artigos publicados no jornal “El país” de Madri, alternados de capítulos mais aprofundados sobre o momento vivido pela cultura no século XXI. Este livro dialoga com o escrito por Guy Debord – A sociedade do espetáculo - de 1967, Debord é protagonista dos eventos desencadeados em 1968, época de Guerra Fria, Guerra do Vietnam, movimento hippie e muitas outras mudanças sociais.

Cultura, Política e Poder

O livro de Vargas Llosa parece ter sido escrito para o momento que presenciamos nos últimos anos no Brasil, trago ao nosso público espírita com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento de nosso senso crítico, tão importante para que possamos exercer nosso livre arbítrio.

Segundo Vargas Llosa, “cultura não depende de política, em todo caso não deveria depender, embora isso seja inevitável nas ditaduras ... o resultado deste controle,” (do estado) “como sabemos, é a progressiva transformação da cultura em propaganda. Numa sociedade aberta, embora a cultura se mantenha independente da vida oficial, é inevitável e necessário que haja relação e intercâmbios entre cultura e política”.

Podemos observar claramente, no Brasil, após a entrada do presidente Bolsonaro, o porquê da reação do meio cultural ao mesmo, pois em que pese nos governos anteriores estarmos numa sociedade aberta, houve sim, muito apoio oficial a iniciativas culturais, nem tão independentes assim, havia claramente um viés ideológico. Para o seguimento da cultura, a chegada de Bolsonaro representou uma ameaça, pois ele traz um ideário muito diferente, tradicional, moralista.

Vargas Llosa, chama a atenção que é justamente nestas sociedades abertas que “... ocorre o curioso paradoxo de que, enquanto nas sociedades autoritárias é a política que corrompe e degrada a cultura, nas democracias modernas é a cultura – ou aquilo que usurpa seu nome – que corrompe e degrada a política e os políticos”. O autor costuma neste livro navegar entre cultura e jornalismo pois hoje os jornais televisivos passaram mais a ser um show, assim se refere a este último que ele considera que tem mudado de investigativo para espetaculoso.

“O avanço tecnológico audiovisual e dos meios de comunicação, que serve para contrapor-se aos sistemas de censura e controle nas sociedades autoritárias, deveria ter aperfeiçoado a democracia e incentivado a participação na vida pública. Mas teve efeito contrário, porque em muitos casos a função crítica do jornalismo foi distorcida pela frivolidade e pela avidez de diversão da cultura reinante”.

Wilson Garcia, em 2003 no VIII SBPE – Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita apresentou um trabalho – O Espiritismo na Sociedade do Espetáculo - que permanece inteiramente atual. Destaco um parágrafo: “ O espetáculo, contudo, predomina sobre a informação ou até mesmo por conta da informação, e está presente nas imagens e acima de tudo como ideologia consumada por um consenso de prática, como a dizer que só é possível ser eficiente na conquista de mentes e corações se a produção e a veiculação de mensagens obedecer aos critérios que o sentido do espetáculo impõe. Diante disso, ao Espiritismo resta resolver o conflito de produzir a sua “divulgação” sob o império do espetáculo sem perder a capacidade de falar sobre suas propostas com a coerência e a lógica interna da doutrina. Será isso possível?”.

Vamos tentar responder a esta pergunta no fim deste artigo.

Como exemplo disto presenciamos diariamente nos diversos meios de comunicação uma briga entre Bolsonaro e a Rede Globo de Televisão, os motivos desta disputa são diversos e não perderemos tempo em tentar descrever. Acreditamos que cada leitor tenha a sua própria visão sobre isto.

Ou seja, tudo acaba se transformando num espetáculo, o IBOPE do Jornal Nacional havia muito não era tão alto, contra ou a favor, todos querem assistir o último capítulo da novela Globo x Bolsonaro, foi antes assim com o cai não cai de Temer, foi assim com o impedimento da Dilma, com a lava jato.

No entanto chamo a atenção a uma recente pesquisa de opinião do Instituto Paraná Pesquisas, onde procurou-se saber em quem o brasileiro confiava mais: “Das 2.390 pessoas ouvidas na pesquisa, por amostragem, 37,9% alegou que confia mais em Bolsonaro. Já para 32,6%, confiaval mais no apresentador do Jornal Nacional e contratado da Globo, William Bonner”. Só por fazermos esta pesquisa, fica demonstrado o quanto se misturam cultura, jornalismo, política na sociedade do espetáculo. Tudo o que importa são imagens, fofocas, idas e vindas. Segundo Llosa “...transformar em valor supremo essa propensão natural a divertir-se tem consequências inesperadas: banalização da cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo”. Quem ainda não se pegou, repassando mensagens sobre “a última” de algum dos envolvidos, memes etc. fazemos isto achando que é o natural, não importa se é verdadeiro, contanto que o outro sorria ou fique com muita raiva, conforme seja o nosso desejo.

