JACI RÉGIS E O JARDIM DE
EPICURO – por Ricardo Nunes
NR: Este artigo compilado aqui, foi publicado no Jornal ABERTURA de janeiro a outubro de 2019.
INTRODUÇÃO
Um dos princípios fundamentais do pensamento
filosófico de Jaci Régis é a valorização do prazer. Segundo o pensador espírita
brasileiro, a adequada compreensão da necessidade do prazer em nossa trajetória
existencial pode nos conduzir à conquista de uma vida terrena relativamente
feliz e exitosa. Esta visão estabelece um contraditório ao pensamento cristão e
ao pensamento espírita-cristão, que enaltecem o sofrimento como fator
privilegiado de evolução e crescimento espiritual. Em razão desta postura
teórica, Jaci foi chamado de epicurista por alguns de seus opositores:
“Revoltam-se
alguns quando afirmo que O universo está baseado no prazer e não na dor. Dedo
em riste acusam-me de epicurista. Epicurista? Eu não sabia. Não tinha
conhecimento da filosofia de Epicuro e fui saber quem era esse ilustre
personagem, a quem fui ligado como um verdadeiro pecado.”[i]
Ao acusarem Jaci de epicurista
utilizaram o sentido negativo do termo, cujo significado popular expressa uma
pessoa ligada ao culto do prazer sensorial, corporal, ou seja, alguém que vive
para o gozo e para o prazer imediatos, sem maiores preocupações de ordem
existencial. Não era este o sentido que Jaci dava à ideia do prazer.
Procuraremos
nos próximos meses fazer uma análise do pensamento de Jaci Régis sobre tão
importante tema. Pensar sobre a questão do prazer e da dor é também questionar
sobre a temática da felicidade. Em um sentido profundo, é refletir sobre a
possibilidade de uma sabedoria para o bem viver.
A presente reflexão, que se desenvolverá
pelas próximas edições de ABERTURA, oferecerá, também, aos amantes da filosofia,
uma excelente oportunidade de conhecer alguns princípios do epicurismo, importante
escola filosófica da antiguidade. Em seu jardim, Epicuro enaltecia o prazer
como objetivo fundamental da existência.
Para bem distinguirmos a posição de
Epicuro e de Jaci Régis, destacaremos algumas importantes doutrinas que
ensinavam a superação, e, até mesmo, a negação do mundo e do corpo, na busca de
regiões metafísicas mais elevadas. Trataremos especialmente do platonismo e do
cristianismo.
O platonismo compreende o mundo
terrestre como cópia imperfeita do chamado “mundo das ideias”, ou “mundo das
formas”, cabendo ao filósofo, portanto, a tarefa de elevar-se, pela razão,
deste mundo terreno da instabilidade, imperfeição e ignorância, até o mundo
ideal da estabilidade, perfeição e conhecimento.
O
cristianismo, por sua vez, propõe a salvação da alma, que deverá escapar deste
“vale de lágrimas”, que é a terra, em direção ao céu, onde o crente será
acolhido por Deus. Para o cristianismo tradicional, o homem é maculado pelo
pecado original desde sua origem e, portanto, não há que se falar de felicidade
neste mundo. A felicidade do homem é a salvação em Jesus Cristo.
Na atualidade, já existem correntes
cristãs que prometem o reino da terra e os bens do mundo aos seus fiéis,
através da polêmica teologia da prosperidade. Porém, esta não foi a concepção
do cristianismo em suas origens, principalmente o católico, e também não foi a
concepção das principais correntes do protestantismo desde Lutero. Não
trataremos da teologia da prosperidade na presente reflexão.
No que diz respeito as influências cristãs
contidas no espiritismo, verificaremos um certo enaltecimento do sofrimento,
apesar de, em essência, o espiritismo apresentar uma proposta de valorização
positiva da encarnação e das vidas sucessivas, como fatores imprescindíveis de
aperfeiçoamento e oportunidade para a evolução do espírito imortal.
É justamente em relação às influências cristãs
presentes no espiritismo que devemos considerar a importância do pensamento de
Jaci Régis, que, ao final de sua vida, defendeu um espiritismo
pós-cristão. Um espiritismo liberto das
influências do cristianismo, ou seja, um espiritismo livre das concepções de
culpa, castigo, e do culto ao sofrimento.
