ABORTO – um olhar humanizado
“Que tristes os caminhos, se não fora a
presença distante das estrelas! “ Mario Quintana
Para iniciar esta difícil discussão, buscaremos
responder à seguinte questão: A quem cabe a decisão de interromper uma gravidez?
À gestante, ou ao Estado?
Enquanto o país aguarda o julgamento, pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), da arguição de descumprimento de preceito fundamental ADPF
- 442/DF, com parecer da Procuradoria Geral da República, pela criminalização
do aborto, é tempo de espíritas discutirem o assunto.
Antes de tudo, alguns esclarecimentos
iniciais.
ADPF é uma das ações que fazem parte
do controle concentrado de constitucionalidade, cujo julgamento cabe ao
STF. Sua inspiração vem da Corte Constitucional da Colômbia, que forjou a
técnica de decisão do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI).( ref 1) A função
desta ação é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato
do Poder Público (ref 2).
E o que seria preceito fundamental? Refere-se
a normas e princípios imprescindíveis e de relevância especial da Constituição.
A ação serve tanto para evitar lesões como também reparar as lesões já causadas
pela violação dos preceitos fundamentais.
Em 6/03/2017, o PARTIDO SOCIALISMO E
LIBERDADE – PSOL apresentou ao STF a ADPF 442, visando à não recepção parcial
dos artigos. 124 e 126 do Código Penal, indicando como preceitos fundamentais
violados, os princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não
discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à
liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou
degradante, à saúde e ao planejamento familiar, previstos nos artigos. 1º, I e
II, 3º, IV, 5º, caput e I e III, 6º, caput, 196 e 226, § 7º, da Constituição
Federal.
Em 3/08/2018 – o STF realizou audiência
pública. Foram recebidos mais de 180 pedidos de habilitação de expositor
na audiência, abrangendo pessoas físicas com potencial de
autoridade e representatividade, organizações não governamentais, sociedades
civis e institutos específicos.
Em maio de 2020 sobreveio o parecer do
Ministério Público: “opina o PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA pelo indeferimento
da medida cautelar e, no mérito, pela improcedência da arguição de
descumprimento de preceito fundamental”. Em síntese, opinou pela
criminalização.
Falta apenas o julgamento em plenário no
STF.
E nós, espíritas, como interpretamos a
situação? A mulher que pratica aborto com menos de 12 semanas de gravidez, como
discute a ADPF, deve ser criminalizada, ou não?
O direito à vida é inquestionável, sendo o
primeiro e o maior de todos os bens tutelados pela legislação. É com esse
fundamento que religiosos, dentre eles grande parte dos espíritas, advogam a condenação
da pessoa que pratica o aborto. Vejamos o que dispõe o Espiritismo.
A pergunta n. 880 de O Livro dos Espíritos
está assim redigida: Qual o primeiro de todos os direitos naturais do homem? Resposta:
“O de viver. Por isso é que ninguém tem o direito de atentar contra a vida de
seu semelhante, nem o de fazer o que quer que possa comprometer-lhe a
existência corporal”.
A complexa questão do aborto, entretanto,
passa pela análise de outros fatores.
Ainda analisando O Livro dos Espíritos:
Q. 136.a — Pode o corpo existir sem a alma?
R: “Pode; entretanto, desde que cessa a vida do corpo, a alma o abandona. Antes
do nascimento, ainda não há união definitiva entre a alma e o corpo”.
Q. 344. Em que momento a alma se une ao
corpo? R: “A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do
nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para habitar
certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez mais se vai
apertando até ao instante em que a criança vê a luz”.
Q. 346. Que faz o Espírito, se o corpo que
ele escolheu morre antes de se verificar o nascimento? R: “Escolhe outro”.
Q. 357. Que consequências tem para o
Espírito o aborto? R: “É uma existência nulificada que ele terá de recomeçar”.
Q. 358. Constitui crime a provocação do
aborto, em qualquer período da gestação? R: Há crime sempre que transgredis a lei
de Deus Uma mãe, ou quem quer que seja, cometerá
crime sempre que tirar a vida a uma criança antes do seu nascimento, por
impedir uma alma de passar pelas provas a que lhe serviria o corpo. |
Q. 359. Dado o caso que o nascimento da
criança pusesse em perigo a vida da mãe dela, haverá crime em sacrificar-se a
primeira para salvar a segunda? R: “Preferível é se sacrifique o ser que ainda
não existe a sacrificar-se o que já existe.”
E o que diz o Código Penal sobre aborto
provocado pela gestante ou com seu consentimento.
