terça-feira, 2 de março de 2021

O CANCELAMENTO E O MOVIMENTO ESPÍRITA – por Saulo de Meira Albach

 

O CANCELAMENTO E O MOVIMENTO ESPÍRITA – por Saulo de Meira Albach

 

Na sociedade contemporânea, marcada pelo uso das redes sociais, uma prática tem sido destacada diante da polarização e da radicalização do debate, especialmente na esfera da política: o cancelamento.

 “Funciona assim: um usuário de mídias sociais, como Twitter e Facebook, presencia um ato que considera errado, registra em vídeo ou foto e posta em sua conta, com o cuidado de marcar a empresa empregadora do denunciado e autoridades públicas ou outros influenciadores digitais que possam amplificar o alcance da mensagem. É comum que, em questão de horas, o post tenha sido replicado milhares de vezes.” (1)

 Como toda prática política o cancelamento, mal utilizado, pode gerar injustiças e excessos. Afinal de contas, uma tendência decorrente da polarização extrema na qual vivemos hoje é por fim ao debate, ao diálogo.

 O psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Christian Dunker pontua que há um uso um tanto quanto exagerado do cancelamento, mas isso não significa que ele deva ser invalidado. “Há que se distinguir o cancelamento, ato político e estrategicamente bem-posto, do cancelamento autocrático, que produz a sensação de moralismo. Toda vez que cancelo simplesmente porque ‘eu não faria assim’, pressupondo que o outro deva agir exatamente como eu ajo, eu estou indo contra a inclusão, a universalização do diálogo. E, ainda mais grave, ao me retirar do debate, o cancelado pode se beneficiar e criar um ambiente ainda mais tóxico, machista, violento e, portanto, aumentar a coerência identitária do seu grupo, o que seria péssimo.” (2)

 Interessante observar que tal procedimento assemelha-se a uma prática que ocorre no movimento espírita brasileiro há muito tempo. Uma espécie de cancelamento.

 Alguns adeptos - por assumirem alguma postura ou linha de pensamento contrária àquela do grupo dominante - tem sua memória apagada pela história oficial das instituições espíritas.

 Um caso antigo é o do Professor Angeli Torteroli, ativista espírita de destaque no Rio de Janeiro que fez oposição à linha denominada mística na disputa de poder que marcou o movimento espírita do final do século XIX e início do XX, reduzida historicamente a “místicos x científicos”.

  

O historiador Mauro Quintella e o escritor Eugênio Lara resgataram a memória do professor Torteroli. (3)

 O “apagamento” neste caso chegou ao ponto de suprimir qualquer referência ao trabalho do “encrenqueiro” e, quando não havia como deixar de citá-lo o faziam de forma cifrada: o professor T.

 Outro “cancelado” é o jornalista, psicólogo e escritor espírita Jaci Régis (1932 – 2010). Catarinense, radicado em Santos (SP), escreveu inúmeras obras espíritas, dirigiu e editou o jornal Espiritismo e Unificação por 23 anos, criou e dirigiu o jornal “Abertura” que circula até hoje, foi diretor da Comunidade Assistencial Espírita Lar Veneranda por 32 anos e fundador do ICKS – Instituto de Cultura Kardecista de Santos, um dos fundadores da União Municipal Espírita de Santos (UMES), em 1951, dentro outras atividades no meio espírita. 

 Ao assumir a linha do espiritismo laico e disputar eleição para a presidência da USE, Jaci que trabalhou por décadas no movimento dito “de unificação”, foi retirado da história oficial.

 Exemplo recente deste apagamento está na edição de 179 – setembro/outubro do jornal DIRIGENTE ESPÍRITA, órgão de divulgação da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo. Em artigo sobre a imprensa espírita, a articulista cita espíritas que se destacaram na divulgação do Espiritismo através da imprensa: Olímpio Teles, Cairbar Schutel, Bezerra de Menezes, Pedro Camargo (Vinícius), Batuíra, Herculano Pires, Deolindo Amorim, Jorge Rizzini, Anália Franco, Eduardo Carvalho Monteiro, Edgard Armond e tantos outros.

 Estaria meu saudoso amigo Jaci incluído nos “tantos outros”?

 Enfim, há muitos outros episódios envolvendo Jaci Régis e há muitos outros casos espalhados pelo nosso país (Krishnamurti de Carvalho Dias, Waldo Vieira, Gasparetto, etc.). Isso revela a dificuldade do movimento espírita em aceitar o debate, a crítica, o questionamento, especialmente quando se trata da questão religiosa.

 A carência de preservação da história dentro do movimento espírita pode ser vista como uma das causas desses apagamentos. Mas, também se identifica uma estratégia – e aqui o fato é mais lamentável - visando impedir que se conheça o pensamento daqueles que em algum momento ousaram romper com o pensamento hegemônico ou dominante, ainda que tenham feito parte da instituição.

 A professora Maria Letícia Mazucchi Ferreira leciona em artigo publicado na Revista Aurora (Revista de Arte, Mídia e Política), n. 10 (2011):

Johannn Michel em seu texto “Podemos falar de uma política do esquecimento”(2010) estabelece uma tipologia do esquecimento indo daquele abordado como omissão, que decorre de descartes funcionais tanto no indivíduo quanto na sociedade; a negação, que ao contrário do descarte involuntário é uma patologia da memória ligada à traumas que não foram superados mas que não podem ficar na esfera do consciente; a manipulação do esquecimento, fortemente marcada pela ação de atores públicos encarregados de transmitir a memória oficial. Ainda que compreendidos em separado, esses são como tipos ideais e podem atuar concomitantemente, pois estão condicionados aos contextos nos quais são gerados.(4)

A manipulação do esquecimento é prática incompatível com a filosofia espírita posto que falseia a verdade.  Seria melhor citar o agente que fez história e criticá-lo ou declinar os motivos pelos quais se contesta o seu pensamento do que excluí-lo, apagá-lo, cancelá-lo. Mas quase como regra geral, em matéria de atuação interna o movimento espírita tem preferido o caminho autoritário ao alteritário; o excludente ao includente.

Assim se fomenta a divisão e não vejo no horizonte estreito da minha visão, possibilidade de reversão deste quadro a curto ou médio prazo. 

 

Desculpe-nos, Kardec!

 

1-In BBC News: https://www.bbc.com/portuguese/geral-53537542, acesso em 05.09.2020.

2- In Carta Capital: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/cancelamento-nas-redes-sociais-vai-da-represalia-ao-linchamento/ acesso em 05.09.2020.

3- In Biografia de Afonso Angeli Torteroli, acessada no site www.autoresespiritasclassicos.com e História Ilustrada do Espiritismo no Brasil, acesso em www.cpdocespirita.com.br .

4- Políticas da Memória e Políticas do Esquecimento. In: D:/Meus%20Arquivos/Downloads/4500-11653-1-PB.pdf

 

Saulo de Meira Albach - publicado no Jornal Abertura Janeiro -Fevereiro 2021

 Nota: Artigo originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.

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