O Espírita na
civilização do espetáculo
A partir de 1968, num movimento
iniciado na França, estudantes anarquistas armam barricadas em Paris e este
movimento ganhou o mundo, os estudantes predominantemente socialistas queriam
mais liberdade, mais espaço, menos estado, deste movimento nascido na
Universidade de Paris e a seguir vai pela Sorbonne surgiu a chamada contracultura como imortalizada na canção de
Caetano Veloso - É proibido proibir.
No ocidente a moda pegou. Em Praga,
justamente no mundo socialista, na reclusão da Cortina de Ferro a iniciativa
terminou com os tanques acabando com a festa na chamada Primavera de Praga
contra o Stalinismo. Houve claro reações na França e em outros países, mas a
resultante deste movimento só proliferou mesmo onde já existia o estado
democrático de direito implementado. Qual foi a resultante disto? O sistêmico ataque à
tradição, a implantação das ideias socialistas nas áreas humanas das
universidades e a valorização do pluralismo em todas as suas formas. Vivemos
este processo que tem pontos positivos e negativos.
Não buscamos aqui criticar esta ou
aquela tendência ideológica, mas sim reconhecer que estamos mergulhados na
sociedade ou até na civilização do espetáculo.
Mario Vargas Llosa
- Prêmio Nobel de Literatura em 2010 - escreve em 2012 um livro denominado – A
civilização do espetáculo – Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, livro
que compila alguns artigos publicados no jornal “El país” de Madri,
alternados de capítulos mais aprofundados sobre o momento vivido pela cultura
no século XXI. Este livro dialoga com o escrito por Guy Debord – A sociedade
do espetáculo - de 1967, Debord é protagonista dos eventos desencadeados em
1968, época de Guerra Fria, Guerra do Vietnam, movimento hippie e muitas outras
mudanças sociais.
Cultura,
Política e Poder
O livro de Vargas
Llosa parece ter sido escrito para o momento que presenciamos nos últimos anos
no Brasil, trago ao nosso público espírita com o objetivo de contribuir para o
desenvolvimento de nosso senso crítico, tão importante para que possamos
exercer nosso livre arbítrio.
Segundo Vargas
Llosa, “cultura não depende de política, em todo caso não deveria depender,
embora isso seja inevitável nas ditaduras ... o resultado deste controle,” (do
estado) “como sabemos, é a progressiva transformação da cultura em propaganda.
Numa sociedade aberta, embora a cultura se mantenha independente da vida
oficial, é inevitável e necessário que haja relação e intercâmbios entre
cultura e política”.
Podemos observar
claramente, no Brasil, após a entrada do presidente Bolsonaro, o porquê da
reação do meio cultural ao mesmo, pois em que pese nos governos anteriores
estarmos numa sociedade aberta, houve sim, muito apoio oficial a iniciativas
culturais, nem tão independentes assim, havia claramente um viés ideológico. Para
o seguimento da cultura, a chegada de Bolsonaro representou uma ameaça, pois ele
traz um ideário muito diferente, tradicional, moralista.
Vargas Llosa,
chama a atenção que é justamente nestas sociedades abertas que “... ocorre o
curioso paradoxo de que, enquanto nas sociedades autoritárias é a política que
corrompe e degrada a cultura, nas democracias modernas é a cultura – ou aquilo
que usurpa seu nome – que corrompe e degrada a política e os políticos”. O
autor costuma neste livro navegar entre cultura e jornalismo pois hoje os
jornais televisivos passaram mais a ser um show, assim se refere a este último
que ele considera que tem mudado de investigativo para espetaculoso.
“O avanço
tecnológico audiovisual e dos meios de comunicação, que serve para contrapor-se
aos sistemas de censura e controle nas sociedades autoritárias, deveria ter
aperfeiçoado a democracia e incentivado a participação na vida pública. Mas
teve efeito contrário, porque em muitos casos a função crítica do jornalismo
foi distorcida pela frivolidade e pela avidez de diversão da cultura reinante”.