Recorrendo mais uma vez a Wilson Garcia: “ A cultura do espetáculo é dominante por cumprir aquilo que Debord coloca: “o que aparece é bom, o que é bom aparece”(grifo meu). A crítica, portanto, da mídia do espetáculo é o reconhecimento de que ela faz do espetáculo essa razão social de viver. A notícia é espetáculo na TV, mas também nos jornais, nas revistas e nas emissoras de rádio. E é notícia sob o formato do espetáculo não apenas o fato, o acontecimento inusitado; também aquilo que antes não era, ou seja, a vida privada. O privado e o público se confundem nesse cenário difuso, assim como os interesses que dominam o público e o privado” . O indivíduo permite que sua intimidade adquira visibilidade por conta de uma certa consciência da necessidade de tornar-se visível para obter reconhecimento; o espetáculo midiático é o meio pelo qual a visibilidade pode alcançar a dimensão pública mínima. A vida que se torna espetáculo deixa de ser a vida para se tornar espetáculo. Dentro desse contexto, cabe perguntar: qual é a possibilidade de ser sem tornar-se espetáculo?

 

Escultura em Praga, na Jungmann Square –Adão e Eva do artista Tcheco Krystof  Hosek

Retornando a 1968, é correto pensar que é proibido proibir, ao menos no que diz respeito à liberdade de pensar e à liberdade de expressão, a Lei de Destruição nos ajuda a entender a dinâmica da sociedade em permanente evolução. Mas ao Espiritismo cabe ver a agir para que este movimento da sociedade seja pelo bem maior.

Jaci Régis num artigo denominado - Sobre o Comportamento – no livro de 1990 – Caminhos da Liberdade que reúne alguns artigos desta página 2 no jornal Abertura assim se refere às razões individuais que nos levam a reagir aos costumes. “Reclama-se, porém, contra o que parece um excesso de teorização e pede-se noções objetivas, claras, determinando o que é ou não compatível com a moral. Todavia, é da essência do próprio sentido evolucionário da vida, deixar que cada um elabore seu código moral, seus valores. Parece inquestionável, que a vida pede um sentido espiritualizante, para que a coragem para romper as tenazes do moralismo castrador, não se converta em flagelo da própria alma, pervertidos em seu sentido de crescimento, para transformar-se em instrumentos de desfribilamento da alma. O comportamento espiritualizante baseia-se, pois, no sentido libertador, na ruptura, desatrelando o ser de imposições culturais superadas e projetando uma nova noção de moralidade que não cerceie, contingencie ou castre o Espírito. “

Mario Vargas Llosa parece chegar à mesma conclusão de Jaci Régis 22 anos depois – “O desapego à lei nos leva de maneira inevitável a uma dimensão mais espiritual da vida em sociedade. O grande desprestígio da política relaciona-se sem dúvida com a ruptura da ordem espiritual. (...) ao desaparecer essa tutela espiritual da vida pública, prosperaram todos os demônios que degradaram a política e induziram os cidadãos a não ver nela nada que seja nobre e altruísta, e sim uma atividade dominada pela desonestidade. A Cultura deveria preencher esse vazio que outrora era ocupado pela religião. Mas é impossível que isso ocorra se a cultura, atraiçoando essa responsabilidade, se orienta resolutamente para a facilidade, esquiva-se aos problemas mais urgentes e transforma-se em mero entretenimento”.

 

Fake News e a exposição do privado

Tramita agora na Câmara dos Deputados, após ter sido aprovada no Senado mudanças na legislação, enfocada na contenção da difusão das chamadas “fake news” (notícias falsas – boatos, usados para denegrir políticos, mecanismo já descrito por Maquiavel, como uma estratégia que os “príncipes” deveriam usar contra seus inimigos, já no século XVI), portando não sendo nada novo.

Vargas Llosa, escreve um parágrafo que cabe como uma luva ao momento que vivemos: “Não se trata de um problema, porque os problemas têm solução, e este não tem. É uma realidade da civilização de nosso tempo diante da qual não há escapatória. Teoricamente, a justiça deveria fixar os limites a partir dos quais uma informação deixa de ser de interesse público e transgrida o direito à privacidade dos cidadãos. Na maioria dos países, semelhante julgamento só está ao alcance de astros e milionários. Nenhum cidadão comum pode arriscar-se a um processo que, além de afoga-lo num mar litigioso, acarretaria altos custos em caso de perda da ação”.

Não atoa a  lei de Liberdade e a Lei de Justiça estão em sequência no Livro dos Espíritos, se por um lado somos livres para pensar em qualquer coisa, nossas ações sempre trazem consequências, que podem em alguns casos ferir direitos, reputações, interesses enfim, causar alguma reação no campo da justiça a outrem. Atualmente qualquer pessoa, de posse de um smartphone está com as portas escancaradas para o mundo inteiro, uma foto, um vídeo pode causar consequências enormes, vejam o exemplo da morte por asfixia filmada de George Floyd causou reações no mundo inteiro. Quem sabe selando a sorte do Presidente Trump nas eleições americanas este ano? As reações no mundo todo demonstram que o que fazemos em público, ou mesmo no privado uma vez tornado público tem consequências.