O PRAZER EM EPICURO
Jaci Régis e o Jardim de
Epicuro
Epicuro de Samos fundou a primeira das
grandes Escolas helenísticas, que surgiu em Atenas por volta do século IV a. C.
A fundação da escola, em Atenas, constituiu-se em um verdadeiro ato de desafio
às Escolas de Platão e Aristóteles, que ainda existiam na época, mas que já se
encontravam em decadência, apenas vivendo de seu passado glorioso. A Escola de
Epicuro representava o novo em contraposição ao passado clássico, segundo
Giovanni Reale e Dario Antiseri:
“O
próprio lugar escolhido por Epicuro para sua Escola é a expressão da novidade
revolucionária do seu pensamento: não uma palestra, símbolo da Grécia clássica,
mas um prédio com jardim (que era mais um horto), nos subúrbios de Atenas. O
Jardim estava longe do tumulto da vida pública citadina e próximo do silêncio
do campo, aquele silêncio e aquele campo que não diziam nada para as filosofias clássicas, mas que se revestiam
de grande importância para a nova sensibilidade helenística”.[ii]
O pensamento de Epicuro pode ser
subdivido em três temas: lógica, física e ética. Abordaremos a ética de
Epicuro, a qual melhor se relaciona com o tema em desenvolvimento. Para
Epicuro, a essência do homem é material, ou seja, o homem é um agregado de
átomos que se dispersam por ocasião da morte, logo será material o seu bem
específico, que é o prazer. No entanto, diferentemente dos Cirenaicos, que
consideravam os prazeres e dores físicas superiores aos psíquicos, Epicuro tem
uma tese contrária:
“Como fino
indagador da realidade do homem, Epicuro compreendera perfeitamente que mais do
que os gozos ou sofrimentos do corpo, que são circunscritos no tempo, contam as
ressonâncias interiores e os movimentos da psique, que os acompanham e duram
bem mais”.[iii]
Assim, para Epicuro, existe o prazer do
corpo, que consiste “na ausência de dor no corpo”, e o prazer da alma, que
consiste “na ausência de perturbação da alma”. Este estado de ausência de dor
no corpo e perturbação na alma foi denominado de aponía e ataraxía.Diz
Epicuro:
“Assim, quando
dizemos que o prazer é um bem, não aludimos, de modo algum, aos prazeres dos
dissipados, que consistem em torpezas, como creem alguns que ignoram nosso
ensinamento ou o interpretam mal; aludimos, ao contrário, à ausência de dor no
corpo e à ausência de perturbação na alma. Portanto, nem libações e festas
ininterruptas, nem comer peixes e tudo o mais que uma mesa rica pode oferecer
são fonte de vida feliz, mas sim o sóbrio raciocinar, que perscruta a fundo as
causas e todo ato de escolha e de recusa, e que expulsa as falsas opiniões por
via das quais grande perturbação se apossa da alma” .[iv]
Com vistas a atingir a aponía e ataraxía, Epicuro distinguiu os prazeres da seguinte forma: 1-
Prazeres naturais e necessários; 2- prazeres naturais, mas não necessários 3-
prazeres não naturais e não necessários. Os prazeres naturais e necessários são
aqueles que devem ser satisfeitos, como por exemplo: beber quando se tem sede,
comer quando se tem fome, repousar quando se está cansado. Já os prazeres
naturais, mas não necessários, são “variações supérfluas” dos prazeres naturais,
exemplo: comer bem, beber bebidas refinadas, vestir-se com apuro, etc. E,
finalmente, os prazeres não naturais e não necessários, os quais não tolhem a
dor corpórea e nem eliminam a perturbação da alma. São prazeres “vãos” nascidos
das “vãs opiniões dos homens”. São aqueles ligados aos desejos de riqueza,
poder e honras.
Devemos concluir esta breve reflexão sobre o prazer em Epicuro afirmando
que o famoso filósofo acreditava na possibilidade de uma vida feliz e harmônica
neste mundo. Trata-se de uma visão otimista sobre as possibilidades da
existência humana, a qual nos convida à necessidade de estabelecermos uma
sabedoria de vida, com vistas a manutenção de nossa serenidade e equilíbrio pessoal
através do uso da razão.