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou
consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos. (…)
Art. 126 - Provocar aborto com o
consentimento da gestante: (terceiro)
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Art. 128. Não se pune o aborto praticado
por médico: (Aborto necessário)
I – se não há outro meio de salvar a vida
da gestante
II – se a gravidez resulta de estupro e o
aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
Pesquisa Jurisprudencial revela que:
|
Criminaliza |
Não
criminaliza |
STF
(ref 3) |
|
Primeiro
trimestre |
STF |
|
Anencéfalo |
STF |
Terceiro
provocador/ex. médico |
|
STJ
(ref 4) |
|
Terapêutico |
STJ
(ref 5) |
Provocado
pela gestante |
|
STJ
(ref 6) |
Sem
consentimento da gestante |
|
TJSP
(ref 7) |
6
meses gestação |
|
TJSP
(ref 8) |
Provocado
pela gestante |
|
TJSP
(ref 9) |
|
Anencéfalo |
O
espiritismo nos ensina a viver sob a égide do livre arbítrio
com responsabilidade. Do mesmo modo, não cogita a aplicação de penas e castigos.
Cada ser é condutor do seu destino; constrói situações aflitivas ou felizes e a
lei da reencarnação indica as infinitas oportunidades que os espíritos terão
para progredir.
Voltemos
à questão inicial: A quem cabe a decisão de interromper uma gravidez?
De acordo com o nosso entendimento, esta
decisão é da gestante.
Particularmente, não somos favoráveis ao
aborto, e fazemos questão de ressaltar isso, mas nos sentimos muito à vontade
para dizer que não podemos impor a nossa convicção a ninguém, tampouco nos sentimos
no direito de condenar a mulher que, por razões desconhecidas, decidiu abortar.
Estamos bastante convictos de que todos teremos novas oportunidades para aprender
e crescer.
Com base nos conceitos fundamentais do
espiritismo e no desenvolvimento dos valores da sociedade, sobretudo do
respeito aos direitos de todos os seres humanos, propomos a seguinte abordagem
para o tema:
- somos contrários ao aborto, pois
valorizamos demais a vida;
- propomos que a mulher, na medida de suas
forças, embora reconhecendo que é dela o direito de decisão e – de regra - a
carga advinda da gravidez, busque assimilar a gravidez acidental;
- incentivamos o uso dos métodos
anticonceptivos quando a gravidez não é desejada;
- apoiamos mulheres que desejam ter seus
filhos (é necessário dar condições);
- consideramos fundamental promover a
educação sexual.
Acima de tudo, propomos respeito ao livre
arbítrio, cabendo à mulher decidir o que fazer no caso de gravidez indesejada;
defendemos a admissão do aborto terapêutico e que em nenhum caso a mulher seja
criminalizada.
Os
crentes de todas as religiões condenam todo tipo de aborto e condenam até mesmo
a pílula do dia seguinte, sob o pretexto de que já teria havido a fecundação e,
portanto, já existiria vida. Defendem a criminalização de condutas que a
própria lei não pune, como os diversos anticonceptivos e o aborto se a gravidez
resultou de estupro.
Pensamos a filosofia kardecista como
uma contribuição libertadora e não como instrumento de julgamentos e condenações.
Ao invés de intimidar e condenar, exigindo a imputação de crime à gestante que abortou,
devemos orientar as mulheres sobre o papel da maternidade e a importância da
vida; ajudar na educação; auxiliar a formar uma geração de jovens responsáveis;
amparar as jovens mães desprotegidas.
Antes
de afirmar que somos favoráveis à criminalização da gestante que pratica qualquer
tipo de aborto, deveríamos analisar as consequências da manutenção obrigatória
de uma gravidez indesejada, ou decorrente do estupro, por exemplo. Melhor seria se os representantes dos mais
diversos segmentos religiosos saíssem em campanhas públicas, usando a mídia
nacional como fazem para condenar o aborto, apresentando propostas concretas de
apoio, amparo, proteção e encaminhamento de todas as grávidas de filhos
indesejados. Muito melhor seria se esses representantes religiosos tivessem o
mesmo olhar implacável contra o abandono e a miséria que ceifam a vida real de
crianças marginalizadas e condenadas a condições indignas e degradantes.
