quarta-feira, 14 de outubro de 2020

ABORTO – Um Olhar Humanizado - por Jacira Jacinto da Silva e por Saulo de Meira Albach

 

ABORTO – um olhar humanizado

 

“Que tristes os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas! “ Mario Quintana

 

Para iniciar esta difícil discussão, buscaremos responder à seguinte questão: A quem cabe a decisão de interromper uma gravidez? À gestante, ou ao Estado?

Enquanto o país aguarda o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da arguição de descumprimento de preceito fundamental ADPF - 442/DF, com parecer da Procuradoria Geral da República, pela criminalização do aborto, é tempo de espíritas discutirem o assunto.

Antes de tudo, alguns esclarecimentos iniciais.

 

ADPF é uma das ações que fazem parte do controle concentrado de constitucionalidade, cujo julgamento cabe ao STF. Sua inspiração vem da Corte Constitucional da Colômbia, que forjou a técnica de decisão do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI).( ref 1) A função desta ação é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público (ref 2).

 

E o que seria preceito fundamental? Refere-se a normas e princípios imprescindíveis e de relevância especial da Constituição. A ação serve tanto para evitar lesões como também reparar as lesões já causadas pela violação dos preceitos fundamentais.

 

Em 6/03/2017, o PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL apresentou ao STF a ADPF 442, visando à não recepção parcial dos artigos. 124 e 126 do Código Penal, indicando como preceitos fundamentais violados, os princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, previstos nos artigos. 1º, I e II, 3º, IV, 5º, caput e I e III, 6º, caput, 196 e 226, § 7º, da Constituição Federal.

 

Em 3/08/2018 – o STF realizou audiência pública. Foram recebidos mais de 180 pedidos de habilitação de expositor na audiência, abrangendo pessoas físicas com potencial de autoridade e representatividade, organizações não governamentais, sociedades civis e institutos específicos.

Em maio de 2020 sobreveio o parecer do Ministério Público: “opina o PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA pelo indeferimento da medida cautelar e, no mérito, pela improcedência da arguição de descumprimento de preceito fundamental”. Em síntese, opinou pela criminalização.

 

Falta apenas o julgamento em plenário no STF.

 

E nós, espíritas, como interpretamos a situação? A mulher que pratica aborto com menos de 12 semanas de gravidez, como discute a ADPF, deve ser criminalizada, ou não?

 

O direito à vida é inquestionável, sendo o primeiro e o maior de todos os bens tutelados pela legislação. É com esse fundamento que religiosos, dentre eles grande parte dos espíritas, advogam a condenação da pessoa que pratica o aborto. Vejamos o que dispõe o Espiritismo.

 

A pergunta n. 880 de O Livro dos Espíritos está assim redigida: Qual o primeiro de todos os direitos naturais do homem? Resposta: “O de viver. Por isso é que ninguém tem o direito de atentar contra a vida de seu semelhante, nem o de fazer o que quer que possa comprometer-lhe a existência corporal”.

 

A complexa questão do aborto, entretanto, passa pela análise de outros fatores.

Ainda analisando O Livro dos Espíritos:

 

Q. 136.a — Pode o corpo existir sem a alma? R: “Pode; entretanto, desde que cessa a vida do corpo, a alma o abandona. Antes do nascimento, ainda não há união definitiva entre a alma e o corpo”.

Q. 344. Em que momento a alma se une ao corpo? R: “A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para habitar certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez mais se vai apertando até ao instante em que a criança vê a luz”.

Q. 346. Que faz o Espírito, se o corpo que ele escolheu morre antes de se verificar o nascimento? R: “Escolhe outro”.

Q. 357. Que consequências tem para o Espírito o aborto? R: “É uma existência nulificada que ele terá de recomeçar”.

 

Q. 358. Constitui crime a provocação do aborto, em qualquer período da gestação?

R: Há crime sempre que transgredis a lei de Deus

Uma mãe, ou quem quer que seja, cometerá crime sempre que tirar a vida a uma criança antes do seu nascimento, por impedir uma alma de passar pelas provas a que lhe serviria o corpo.

 

Q. 359. Dado o caso que o nascimento da criança pusesse em perigo a vida da mãe dela, haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda? R: “Preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.”

 

E o que diz o Código Penal sobre aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento.