REGIS E O
JARDIM DE EPICURO
O corpo como
túmulo da alma em Platão
Normalmente, quando pensamos na ideia de
conflito entre corpo e alma, nos conceitos de expiação e culpa, lembramos da
tradição judaico-cristã, que nos é mais próxima em termos de perspectiva
histórica. No entanto, estas ideias estão presentes desde a mais alta antiguidade
no mundo ocidental. Já no orfismo, religião que existiu na Grécia arcaica, mais
ou menos por volta do século VIII A.C., encontramos ideias deste tipo.
O orfismo não deve ser ignorado pelos
estudiosos do pensamento ocidental, pois influenciou importantes filósofos
gregos do período áureo da filosofia na Grécia. É interessante observar,
igualmente, que a ideia da palingenesia ou reencarnação está presente nesta que
é uma das mais antigas doutrinas religiosas do mundo ocidental. Segundo
Giovanni Reale e Dario Antiseri as crenças fundamentais do orfismo são:
“a) No homem
hospeda-se um princípio divino, um demônio (alma) que caiu em um corpo por
causa de uma culpa originária.
b) Esse demônio
não apenas preexiste ao corpo, mas também não morre com o corpo, pois está
destinado a reencarnar-se em corpos sucessivos, a fim de expiar aquela culpa
originária.
c) Com seus
ritos e práticas, a “vida órfica” é a única em grau de pôr fim ao ciclo das
reencarnações e de, assim libertar a alma do corpo.
d) para quem se
purificou (os iniciados nos mistérios órficos) há um prêmio no além (da mesma
forma que há punições para os não iniciados.”[v]
Podemos verificar que no orfismo o corpo
e a alma estão em conflito, e que o corpo é uma espécie de lugar de expiação da
alma. Pitágoras, o eminente filósofo e matemático, também recebeu grande
influência dos órficos e acreditava que a alma devido a uma “culpa originária” também era obrigada a
reencarnar-se em sucessivas existências corpóreas, não apenas em forma humana,
como forma de expiação daquela culpa. Conta a tradição que Pitágoras se
recordava de suas vidas anteriores e que entendia que a purificação da alma não
se daria apenas através da prática de ritos, como os órficos ensinavam, mas sim
através do reto agir humano com vistas a se tornar um seguidor de Deus.
É em Platão, no entanto, que
conheceremos a mais alta reflexão metafísica até aquele momento histórico. O
pensamento platônico influenciou profundamente a história da filosofia no
ocidente com sua tese que enfatiza a contraposição entre o mundo sensível e
mundo das ideias. Outra distinção importante no pensamento platônico, é a que
separa radicalmente alma e corpo, sendo o corpo, segundo a concepção do famoso
discípulo de Sócrates, um verdadeiro túmulo a impedir a liberdade da alma.
Neste sentido, Giovanni Reale e Dario Antiseri explicam o pensamento de Platão:
“Enquanto temos
um corpo, estamos “mortos”, porque somos fundamentalmente nossa alma; e a alma,
enquanto se encontra em um corpo, acha-se como em uma tumba; e, com isso, encontra-se
em situação de morte. Nosso morrer (com o corpo) é viver, porque, morrendo o
corpo, a alma se liberta do cárcere. O corpo é a raiz de todo mal, fonte de
amores insensatos, de paixões, inimizades, discórdias, ignorância e loucura. E
tudo isso precisamente mortifica a alma. Essa concepção negativa do corpo sofre
certas atenuações nas últimas obras de Platão, embora nunca desapareça por
completo”.[vi]
JACI REGIS E O
JARDIM DE EPICURO- PARTE 4
O cristianismo:
pecado e salvação
No cristianismo é central a noção de
pecado e queda do homem. Disse Javé: “Da
árvore do conhecimento do bem e do mal não comereis, porque no dia em que dela
comerdes tereis de morrer”. [vii]Já o maligno disse ao
primeiro casal: “Não, não morrereis! Mas
Deus sabe que, no dia em que dela comerdes, vossos olhos se abrirão e vós
sereis como deuses, versados no bem e no mal”.[viii]
Como Adão não resistiu à tentação foi
expulso do paraíso. A partir deste momento entraram no mundo o mal, a dor e a
morte. Com Adão toda a humanidade pecou e o pecado entrou na história do homem.