Em sua obra ABORTO E CONTRACEPÇÃO, Celso
Cezar Papaleo, após discutir a impossibilidade de separar o tema do aborto da
irrealização plena do bem comum (justiça social), conclui:
“Sociedades injustas afugentam o amor entre
os homens e problematizam a própria autoestima humana, desviando-nos de nossas
naturais finalidades, cuja objetivação impossibilita para grande número. A
ética individual periclita quando falecem valores na vida social”. (ref 10)
É estranhamente paradoxal que as religiões
defendam tanto uma célula recém fecundada, que absolutamente não pode ser
denominada feto ou criança, posicionando-se até mesmo contra a pílula do dia
seguinte, sob o argumento de que poderia ter ocorrido a fecundação e, por consequência,
existiria uma célula ovo com algumas horas em formação, mas não se incomodem em ver tantas pessoas, incluindo uma imensidão
de crianças perambulando pelo mundo, à mercê da própria sorte, sedentas por um
olhar religioso em socorro de suas vidas; estas sim, reais, e bem reais. Sejamos
a favor da vida, literalmente!
Ao tempo em que este artigo estava sendo
finalizado um caso chamou a atenção do país: o da menina de dez anos de idade
que reside no Espírito Santo, vítima de violência sexual por um familiar. O
sigilo que deveria vigorar tendo em vista a idade da menina foi quebrado pela ativista
da extrema-direita, Sara Winter. A interrupção da gravidez foi autorizada pelo
Poder Judiciário. Esta possibilidade está prevista no ordenamento jurídico brasileiro
desde 1940.
O que causou espanto, além da divulgação do
fato – o que, por si só, já caracteriza crime – foi a movimentação criada
contra a decisão judicial e até contra o médico. Cabe avaliar se a intenção dos
fundamentalistas é sobrepor preceito religioso a preceito legal, o que é vedado
pelo caráter laico do estado brasileiro. Frise-se: a interrupção da gravidez em
caso de estupro é autorizada em nossa legislação desde a edição do Código Penal
de 1940. Portanto, a decisão judicial aplicou a lei e atendeu recomendação
médica – dupla motivação legal, portanto. Neste caso, a integridade da mãe (criança)
deve ser preservada. Como já propunha O Livro dos Espíritos, na questão 359, no
ano de 1857, Século XIX.
A discussão, se considerarmos a idade da mãe
– 10 anos – e o fato de que a gravidez resultou de estupro praticado durante
vários anos, parece surreal, mas no meio do caminho, além de correntes
evangélicas, manifestaram-se contra o aborto o presidente da CNBB e a
Associação Médico Espírita do Brasil. Ao que parece tais entidades conseguem
ver na criança uma assassina. Como disse Caetano Veloso, “O padre na televisão
diz que é contra a legalização do aborto e a favor da pena de morte; Eu disse –
Não, que pensamento torto" (ref 11).
Autores:
Jacira Jacinto da Silva - Advogada, e
Presidenta da CEPA.
Saulo de Meira Albach - Procurador do
Município de Curitiba-PR e membro co-fundador do grupo musical Alma Sonora.
Referências no texto:
Ref 1 - Em novembro de 1997, foi julgado
caso envolvendo 45 professores que tiveram direitos previdenciários suprimidos
pelas autoridades municipais de Maria La Baja e Zambrano. Naquela ocasião, a
CCC constatou que os motivos determinantes do desrespeito aos direitos dos
autores eram decorrentes de falhas estruturais do Estado colombiano, uma vez
que não podiam ser imputados a um único órgão, mas sim às diversas esferas
integrantes do Poder Público, pois resultavam da execução desordenada e
irracional de políticas públicas educacionais. A partir desse diagnóstico, a CCC
concedeu o direito pleiteado pelos professores autores da demanda judicial.
Cursino. Bruno Barca. O transplante do
Estado de Coisas Inconstitucional para o sistema jurídico brasileiro via ADPF.
Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 16 – n. 50, p. 89-121 – jul./dez.
2017. https://escola.mpu.mp.br/publicacoes/boletim-cientifico/edicoes-do-boletim/boletim-cientifico-n-50-julho-dezembro-2017/o-transplante-do-estado-de-coisas-inconstitucional-para-o-sistema-juridico-brasileiro-via-adpf/at_download/file
capturado em 04/08/2020, às 22h.
Ref
2 - Art. 1º da Lei 9.882/99.
Ref
3 - STF – Supremo Tribunal Federal
Ref
4 - STJ – Superior Tribunal de Justiça
Ref 5 - C 516437 / SP – STJ HABEAS CORPUS
2019/0175083-7
Ref 6 - Inq 323-PE, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 19/3/2003.
Ref
7 -TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Ref 8 - 2188906-47.2017.8.26.0000 |
Ref 9 - 1000337-79.2016.8.26.0076
Ref 10 - Rio de Janeiro; Ed. Renovar, 1993,
p. 87.
Ref 11 - Letra da canção “Vamo Comer”.
Nota: Artigo
originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.
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