 

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos. (…)

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (terceiro)

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: (Aborto necessário)

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Pesquisa Jurisprudencial revela que:

 

 

Criminaliza

Não criminaliza

STF (ref 3)

 

Primeiro trimestre

STF

 

Anencéfalo

STF

Terceiro provocador/ex. médico

 

STJ (ref 4)

 

Terapêutico

STJ (ref 5)

Provocado pela gestante

 

STJ (ref 6)

Sem consentimento da gestante

 

TJSP (ref 7)

6 meses gestação

 

TJSP (ref 8)

Provocado pela gestante

 

TJSP (ref 9)

 

Anencéfalo

O espiritismo nos ensina a viver sob a égide do livre arbítrio com responsabilidade. Do mesmo modo, não cogita a aplicação de penas e castigos. Cada ser é condutor do seu destino; constrói situações aflitivas ou felizes e a lei da reencarnação indica as infinitas oportunidades que os espíritos terão para progredir.

 

            Voltemos à questão inicial: A quem cabe a decisão de interromper uma gravidez?

 

De acordo com o nosso entendimento, esta decisão é da gestante.

 

Particularmente, não somos favoráveis ao aborto, e fazemos questão de ressaltar isso, mas nos sentimos muito à vontade para dizer que não podemos impor a nossa convicção a ninguém, tampouco nos sentimos no direito de condenar a mulher que, por razões desconhecidas, decidiu abortar. Estamos bastante convictos de que todos teremos novas oportunidades para aprender e crescer.

 

Com base nos conceitos fundamentais do espiritismo e no desenvolvimento dos valores da sociedade, sobretudo do respeito aos direitos de todos os seres humanos, propomos a seguinte abordagem para o tema:

 

- somos contrários ao aborto, pois valorizamos demais a vida;

- propomos que a mulher, na medida de suas forças, embora reconhecendo que é dela o direito de decisão e – de regra - a carga advinda da gravidez, busque assimilar a gravidez acidental;

- incentivamos o uso dos métodos anticonceptivos quando a gravidez não é desejada;

- apoiamos mulheres que desejam ter seus filhos (é necessário dar condições);

- consideramos fundamental promover a educação sexual.

Acima de tudo, propomos respeito ao livre arbítrio, cabendo à mulher decidir o que fazer no caso de gravidez indesejada; defendemos a admissão do aborto terapêutico e que em nenhum caso a mulher seja criminalizada.

 

            Os crentes de todas as religiões condenam todo tipo de aborto e condenam até mesmo a pílula do dia seguinte, sob o pretexto de que já teria havido a fecundação e, portanto, já existiria vida. Defendem a criminalização de condutas que a própria lei não pune, como os diversos anticonceptivos e o aborto se a gravidez resultou de estupro.

 

            Pensamos a filosofia kardecista como uma contribuição libertadora e não como instrumento de julgamentos e condenações. Ao invés de intimidar e condenar, exigindo a imputação de crime à gestante que abortou, devemos orientar as mulheres sobre o papel da maternidade e a importância da vida; ajudar na educação; auxiliar a formar uma geração de jovens responsáveis; amparar as jovens mães desprotegidas.

 

            Antes de afirmar que somos favoráveis à criminalização da gestante que pratica qualquer tipo de aborto, deveríamos analisar as consequências da manutenção obrigatória de uma gravidez indesejada, ou decorrente do estupro, por exemplo.  Melhor seria se os representantes dos mais diversos segmentos religiosos saíssem em campanhas públicas, usando a mídia nacional como fazem para condenar o aborto, apresentando propostas concretas de apoio, amparo, proteção e encaminhamento de todas as grávidas de filhos indesejados. Muito melhor seria se esses representantes religiosos tivessem o mesmo olhar implacável contra o abandono e a miséria que ceifam a vida real de crianças marginalizadas e condenadas a condições indignas e degradantes.

Em sua obra ABORTO E CONTRACEPÇÃO, Celso Cezar Papaleo, após discutir a impossibilidade de separar o tema do aborto da irrealização plena do bem comum (justiça social), conclui:

“Sociedades injustas afugentam o amor entre os homens e problematizam a própria autoestima humana, desviando-nos de nossas naturais finalidades, cuja objetivação impossibilita para grande número. A ética individual periclita quando falecem valores na vida social”. (ref 10)

É estranhamente paradoxal que as religiões defendam tanto uma célula recém fecundada, que absolutamente não pode ser denominada feto ou criança, posicionando-se até mesmo contra a pílula do dia seguinte, sob o argumento de que poderia ter ocorrido a fecundação e, por consequência, existiria uma célula ovo com algumas horas em formação, mas não se incomodem  em ver tantas pessoas, incluindo uma imensidão de crianças perambulando pelo mundo, à mercê da própria sorte, sedentas por um olhar religioso em socorro de suas vidas; estas sim, reais, e bem reais. Sejamos a favor da vida, literalmente!