Diz Paulo de Tarso: “Por obra de um só
homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado, a morte; assim, a morte passou
para todos os homens, porque todos pecaram”.[ix]
Porém, segundo o pensamento cristão,
Deus se fez homem e resgatou a humanidade do pecado e, com a sua ressurreição,
derrotou a morte, consequência do pecado. Esta milenar interpretação cristã
distanciou-se profundamente do pensamento grego vigente até então. Neste
sentido, afirmam Giovanni Reale e Dario Antiseri:
“A encarnação do Cristo, sua paixão expiadora
do antigo pecado, que fez seu ingresso no mundo com Adão, e sua ressurreição
resumem o sentido da mensagem cristã- e essa mensagem subverte inteiramente os
quadros do pensamento grego. Os filósofos gregos haviam falado de uma culpa
original, extraindo o conceito dos mistérios órficos... Mas, ficaram muito
longe da explicação da natureza dessa culpa”.[x]
Portanto, para a visão cristã, o homem é
um ser decaído, maculado pelo pecado original. Trata-se de uma visão negativa a
respeito do ser humano. O homem, nesta visão, é um nada que deve ser resgatado
pela graça de Deus de sua condição miserável. Daí à interpretação do mundo como
um “vale de lágrimas” foi um passo.
Santo Agostinho, unindo revelação cristã
e filosofia grega, retomou o dualismo platônico radical. O famoso santo da
igreja falava em cidade de Deus e cidade dos homens. Na primeira, a virtude em
todas as suas expressões, na segunda, o mal, a corrupção, o erro.
Estas concepções nos influenciaram
profundamente ao longo dos séculos. Nós, espíritos imortais, temos reencarnado
sucessivas vezes no mundo ocidental e temos sofrido a pressão ideológica desta
cultura que nega a vida, sendo que esta maneira de compreender o sentido do
homem e do mundo também influenciou o espiritismo como veremos a seguir.
JACI RÉGIS E O
JARDIM DE EPICURO – PARTE 5
A Influência
cristã no espiritismo
Em relação ao contexto histórico em que
foi fundado o espiritismo, meados do século XIX, é necessário ter em mente que
era uma época em que o cristianismo na França, e mesmo na Europa, ainda tinha
grande influência social. É curioso verificar na Revista Espírita de Allan
Kardec, que cobre o período de 1858 a 1869, quantos membros da igreja se
manifestaram contra o espiritismo com suas pastorais e sermões. Na Espanha
ultraconservadora ocorreu um auto de fé com a queima de livros espíritas. Vários
Espíritos ligados ao cristianismo auxiliaram na elaboração do espiritismo,
sendo que tal circunstância histórica contribuiu para que, em certos aspectos,
o espiritismo incorporasse algumas ideias e conceitos mais pertinentes ao
cristianismo do que ao espiritismo propriamente dito.
De fato, uma boa compreensão do
espiritismo não nos permitirá idealizar a vida extrafísica em detrimento da
vida terrena. Quando o espiritismo aceita a classificação do planeta terra como
“mundo de provas e expiações” certamente está mais próximo da visão cristã que
compreendia a terra como uma espécie de “vale de lágrimas”. Podemos encontrar, mesmo no contexto da obra
de Allan Kardec, algumas ideias muito discutíveis, que apontam para uma
compreensão literal, fatalista, punitiva, da lei de causa e efeito no campo da
reencarnação.
Enfim, o espiritismo incorporou alguns
elementos do pensamento cristão em sua estrutura doutrinária, e aqui se faz
necessário distinguir, o pensamento cristão, do imortal pensamento ético de
Jesus de Nazaré, com o qual o espiritismo está em conformidade. É a partir da reflexão crítica a este estado
de coisas que poderemos compreender o pensamento de Jaci Régis, pensador
espírita brasileiro que entendeu, profundamente, o quanto as noções cristãs
foram assimiladas ao pensamento espírita.
