Espiritismo: Segunda opção
Jaci Regis
"É possível que a existência humana, tão complexa e
rica, se dissolva quando o coração para?" é a pergunta que a reportagem
especial da revista Veja faz. E conclui: "Com uma resposta prática para
essa questão crucial e a promessa de comunicação com os mortos, o Espiritismo
tornou-se a religião – ou, pelo menos, a segunda opção religiosa – de 40 milhões
de brasileiros".
Há nisso um sincretismo religioso tipicamente brasileiro. De
acordo com o IBGE, 74% dos brasileiros declaram-se católicos e a doutrina da Igreja
Católica não concebe a comunicação direta entre mortos e vivos. Na prática, boa
parte desse contingente católico também dirige sua fé ou sofre influência de
outro credo sem expressão no exterior e que só cresce no Brasil: o Espiritismo.
"Segundo a Federação Espírita Brasileira", diz a
reportagem, mais de 40 milhões de pessoas seguem a doutrina de Allan Kardec no
Brasil. Apenas 2% dos brasileiros se dizem Espíritas, nos censos oficiais. A
imensa maioria simplesmente acrescenta, sem dramas de consciência, os
ensinamentos de Kardec, aos das religiões que professam oficialmente".
O QUE BUSCAM OS CATÓLICOS NO ESPIRITISMO?
Certamente é hipotético afirmar que quarenta milhões
"seguem" a doutrina de Allan Kardec, no Brasil. O que acontece é que
milhões de católicos, pois é pouco provável que protestantes o façam,
frequentam algumas vezes ou seguidamente os centros espíritas em busca de
serviços que eles oferecem à população, seja no campo da assistência social,
seja no consolo espiritual, através de consultas e passes.
Essa multidão seria bem menor se os centros espíritas
ensinassem efetivamente a doutrina de Allan Kardec, mas não uma adaptação
religiosa e personalista dos princípios espíritas. Com isso a comunicação dos
Espíritos e a reencarnação, não teriam o caráter folclórico que assumem, como
se vê na reportagem.
Em muitos dos que se chamam de "centro espírita", lamentavelmente extremamente distantes do Espiritismo, esses católicos ficarão muito à vontade, porque neles se faz uma imitação medíocre do catolicismo, inclusive com preces católicas como ave-maria e outras. E, quando ali se discursa, os discursos não diferem do catolicismo, a não ser no que tange à comunicação com os Espíritos e uma tênue referência à reencarnação, moldada, contudo, no viés da punição e da purificação, bem ao gosto da doutrina católica.
Essa é a tal de multidão que acredita na reencarnação e na
comunicação com os mortos. Para eles, não se trata apropriadamente de assumir o
Espiritismo como uma segunda religião, como uma opção mais folclórica, mais
ansiosa e supersticiosa sem qualquer reflexão filosófica ou prova científica.
O que se pode dizer também de muitos que se dizem oficialmente espíritas.
O QUE DEVERIA SER DADO AOS CATÓLICOS QUE BUSCAM O ESPIRITISMO
A transformação do Espiritismo numa religião formal, cada
vez mais formal, acaba numa deformação do conteúdo doutrinário e numa traição
aos projetos e finalidades dadas por Kardec à sua doutrina.
A reportagem de Veja, traduz que os católicos que procuram o
Espiritismo querem informações concretas e objetivas sobre a reencarnação, a
imortalidade e a comunicação com os mortos, onde eles vivem e como vivem.
Entretanto, não é isso que encontram nos centros espíritas.
Estes, quase sempre, se formam com "principal finalidade será o estudo e a
divulgação do evangelho de Jesus".
O que marca a existência do Espiritismo é o seu conteúdo filosófico, seu esforço por provar cientificamente a existência e a evolução do Espírito, na qual a reencarnação se insere. Para isso utiliza a mediunidade como instrumento de prova da Imortalidade, da sobrevivência e comunicabilidade entre vivos e mortos. A partir dessa compreensão que o Espiritismo trará sua contribuição à humanidade. Ora, o "estudo do evangelho", é feito nas igrejas católicas e protestantes, diariamente. O que o Espiritismo brasileiro acrescenta ao fixar-se nesse estudo evangélico? Explicações sobre fatos ali narrados e acompanha, insensatamente, a sacralização feita pela Igreja da figura de Jesus Nazareno.
A reportagem diz que "O que o Espiritismo tem de próprio, ainda que não seja um monopólio seu, é o fato de acenar com a certeza de que, no futuro, haverá outras vidas, quantas forem necessárias para tirar as manchas da alma".
Aí entra a deformação básica do instituto da reencarnação, pois a transformação religiosa do pensamento espírita fixou-se, como era de esperar, na questão das penas e gozos futuros, de acordo com o viés judaico-católico, que se assenta na concepção do pecado original, na necessidade de purificação.
Mas a reencarnação no Espiritismo não é instrumento de
resgate, de pagamento de dívidas de "outras vidas". Na essência, o
processo evolutivo guarda a relação do Espírito consigo mesmo, na relação com
os outros, sem estar ligado a erros pontuais ou severos de "outras
vidas", como se cada capítulo do processo evolutivo, ficasse estanque e
restrito, desconhecendo que o ser espiritual é uma individualidade permanente e
que seu projeto é evoluir para compreender a si mesmo e sua inserção na vida.
Fora dessa visão, tudo gira em torno de explicar de forma diferente as crenças, os castigos, as dores, os pecados.
Na verdade, o próprio Kardec, devido às premências do seu tempo, utilizou-se de explicações para coonestar tradições judaico-cristãs.
Por exemplo, os anjos da guarda seriam Espíritos protetores.
Os demônios, Espíritos obsessores. Os Anjos, Espíritos puros.
Foi um erro. Porque na verdade para o Espiritismo não
existem anjos da guarda, demônio ou anjos, céu ou inferno. Nada disso tem
qualquer respaldo na teoria espírita. Simplesmente não existem.
Tentar dar versão espírita a essas tradições só prejudica a
separação necessária de nossos conceitos com o judaico-cristianismo, promovendo
confusões e permitindo interligações conflitantes.
Então, o que poderíamos fazer e alguns estão fazendo, é
limpar essa linguagem, caminhar para a pesquisa e para produção de uma
filosofia capaz de suplantar o obscurantismo católico e protestante e afirmar o
Espiritismo não como uma segunda opção, mas como a opção clara, despida de
crendices e confusões.
Para isso é preciso um novo posicionamento.
Kardec admitiu que o Espiritismo poderia ser uma auxiliar das religiões. Para isso, naturalmente, é preciso manter sua identidade, sua diferença e fazê-lo promíscuo com elas.
Auxiliar é uma coisa, é dar subsídios, explicações para as religiões e não tornar-se satélite delas.
Talvez para os dirigentes da Federação Brasileira e outros, ser a segunda opção da Igreja Católica, seja a gloria.
ARTIGO publicado originalmente no Jornal Abertura de junho de 2005
Jaci Régis - Desencarnado em dezembro de 2010.
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