Se divulgarmos notícias falsas, se mostrarmos nossa intimidade, se formos uma celebridade poderemos fazer sucesso ou então passarmos por um grande vexame.

Na questão 830 do LE assim nos dizem os amigos espirituais “o mal é sempre o mal, e todos os vossos sofismas não farão que uma ação má se torne boa. Mas a responsabilidade do mal é relativa aos meios que se tem de compreendê-lo” ao que tudo indica no Brasil, seremos forçados e entender as consequências através do rigor da lei.

Os Espíritas:

Wilson Garcia explora bastante a questão da penetração da divulgação do espiritismo na civilização do espetáculo, como  transformar o conhecimento espírita em algo significativo numa sociedade fútil?

“O desafio espírita, em tempos de intensa consciência da necessidade de fazer com que o maior número possível de pessoas conheça a Doutrina, consiste na solução de um conflito ético: como divulgar sem tornar a Doutrina um espetáculo de aparências? Esse desafio, contudo, só existe como tal para aqueles que concebem a existência do conflito. Os que não percebem qualquer tipo de contradição entre as condições colocadas e o sentido espírita do saber, ou que não lhes atribuem um valor considerável, não têm que se preocupar com o desafio.”

Este parece ser o ponto principal, a força do meio é enorme, o consumismo, a universalidade do conhecimento tende a diluir todas as doutrinas, os ideais libertários das estruturas sociais, iniciadas no pós-guerra que desencadeou nos fatos já relatados, também o são. Mas a mensagem da imortalidade dinâmica que o Espiritismo nos trouxe precisa superar todos os obstáculos e se fazer presente entre os espíritas e perante a sociedade.

Como enfrentar, primeiro tendo consciência de que vivemos neste mundo, onde a aparência, o status, são um fator que se estabeleceu. Cada indivíduo pode ser um influenciador digital, as mídias socias estão aí.

Segundo Wilson Garcia “A questão enlaça os dois pontos anotados: a cultura do espetáculo, que domina o cenário social, e a consciência construída por essa cultura. Uma massa de criaturas, submetida às mensagens constantes de uma “realidade” na qual todos estamos imersos, é levada à adoção de uma consciência passiva e favorável ao espetáculo. A crítica portanto, deve alcançar em primeiro lugar à cultura dominante, ao sistema que reproduz a cultura e faz dela o elemento de dominação. Sob um fluxo permanente de mensagens altamente persuasivas para valores declarados naturais, a cultura tende a se reproduzir e a assumir a aura de natural. Daí o fato de as criaturas numa sociedade do espetáculo capitularem e assumirem o espetáculo como algo intrínseco e normal e convergirem para ele naquilo que as toca. Os espíritas, sob essa consciência, são levados também a adotar o sentido do espetáculo sem qualquer constrangimento e sem nenhuma preocupação com os sentidos dominantes”.

Buscamos portanto mais uma vez chamar a atenção para o papel do indivíduo e porque não, dos meios de divulgação espíritas, como este jornal, de que não nos deixemos cair na tentação da adesão incondicional ao espetáculo. Hoje existem milhares de coisas que ajudam a vida a ser melhor vivida, mas nunca nos esqueçamos de que o nosso Espírito Imortal, está aqui para ser feliz, para evoluir, para adquirir sabedoria, saibamos separar o joio do trigo.

Portanto, tanto no que diz respeito à cultura, jogos de poder ou a disseminação de fake news ou intimidades pessoas na internet, enquanto espíritas não podemos nos imiscuir de pensarmos e agirmos politicamente, não devemos praticar política partidária nas casas espíritas, mas precisamos sim pensar como interagir em nosso mundo sem sermos frívolos.

Enfim o que parece importante é exercermos nosso livre pensamento sempre de forma responsável e focado no bem, não podemos ser geradores nem multiplicadores do mal e nem precisamos ser agentes da civilização do espetáculo.

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Mario Vargas Llosa

É um escritor peruano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2010, nascido em Arequipa (1936) iniciou sua vida cultural e literária como socialista, mas que se afastou do mesmo após conhecer a União Soviética em 1966 e rompeu com os Castros por discordar da censura imposta em Cuba, segundo algumas de suas biografias. Em 1983 concorreu à Presidência da República Peruana e foi derrotado por Fujimori. Vargas Llosa tem uma ampla obra literária. (diversas fontes)

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Guy Debord 

Pensador Francês, marxista, seus textos foram a base das manifestações do maio de 68 – A Sociedade do Espetáculo é o seu trabalho mais conhecido. Em termos gerais, as teorias de Debord atribuem a debilidade espiritual, tanto das esferas públicas quanto da privada, a forças econômicas que dominaram a Europa após a modernização decorrente do final da Segunda Guerra Mundial (Wikipédia)

  

Alexandre Cardia Machado, engenheiro mecânico, reside em Santos

Nota: Artigo originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.

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