Antes de falarmos da reflexão de Jaci Régis
devemos ressaltar que seu pensamento é o de um espiritualista, mais
especificamente, de um espírita, de um kardecista. Alguém que raciocina a
partir da ideia de corpo e alma, sendo esta última imortal e submetida a
reencarnações sucessivas com vistas a um percurso evolutivo. Não é, portanto, o
pensamento de um materialista. Como vimos anteriormente neste artigo, Epicuro
valoriza a vida terrestre, sob a perspectiva materialista. Jaci Régis, a partir
de uma leitura mais precisa em termos conceituais do pensamento espírita,
ressalta a importância da vida terrena para a trajetória evolutiva da alma. O
corpo, o mundo, e a vida terrestre, não devem, portanto, ser negados, pois
representam elementos fundamentais da educação e evolução do Espírito.
Finalmente, devemos dizer que no Brasil
o espiritismo tomou um feitio religioso e cristão acentuado. Este
posicionamento epistemológico do espiritismo no campo da religião fez com que
as pretensões de Kardec no sentido de criar uma ciência e doutrina filosófica
fossem prejudicadas em grande parte. E, com isso, aprofundou-se ainda mais o
sincretismo entre cristianismo e espiritismo.
JACI RÉGIS E O
JARDIM DE EPICURO - PARTE VI
Reflexões sobre
o prazer.
Jaci Régis afirma que a cultura
judaico-cristã enalteceu o sofrimento e a dor e que nela: “O homem foi colocado numa posição de impotência, cumulado de culpa,
desobediência e sujeito à ação fulminante da divindade. Nada de alegria. Nem de
felicidade. Essa, quando tudo dá certo, só depois da morte. Aqui, a dor é
soberana. O velho testamento diz, sem meias medidas, que Deus não faz acordo
com quem desobedece suas leis” .[xi]
O
pensador kardecista denuncia a deturpação histórica que foi realizada com a
figura de Jesus, que foi transformado em salvador dos pecados da humanidade,
que passou a ser visto como alguém triste, alguém que se deu em sacrifício por
nós, sem alegria, sem felicidade, sem sorrisos: “os cristãos foram enganados pela Igreja que transformou o homem de
Nazaré num mito, em salvador, em messias universal. E fizeram-no triste, morto
na cruz, com sua coroa de espinhos. Não existem gravuras do Cristo sorrindo.
Como se ele estivesse amargurado por ter que conviver com essa espécie decaída
que é o homem. Jesus de Nazaré foi criticado porque comia e bebia”.[xii]
Jaci nos faz recordar que Jesus teria dito que
veio para que tenhamos “vida em abundância”, e apresentou a criança como
símbolo: “Todavia, não é exaltado que
Jesus disse: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância”. As mentes
enfermiças dos religiosos entenderam que essa vida abundante só seria possível
depois da morte, depois de derramar sangue, suor e lágrimas. O mestre
apresentou a criança como símbolo. E criança é alegria, prazer, esperança e
promessa. A vida terrena é terreno de construção. Cada um prepara esse terreno
de forma diferente, colhendo sorrisos ou lágrimas”.[xiii]
É muito fácil constatarmos que o
espiritismo, desde suas origens com Allan Kardec, assimilou a cultura do
sofrimento e da dor. Reflete o Espírito Agostinho, em O evangelho segundo o espiritismo: “Vossa terra é por acaso um lugar de alegrias, um paraíso de delícias?