 

Ao tempo em que este artigo estava sendo finalizado um caso chamou a atenção do país: o da menina de dez anos de idade que reside no Espírito Santo, vítima de violência sexual por um familiar. O sigilo que deveria vigorar tendo em vista a idade da menina foi quebrado pela ativista da extrema-direita, Sara Winter. A interrupção da gravidez foi autorizada pelo Poder Judiciário. Esta possibilidade está prevista no ordenamento jurídico brasileiro desde 1940.

 

O que causou espanto, além da divulgação do fato – o que, por si só, já caracteriza crime – foi a movimentação criada contra a decisão judicial e até contra o médico. Cabe avaliar se a intenção dos fundamentalistas é sobrepor preceito religioso a preceito legal, o que é vedado pelo caráter laico do estado brasileiro. Frise-se: a interrupção da gravidez em caso de estupro é autorizada em nossa legislação desde a edição do Código Penal de 1940. Portanto, a decisão judicial aplicou a lei e atendeu recomendação médica – dupla motivação legal, portanto. Neste caso, a integridade da mãe (criança) deve ser preservada. Como já propunha O Livro dos Espíritos, na questão 359, no ano de 1857, Século XIX.

 

A discussão, se considerarmos a idade da mãe – 10 anos – e o fato de que a gravidez resultou de estupro praticado durante vários anos, parece surreal, mas no meio do caminho, além de correntes evangélicas, manifestaram-se contra o aborto o presidente da CNBB e a Associação Médico Espírita do Brasil. Ao que parece tais entidades conseguem ver na criança uma assassina. Como disse Caetano Veloso, “O padre na televisão diz que é contra a legalização do aborto e a favor da pena de morte; Eu disse – Não, que pensamento torto" (ref 11).

 

Autores:

Jacira Jacinto da Silva - Advogada, e Presidenta da CEPA.

Saulo de Meira Albach - Procurador do Município de Curitiba-PR e membro co-fundador do grupo musical Alma Sonora.

 

Referências no texto:

Ref 1 - Em novembro de 1997, foi julgado caso envolvendo 45 professores que tiveram direitos previdenciários suprimidos pelas autoridades municipais de Maria La Baja e Zambrano. Naquela ocasião, a CCC constatou que os motivos determinantes do desrespeito aos direitos dos autores eram decorrentes de falhas estruturais do Estado colombiano, uma vez que não podiam ser imputados a um único órgão, mas sim às diversas esferas integrantes do Poder Público, pois resultavam da execução desordenada e irracional de políticas públicas educacionais. A partir desse diagnóstico, a CCC concedeu o direito pleiteado pelos professores autores da demanda judicial.

Cursino. Bruno Barca. O transplante do Estado de Coisas Inconstitucional para o sistema jurídico brasileiro via ADPF. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 16 – n. 50, p. 89-121 – jul./dez. 2017.  https://escola.mpu.mp.br/publicacoes/boletim-cientifico/edicoes-do-boletim/boletim-cientifico-n-50-julho-dezembro-2017/o-transplante-do-estado-de-coisas-inconstitucional-para-o-sistema-juridico-brasileiro-via-adpf/at_download/file capturado em 04/08/2020, às 22h.

 Ref 2 - Art. 1º da Lei 9.882/99.

 Ref 3 -  STF – Supremo Tribunal Federal

 Ref 4 - STJ – Superior Tribunal de Justiça

 Ref 5 - C 516437 / SP – STJ HABEAS CORPUS 2019/0175083-7

 Ref 6 - Inq 323-PE, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 19/3/2003.

 Ref 7 -TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 Ref 8 - 2188906-47.2017.8.26.0000 

 

Ref 9 - 1000337-79.2016.8.26.0076 

Ref 10 - Rio de Janeiro; Ed. Renovar, 1993, p. 87.

Ref 11 - Letra da canção “Vamo Comer”.


Nota: Artigo originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.

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