Wilson Garcia, em
2003 no VIII SBPE – Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita apresentou um
trabalho – O Espiritismo na Sociedade do Espetáculo - que permanece
inteiramente atual. Destaco um parágrafo: “ O espetáculo, contudo, predomina
sobre a informação ou até mesmo por conta da informação, e está presente nas
imagens e acima de tudo como ideologia consumada por um consenso de prática,
como a dizer que só é possível ser eficiente na conquista de mentes e corações
se a produção e a veiculação de mensagens obedecer aos critérios que o sentido
do espetáculo impõe. Diante disso, ao Espiritismo resta resolver o conflito de
produzir a sua “divulgação” sob o império do espetáculo sem perder a capacidade
de falar sobre suas propostas com a coerência e a lógica interna da doutrina.
Será isso possível?”.
Vamos tentar
responder a esta pergunta no fim deste artigo.
Como exemplo disto
presenciamos diariamente nos diversos meios de comunicação uma briga entre Bolsonaro
e a Rede Globo de Televisão, os motivos desta disputa são diversos e não
perderemos tempo em tentar descrever. Acreditamos que cada leitor tenha a sua
própria visão sobre isto.
Ou seja, tudo acaba se transformando
num espetáculo, o IBOPE do Jornal Nacional havia muito não era tão alto, contra
ou a favor, todos querem assistir o último capítulo da novela Globo x Bolsonaro,
foi antes assim com o cai não cai de Temer, foi assim com o impedimento da
Dilma, com a lava jato.
No entanto chamo a
atenção a uma recente pesquisa de opinião do Instituto Paraná Pesquisas, onde
procurou-se saber em quem o brasileiro confiava mais: “Das 2.390 pessoas ouvidas na
pesquisa, por amostragem, 37,9% alegou que confia mais em Bolsonaro. Já para
32,6%, confiaval mais no apresentador do Jornal Nacional e contratado da Globo, William Bonner”. Só por fazermos esta pesquisa, fica demonstrado o quanto se
misturam cultura, jornalismo, política na sociedade do espetáculo. Tudo o que
importa são imagens, fofocas, idas e vindas. Segundo Llosa “...transformar em
valor supremo essa propensão natural a divertir-se tem consequências
inesperadas: banalização da cultura, generalização da frivolidade e, no campo
da informação, a proliferação do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do
escândalo”. Quem ainda não se pegou, repassando mensagens sobre “a última” de
algum dos envolvidos, memes etc. fazemos isto achando que é o natural, não
importa se é verdadeiro, contanto que o outro sorria ou fique com muita raiva,
conforme seja o nosso desejo.
Recorrendo mais
uma vez a Wilson Garcia: “ A cultura do espetáculo é dominante por cumprir
aquilo que Debord coloca: “o que aparece é bom, o que é bom aparece”(grifo
meu). A crítica, portanto, da mídia do espetáculo é o reconhecimento de que ela
faz do espetáculo essa razão social de viver. A notícia é espetáculo na TV, mas
também nos jornais, nas revistas e nas emissoras de rádio. E é notícia sob o
formato do espetáculo não apenas o fato, o acontecimento inusitado; também
aquilo que antes não era, ou seja, a vida privada. O privado e o público se
confundem nesse cenário difuso, assim como os interesses que dominam o público
e o privado” . O indivíduo permite que sua intimidade adquira visibilidade por
conta de uma certa consciência da necessidade de tornar-se visível para obter
reconhecimento; o espetáculo midiático é o meio pelo qual a visibilidade pode
alcançar a dimensão pública mínima. A vida que se torna espetáculo deixa de ser
a vida para se tornar espetáculo. Dentro desse contexto, cabe perguntar: qual é
a possibilidade de ser sem tornar-se espetáculo?
Escultura em Praga, na Jungmann Square –Adão e Eva do artista Tcheco Krystof Hosek
Retornando a 1968, é correto pensar
que é proibido proibir, ao menos no que diz respeito à liberdade de pensar e à
liberdade de expressão, a Lei de Destruição nos ajuda a entender a dinâmica da
sociedade em permanente evolução. Mas ao Espiritismo cabe ver a agir para que
este movimento da sociedade seja pelo bem maior.