A voz do profeta não soa ainda aos vossos ouvidos? Não clamou ele que haveria
choro e ranger de dentes para os que nascessem neste vale de dores? Vós, que
nele vieste viver, esperai, portanto, lágrimas ardentes e penas amargas. E
quanto mais agudas e profundas forem as vossas dores voltai os olhos aos céus e
bendizei ao Senhor por vos ter querido provar! (...) Felizes os que sofrem e
choram! Que suas almas se alegrem porque serão atendidos por Deus”.[xiv]
Segundo Jaci o espiritismo não pode ser
a doutrina da dor e do sofrimento, mas sim a doutrina do prazer: “O Espiritismo não pode ser a doutrina da
dor e do sofrimento. Mas a doutrina do prazer, no seu sentido amplo, libertador
e construtivo. Deve limpar a mente das pessoas da morbidez deixada pelo
cristianismo. Precisa reciclar a pretensa maldição divina sobre as gerações...”[xv]
Muitos depreciam a vida afirmando que
ela é curta, ilusória, que somos frágeis, e que nada podemos realizar, não era
o que entendia nosso pensador: “A vida é
breve, afirmam, desqualificando nossa estadia corpórea. Ilusão. A vida é longa,
longuíssima, pois se vivencia no bater ritmado dos segundos, dos milésimos de
segundo. Pensar na morte para viver é subverter a vida. A mente mergulhada na
morbidez, cercada de medo, de erros do passado, lei de talião, causa e efeito,
entendidas, todas, como instrumentos de tortura divina e purificação da alma
pelo fogo da dor, não pode ser feliz. Ao contrário, retrai-se, induz-se à
solidão e sente-se intimamente injustiçada”. [xvi]
Esta visão distorcida pela glorificação
do sofrimento e da punição atinge até mesmo um dos princípios fundamentais do espiritismo: “Alguns espíritas, tomando a reencarnação
desligada do processo evolutivo e esquecidos de que ela é um instrumento deste,
passaram a ligá-la à punição divina. Se, raciocinam, Deus é justo, ninguém
sofre sem razão. Logo se a razão não está nesta vida, só pode estar nas outras
vidas. Criaram o pecado originário.”.[xvii]
O pensador espírita pós-cristão faz um
verdadeiro elogio ao amor e ao prazer: “Agora
queremos o amor que liberta que é leve, aberto, que faz bem ao coração. Amor
com sexo, com alegria, dentro do recíproco respeito. Amor com ideal, com
construtividade. Prazer é retempero da alma. É estado de otimismo e realidade,
de pensamento positivo e disposição para servir. É uma forma de estar no mundo,
superando morbidez conceitual da punição divina, pois não existe punição
divina”. [xviii]
JACI RÉGIS E O
JARDIM DE EPICURO
POR UMA NOVA
COMPREENSÃO DE DEUS
Afirma Jaci Régis que é necessário que tenhamos
uma nova compreensão sobre Deus. Devemos
compreendê-lo não mais como um Deus com características humanas, que pune e
fornece a graça segundo seus soberanos e inescrutáveis critérios, mas sim como
um Deus que se revela na perfeição das leis naturais, as quais apontam para a
felicidade humana.
Segundo
o pensador espírita brasileiro devemos: “Inaugurar
um novo entendimento da forma como a Causa Primária de todas as coisas, através
de sua obra magnífica, rica de detalhes e de processos perfeitos, quer
proporcionar felicidade aos homens”.[xix]
Para ter este novo entendimento sobre
Deus é necessário ter em mente que tudo aquilo que foi dito sobre Deus, desde a
antiguidade até nossos dias, foi dito por homens, apenas por homens, e que não
foi o próprio Deus que falou diretamente à humanidade, nem passou procuração a
quem quer que seja para falar em seu nome.
“Tudo o que se
diz e prega sobre a existência de um deus superior, um criador, um ordenador da
vida, foi idealizado, escrito, pregado pelos homens. As muitas faces de Deus
representam a imagem dos homens, de cada época. ” [xx]
E a civilização ocidental,
judaico-cristã, desenvolveu uma ideia terrível sobre Deus. Um Deus que tem
características de pessoa humana a exigir sacrifícios e oferendas, a condenar e
a absolver as criaturas, segundo critérios discricionários. Na verdade, a
concepção judaico-cristã, apesar de sua origem monoteísta mais abstrata e
racional que a do politeísmo da antiguidade, acabou por não conseguir se livrar
de uma ideia antropomórfica a respeito da divindade.
A primeira coisa a fazer, portanto, para
que tenhamos um novo entendimento sobre Deus, é nos descartarmos desta visão
restritiva e humana a respeito da Causa primária de todas as coisas. Devemos
liberar nossa mente desta visão acanhada, a qual nos tem sido ensinada há milênios.
