quarta-feira, 16 de maio de 2012
A Profanação do Sagrado - Coluna Ciência da Alma em homenagem a Jaci Régis
Texto originariamente publicado em no Jornal Abertura de Julho de 2009 e republicado em Março de 2012
Há muitos anos atrás, quando visitava Juiz de Fora, em Minas Gerais, um espírita, sabendo de minhas posições, perguntou para provocar-me: “O que pensa de Jesus? E eu: “sou seu fã”. Ele riu e disse: “você é iconoclasta ...”.
Na verdade sou um profanador do sagrado.
Mas antes de mim, muitos anos antes, Allan Kardec também profanou o sagrado. Ao dizer que não havia milagre, nem sobrenatural, ele despiu a divindade dos adornos que lhe davam o sentido de insondabilidade de seus secretos desígnios.
Também antes dele, Karl Marx afirmou que “tudo o que é sagrado será profanado”, vaticinando os tempos que viriam e de que ele mesmo se tornou provocador.
O que é o sagrado?
Um monte é apenas um relevo no cenário da natureza. Mas se a autoridade religiosa e a cultura dizem que ele é sagrado, o crente ao galgar suas encostas sentirá um frenesi de energias misteriosas e o ouriçar de seus pelos. Ele sentirá que está perto de seu deus. Olhará aquele monte como morada divina, temerá e amará seu perfil altaneiro, coroado de neve ou cerrado de mata virgem. Penetrá-lo desavisadamente é profanar a morada de seu deus.
O rio Ganges é apenas um fluxo de águas como qualquer rio. Mas consagrado como divino, sagrado, torna-se um ícone do desejo da fé e da esperança. Banhar sem suas águas é um prêmio para o crente que sente nelas a presença de seu deus. Desrespeitar as tradições sobre o rio sagrado é profanar uma morada de seu deus.
Algumas décadas atrás, eu propus que ao invés de “evangelização” usássemos “espiritização”. Fui naturalmente criticado e a ideia rejeitada. Entretanto, tempos depois, Divaldo Franco pronunciou essa palavra. Então, houve quem quisesse atribuir-lhe a autoria que na verdade é minha. Divaldo nem sabe disso. Mas o fato chamou a atenção porque, sendo Divaldo consagrado como porta-voz do divino, suas palavras têm um poder muito maior do que as minhas, um simples homem comum.
Allan Kardec na elaboração da sua utópica terceira revelação, perguntou: “quem tem a liberdade de interpretar as Escrituras Sagradas?”. Responde dizendo que a ciência tem esse direito e, depois estendeu essa liberdade, dizendo que “o direito de exame pertence a todos, e as Escrituras não são mais a arca santa na qual ninguém se atreveria a tocar com a ponta dos dedos, sem correr o risco de ser fulminado”.
Vemos que Kardec foi um profanador do sagrado. Pois milhões acreditam que as escrituras são sagradas, intocáveis, verdade absoluta.
Todavia, o caminho da profanação é difícil.
Em primeiro lugar, os crentes não apenas temem ser fulminados, como estão certos de que são revelações divinas. Ao ouvir a leitura de um versículo sentem o arrepio das emoções da palavra de Deus escorrendo pelos seus ouvidos e compulsando os livros sagrados, mesmo tendo sido impressos recentemente. Parece que estão tocando com os dedos a mão divina escrevendo as verdades ali expostas.
Mas, por outro lado, o progresso só foi possível com a profanação do sagrado.
O casamento, por exemplo. Foi consagrado: “O que Deus uniu não desuna o homem”. Era o casamento indissolúvel, pétreo. Uma vez entrado não havia saída. A sociedade civil profanou o sagrado com o divórcio.
De passagem, recordo que o sagrado que Allan Kardec desprezou continua nas entrelinhas do entendimento dos espíritas em geral. No caso do casamento, não sendo possível atribuí-lo a Deus, resolveu-se que ele tinha que ser indissolúvel porque teria sido combinado antes do nascimento e estaria no quadro das expiações/provas, que são marca registrada do nosso mundo. Portanto, o casamento poderia ser uma forma de pagamento de débito do passado. Essa suposta combinação lhe daria uma conotação sagrada.
Voltando à pergunta do espírita de Juiz do Fora, naquela época não tinha uma visão mais clara como atualmente sobre a vida e a obra de Jesus de Nazaré, de quem continuo fã e admirador cada vez maior. O Nazareno foi consagrado. Seu nascimento, sua vida, sua morte são partes de uma encenação dramática que permeou todo o longo caminho do cristianismo. Por fim, o filho de Maria e José tornou-se o próprio Deus cristão. Portanto, sagrado.
Agora me vejo profanando seu estado sacro pensando nele como um homem extraordinário, talvez até casado e pai de filhos, com uma mensagem definitiva para a felicidade pessoal e social. Todavia, também profanei o sentido sagrado dado ao progresso, que Kardec simbolizou em três revelações, numa visão muito especial da ação divina, a partir do seu conhecido eurocentrismo.
Mas o mundo não é apenas a Europa. O mundo é uma confusão de crenças, idiomas, culturas.
Se existe um Deus acima de toda essa confusão, o sagrado é particular, regional, provisório.
Vamos descobrindo que a obra divina se manifesta pela naturalidade dos fatos, pelo conflito dos valores, esperanças e iniquidades humanas.
Para nós, que sempre tentamos sintetizar a vontade de Deus no sagrado, parece difícil entender que a profanação desse circulo de ferro de ignorância, crendice e fratricida, seja imprescindível para criar uma humanidade razoavelmente equilibrada, para não dizer feliz.
Libertos poderemos talvez entender que somente o amor será o caminho dessa felicidade.
Amor que falamos mas não sabemos como exercitar, que nos sugere algo que pretendemos alcançar, mas não sabemos como.
Esse amor que não é profano ou sagrado. Estabelecerá um estado de satisfação e prazer apenas agora sonhado ou imaginado.
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