Jaci Régis num artigo denominado - Sobre
o Comportamento – no livro de 1990 – Caminhos da Liberdade que reúne alguns
artigos desta página 2 no jornal Abertura assim se refere às razões individuais
que nos levam a reagir aos costumes. “Reclama-se, porém, contra o que parece um
excesso de teorização e pede-se noções objetivas, claras, determinando o que é
ou não compatível com a moral. Todavia, é da essência do próprio sentido evolucionário
da vida, deixar que cada um elabore seu código moral, seus valores. Parece
inquestionável, que a vida pede um sentido espiritualizante, para que a coragem
para romper as tenazes do moralismo castrador, não se converta em flagelo da
própria alma, pervertidos em seu sentido de crescimento, para transformar-se em
instrumentos de desfribilamento da alma. O comportamento espiritualizante
baseia-se, pois, no sentido libertador, na ruptura, desatrelando o ser de
imposições culturais superadas e projetando uma nova noção de moralidade que
não cerceie, contingencie ou castre o Espírito. “
Mario Vargas Llosa
parece chegar à mesma conclusão de Jaci Régis 22 anos depois – “O desapego à
lei nos leva de maneira inevitável a uma dimensão mais espiritual da vida em
sociedade. O grande desprestígio da política relaciona-se sem dúvida com a
ruptura da ordem espiritual. (...) ao desaparecer essa tutela espiritual da
vida pública, prosperaram todos os demônios que degradaram a política e
induziram os cidadãos a não ver nela nada que seja nobre e altruísta, e sim uma
atividade dominada pela desonestidade. A Cultura deveria preencher esse vazio
que outrora era ocupado pela religião. Mas é impossível que isso ocorra se a
cultura, atraiçoando essa responsabilidade, se orienta resolutamente para a
facilidade, esquiva-se aos problemas mais urgentes e transforma-se em mero
entretenimento”.
Fake News e a
exposição do privado
Tramita agora na
Câmara dos Deputados, após ter sido aprovada no Senado mudanças na legislação,
enfocada na contenção da difusão das chamadas “fake news” (notícias falsas –
boatos, usados para denegrir políticos, mecanismo já descrito por Maquiavel, como
uma estratégia que os “príncipes” deveriam usar contra seus inimigos, já no
século XVI), portando não sendo nada novo.
Vargas Llosa,
escreve um parágrafo que cabe como uma luva ao momento que vivemos: “Não se
trata de um problema, porque os problemas têm solução, e este não tem. É uma
realidade da civilização de nosso tempo diante da qual não há escapatória.
Teoricamente, a justiça deveria fixar os limites a partir dos quais uma
informação deixa de ser de interesse público e transgrida o direito à
privacidade dos cidadãos. Na maioria dos países, semelhante julgamento só está
ao alcance de astros e milionários. Nenhum cidadão comum pode arriscar-se a um
processo que, além de afoga-lo num mar litigioso, acarretaria altos custos em
caso de perda da ação”.
Não atoa a lei de Liberdade e a Lei de Justiça estão em sequência no Livro dos Espíritos, se por um lado somos livres para pensar em qualquer coisa, nossas ações sempre trazem consequências, que podem em alguns casos ferir direitos, reputações, interesses enfim, causar alguma reação no campo da justiça a outrem. Atualmente qualquer pessoa, de posse de um smartphone está com as portas escancaradas para o mundo inteiro, uma foto, um vídeo pode causar consequências enormes, vejam o exemplo da morte por asfixia filmada de George Floyd causou reações no mundo inteiro. Quem sabe selando a sorte do Presidente Trump nas eleições americanas este ano? As reações no mundo todo demonstram que o que fazemos em público, ou mesmo no privado uma vez tornado público tem consequências.
Se divulgarmos
notícias falsas, se mostrarmos nossa intimidade, se formos uma celebridade poderemos
fazer sucesso ou então passarmos por um grande vexame.
Na questão 830 do
LE assim nos dizem os amigos espirituais “o mal é sempre o mal, e todos os
vossos sofismas não farão que uma ação má se torne boa. Mas a responsabilidade
do mal é relativa aos meios que se tem de compreendê-lo” ao que tudo indica no
Brasil, seremos forçados e entender as consequências através do rigor da lei.
Os Espíritas:
Wilson Garcia
explora bastante a questão da penetração da divulgação do espiritismo na
civilização do espetáculo, como transformar o conhecimento espírita em algo
significativo numa sociedade fútil?