Neste sentido, afirma Jaci:
“Um novo pensar sobre Deus começará por
deixar de lado o deus Jeová, as afirmativas bíblicas e, de modo geral, as
teorias que fazem dele uma pessoa. Simplesmente porque não corresponde às
mínimas necessidades de um deus universal”.[xxi]
Para Régis a lei natural é a grande
expressão da atuação da mente divina no universo, a qual cria, sustenta e
direciona, teleologicamente, o espírito e a matéria, em uma sábia e permanente
interação, em um grandioso panorama cósmico evolutivo, que ainda escapa a
compreensão plena do homem terreno.
“A lei natural
exprime a sabedoria divina, com mecanismos extremamente competentes,
estabelecendo o ritmo e a sucessão dos fatores com o fim de equacionar, no
universo energético, tanto quanto no universo inteligente, o princípio do
equilíbrio. Atuando através da lei de causa e efeito ou ação e reação,
ferramenta de busca do equilíbrio, pela reciprocidade dos fatores.”[xxii]
No que diz respeito à relação homem e
Deus, afirma o pensador espírita pós-cristão que tal relação tem sido
frustrante, em razão da equivocada compreensão dos homens sobre a forma da
atuação divina. O apelo dos homens sobe aos céus na busca de soluções nem
sempre encontradas.
“... a relação
entre a criatura e o criador tem sido fria, unilateral. A tentativa do diálogo
pela oração, pela imprecação não se concretiza porque o silêncio divino é
devastador. E isso sempre foi e é terrível, porque as criaturas são inseguras,
temem a morte e procuram num poder maior, supostamente cheio de amor, um porto
seguro, uma resposta para o seu medo. O crente pergunta, onde está o Deus
onipotente que não atua para eliminar o mal, punir os que praticam crimes e não
salva e cura livrando-nos da morte”.[xxiii]
Afirma Jaci que esta decepção decorre do que se tem falado sobre o amor
de Deus. As igrejas referem-se ao amor de Deus à pessoa, ao indivíduo. No
entanto, este amor de Deus se expressa no sentido da sabedoria da lei natural, a
qual propicia infinitos meios e oportunidades para que o Espírito imortal atinja
a felicidade e a plenitude no tempo e no espaço.
Na busca da plenitude existencial, há
espaço para o erro e para o acerto do Espírito em um longo processo de
aprendizado, sendo que a realização desta plenitude deve ser compreendida
sempre na relação com o outro e nunca isoladamente.
Nesta visão, não se cogita de pecados
suscetíveis de condenação eterna e também não se espera nenhum ato de salvação
por parte da divindade. E também não se compreende o planeta terra como um
“vale de lágrimas”, do qual devemos nos libertar com vistas a alcançarmos as
esferas espirituais da felicidade.
O
que existe é apenas aprendizado no percurso das vidas sucessivas, as quais
devem ser aproveitadas em um sentido de oportunidade, produtividade e prazer na
construção de nossas potencialidades individuais e coletivas.
“De fato, o universo gira em torno do amor, no
sentido de prodigalizar meios e formas de oferecer ao Espírito humano o acesso
ao seu equilíbrio interno e nas relações com o outro, isto é, seja feliz. O
novo pensar sobre Deus pensa que o objetivo da vida é a felicidade. A
inteligência divina proporciona meios para isso, no tempo, através da lei da
evolução”.[xxiv]
JACI RÉGIS E O
JARDIM DE EPICURO
A TERRA É AZUL
Jaci Régis costumava afirmar que não
desconhecia os problemas do mundo, mas que preferia pensar o mundo de forma
positiva, porém sem ingenuidade: “Passam
pela mente o alarido das crianças, as campinas floridas, o amor entre as
pessoas, a música, a paciência dos educadores, o trabalho silencioso e
persistente dos pesquisadores, os benefícios da ciência e da tecnologia”.
Reconhece que vivemos em um “mundo
globalizado”, em uma “aldeia global”, e que estamos no “olho do furacão”, pois
no dia a dia recebemos, de forma imediata, uma enxurrada de notícias a respeito
do sofrimento e das dores dos seres humanos de todas as partes do mundo e que,
em vista disso, precisamos selecionar muito bem nossas sintonias mentais, sob
pena de nos perdermos em uma angustia paralisante.