“O desafio espírita, em tempos de intensa consciência
da necessidade de fazer com que o maior número possível de pessoas conheça a Doutrina, consiste na solução de um conflito ético: como divulgar sem tornar a Doutrina um espetáculo de aparências? Esse desafio, contudo, só existe como tal
para aqueles que concebem a existência do conflito. Os que não percebem
qualquer tipo de contradição entre as condições colocadas e o sentido espírita
do saber, ou que não lhes atribuem um valor considerável, não têm que se
preocupar com o desafio.”
Este parece ser o ponto
principal, a força do meio é enorme, o consumismo, a universalidade do
conhecimento tende a diluir todas as doutrinas, os ideais libertários das
estruturas sociais, iniciadas no pós-guerra que desencadeou nos fatos já
relatados, também o são. Mas a mensagem da imortalidade dinâmica que o
Espiritismo nos trouxe precisa superar todos os obstáculos e se fazer presente
entre os espíritas e perante a sociedade.
Como enfrentar,
primeiro tendo consciência de que vivemos neste mundo, onde a aparência, o
status, são um fator que se estabeleceu. Cada indivíduo pode ser um
influenciador digital, as mídias socias estão aí.
Segundo Wilson
Garcia “A questão enlaça os dois pontos anotados: a cultura do espetáculo, que
domina o cenário social, e a consciência construída por essa cultura. Uma massa
de criaturas, submetida às mensagens constantes de uma “realidade” na qual
todos estamos imersos, é levada à adoção de uma consciência passiva e favorável
ao espetáculo. A crítica portanto, deve alcançar em primeiro lugar à cultura
dominante, ao sistema que reproduz a cultura e faz dela o elemento de
dominação. Sob um fluxo permanente de mensagens altamente persuasivas para
valores declarados naturais, a cultura tende a se reproduzir e a assumir a aura
de natural. Daí o fato de as criaturas numa sociedade do espetáculo capitularem
e assumirem o espetáculo como algo intrínseco e normal e convergirem para ele
naquilo que as toca. Os espíritas, sob essa consciência, são levados também a
adotar o sentido do espetáculo sem qualquer constrangimento e sem nenhuma
preocupação com os sentidos dominantes”.
Buscamos portanto
mais uma vez chamar a atenção para o papel do indivíduo e porque não, dos meios
de divulgação espíritas, como este jornal, de que não nos deixemos cair na
tentação da adesão incondicional ao espetáculo. Hoje existem milhares de coisas
que ajudam a vida a ser melhor vivida, mas nunca nos esqueçamos de que o nosso
Espírito Imortal, está aqui para ser feliz, para evoluir, para adquirir
sabedoria, saibamos separar o joio do trigo.
Portanto, tanto no
que diz respeito à cultura, jogos de poder ou a disseminação de fake news ou
intimidades pessoas na internet, enquanto espíritas não podemos nos imiscuir de
pensarmos e agirmos politicamente, não devemos praticar política partidária nas
casas espíritas, mas precisamos sim pensar como interagir em nosso mundo sem
sermos frívolos.
Enfim o que parece
importante é exercermos nosso livre pensamento sempre de forma responsável e
focado no bem, não podemos ser geradores nem multiplicadores do mal e nem
precisamos ser agentes da civilização do espetáculo.
Mario Vargas Llosa
É um escritor
peruano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2010, nascido em Arequipa
(1936) iniciou sua vida cultural e literária como socialista, mas que se
afastou do mesmo após conhecer a União Soviética em 1966 e rompeu com os
Castros por discordar da censura imposta em Cuba, segundo algumas de suas
biografias. Em 1983 concorreu à Presidência da República Peruana e foi
derrotado por Fujimori. Vargas Llosa tem uma ampla obra literária. (diversas
fontes)
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Guy Debord
Pensador Francês, marxista, seus textos foram a base das manifestações
do maio de 68 – A Sociedade do Espetáculo é o seu trabalho mais
conhecido. Em termos gerais, as teorias de Debord atribuem a debilidade
espiritual, tanto das esferas públicas quanto da privada, a forças econômicas
que dominaram a Europa após a modernização decorrente do final da Segunda
Guerra Mundial (Wikipédia)
Alexandre
Cardia Machado, engenheiro mecânico, reside em Santos
Nota: Artigo
originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.
Gostou? Você pode
encontrar muito mais no Jornal Abertura – digital,
totalmente gratuito.
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Internacional
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