“Tamanha carga
de emoções exige um redimensionamento da mente, da percepção, da capacidade de
priorizar, de decidir, de escolher. De ouvir e não ouvir. De ver e não ver. De
falar ou calar”.
Mas, sobretudo, sua visão é otimista.
Enquanto muitos se desesperam com a vida e com o mundo, em uma atitude de
negação existencial, afirma Jaci que as noções da preexistência, sobrevivência,
e destinos evolutivos da alma, que incluem lágrimas, mas também sorrisos, dor,
mas também prazer, apontam para novos horizontes no futuro da humanidade.
“A terra é
azul, gira no silêncio do cosmo cumprindo seu roteiro. Cada uma das pessoas
gira em torno de si mesma em busca do outro. Isso é vida e vida dinâmica, que
inclui dor, alegria, lágrimas e sorrisos. Mas somente a persistência do ser que
cada um é, além da morte e antes do túmulo será o sinal para uma nova etapa da
humanidade.”
Entendemos
que a importância da reflexão espírita de Jaci Regis está justamente em nos
auxiliar a desenvolver uma visão mais otimista sobre a vida, sobre o mundo, no
sentido de rompimento com uma certa visão mórbida da existência humana neste planeta.
Jaci, em uma correta compreensão da filosofia espírita, nos convida a acreditar
em nossas potencialidades e a realizar uma vida produtiva, prazerosa, útil no
bem, e feliz, tanto quanto possível à nossa condição evolutiva.
Certamente que os percalços existem. E
são muitos. As realidades da existência
cotidiana de cada um de nós não são desconhecidas. O sofrimento também está presente neste mundo.
Porém, o sofrimento não deve ser cultuado, deve ser superado. Precisamos
acreditar na vida, nas possibilidades, no amor. Precisamos acreditar em Deus,
afinal, como dizia Jaci:
“Não quer Deus
o sorriso, a felicidade, melhor? A doutrina kardecista abriu as portas da
esperança. Ninguém ficará fora do reino, porque Deus ama a todos, mesmo que não
tenhamos condições de entender os mecanismos de sua sabedoria. A reencarnação
consolida a solicitude e a sabedoria divinas. Nela se espelha a grandeza do
Criador e da sua Lei Natural”.
OBRAS CONSULTADAS
Aprender a viver – Filosofia para os
novos tempos –Luc Ferry
Doutrina Kardecista-modelo
conceitual-reescrevendo o modelo espírita- Jaci Régis
História da Filosofia, volumes I e II –
Giovanni Reale e Dario Antiseri
Introdução a Doutrina Kardecista – Jaci
Régis
Novas Ideias – Jaci Régis
Novo pensar- Deus, homem e mundo – Jaci
Régis
O Evangelho Segundo o Espiritismo – Allan Kardec
[i] RÉGIS, Jaci.Novas Ideias.icks edições
[ii] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia- Volume
1.Paulus.
[iii] Idem, idem
[iv] Idem, idem
[v] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia – volume 1.
Paulus.
[vi] Idem, idem
[vii]REALE, Giovanni; DARIO, Antiseri. História da Filosofia-Volume 2.
Paulus
[viii]Idem, idem
[ix] Idem, idem
[x] Idem, idem
[xi] RÉGIS, Jaci. Novas ideias. icks edições.
[xii] Idem, idem
[xiii] Idem, idem
[xiv] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.Lake.
[xv] RÉGIS, Jaci. Novas ideias. icks edições
[xvi] Idem, idem
[xvii] RÉGIS, Jaci. Introdução à doutrina kardecista.Licesp
[xviii] RÉGIS, Jaci. Novas ideias.icks edições
[xix] RÉGIS, Jaci. Novas ideias- icks edições
[xx] RÉGIS, Jaci. Novo pensar-Deus, homem e mundo.icks edições
[xxi] Idem, idem
[xxii] Idem, idem
[xxiii] Idem, idem
[xxiv] Idem, idem
Nota: Artigo
originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.
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