O CANCELAMENTO E O
MOVIMENTO ESPÍRITA – por Saulo de Meira Albach
Na sociedade
contemporânea, marcada pelo uso das redes sociais, uma prática tem sido
destacada diante da polarização e da radicalização do debate, especialmente na
esfera da política: o cancelamento.
“Funciona assim: um usuário de mídias sociais, como Twitter e
Facebook, presencia um ato que considera errado, registra em vídeo ou foto e
posta em sua conta, com o cuidado de marcar a empresa empregadora do denunciado
e autoridades públicas ou outros influenciadores digitais que possam amplificar
o alcance da mensagem. É comum que, em questão de horas, o post tenha sido
replicado milhares de vezes.” (1)
Como toda prática
política o cancelamento, mal utilizado, pode gerar injustiças e excessos.
Afinal de contas, uma tendência decorrente da polarização extrema na qual
vivemos hoje é por fim ao debate, ao diálogo.
O psicanalista e
professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Christian Dunker pontua que há um uso um tanto quanto exagerado do
cancelamento, mas isso não significa que ele deva ser invalidado. “Há que se
distinguir o cancelamento, ato político e estrategicamente bem-posto, do
cancelamento autocrático, que produz a sensação de moralismo. Toda vez que
cancelo simplesmente porque ‘eu não faria assim’, pressupondo que o outro deva
agir exatamente como eu ajo, eu estou indo contra a inclusão, a universalização
do diálogo. E, ainda mais grave, ao me retirar do debate, o cancelado pode se
beneficiar e criar um ambiente ainda mais tóxico, machista, violento e,
portanto, aumentar a coerência identitária do seu grupo, o que seria péssimo.” (2)
Interessante
observar que tal procedimento assemelha-se a uma prática que ocorre no
movimento espírita brasileiro há muito tempo. Uma espécie de cancelamento.
Alguns adeptos - por
assumirem alguma postura ou linha de pensamento contrária àquela do grupo
dominante - tem sua memória apagada pela história oficial das instituições
espíritas.
Um caso antigo é o
do Professor Angeli Torteroli, ativista espírita de destaque no Rio de Janeiro
que fez oposição à linha denominada mística
na disputa de poder que marcou o movimento espírita do final do século XIX e
início do XX, reduzida historicamente a “místicos x científicos”.
O historiador Mauro
Quintella e o escritor Eugênio Lara resgataram a memória do professor
Torteroli. (3)
O “apagamento” neste caso chegou ao ponto de suprimir
qualquer referência ao trabalho do “encrenqueiro” e, quando não havia como
deixar de citá-lo o faziam de forma cifrada: o professor T.
Outro “cancelado”
é o jornalista, psicólogo e escritor espírita Jaci Régis (1932 – 2010).
Catarinense, radicado em Santos (SP), escreveu inúmeras obras espíritas, dirigiu
e editou o jornal Espiritismo e Unificação por 23 anos, criou e dirigiu o
jornal “Abertura” que circula até hoje, foi diretor da Comunidade Assistencial
Espírita Lar Veneranda por 32 anos e fundador do ICKS – Instituto de Cultura
Kardecista de Santos, um dos fundadores da União Municipal Espírita de Santos
(UMES), em 1951, dentro outras atividades no meio espírita.
Ao assumir a linha
do espiritismo laico e disputar eleição para a presidência da USE, Jaci que
trabalhou por décadas no movimento dito “de unificação”, foi retirado da
história oficial.
Exemplo recente
deste apagamento está na edição de 179 – setembro/outubro do jornal DIRIGENTE
ESPÍRITA, órgão de divulgação da União das Sociedades Espíritas do Estado de
São Paulo. Em artigo sobre a imprensa espírita, a articulista cita espíritas
que se destacaram na divulgação do Espiritismo através da imprensa: Olímpio
Teles, Cairbar Schutel, Bezerra de Menezes, Pedro Camargo (Vinícius), Batuíra,
Herculano Pires, Deolindo Amorim, Jorge Rizzini, Anália Franco, Eduardo
Carvalho Monteiro, Edgard Armond e tantos outros.
Estaria meu
saudoso amigo Jaci incluído nos “tantos outros”?
Enfim, há muitos
outros episódios envolvendo Jaci Régis e há muitos outros casos espalhados pelo
nosso país (Krishnamurti de Carvalho Dias, Waldo Vieira, Gasparetto, etc.). Isso
revela a dificuldade do movimento espírita em aceitar o debate, a crítica, o
questionamento, especialmente quando se trata da questão religiosa.
A carência de
preservação da história dentro do movimento espírita pode ser vista como uma
das causas desses apagamentos. Mas, também se identifica uma estratégia – e aqui
o fato é mais lamentável - visando impedir que se conheça o pensamento daqueles
que em algum momento ousaram romper com o pensamento hegemônico ou dominante,
ainda que tenham feito parte da instituição.
A professora Maria
Letícia Mazucchi Ferreira leciona em artigo publicado na Revista Aurora
(Revista de Arte, Mídia e Política), n. 10 (2011):
Johannn Michel em
seu texto “Podemos falar de uma política do esquecimento”(2010) estabelece uma
tipologia do esquecimento indo daquele abordado como omissão, que decorre de
descartes funcionais tanto no indivíduo quanto na sociedade; a negação, que ao
contrário do descarte involuntário é uma patologia da memória ligada à traumas
que não foram superados mas que não podem ficar na esfera do consciente; a
manipulação do esquecimento, fortemente marcada pela ação de atores públicos
encarregados de transmitir a memória oficial. Ainda que compreendidos em
separado, esses são como tipos ideais e podem atuar concomitantemente, pois
estão condicionados aos contextos nos quais são gerados.(4)
A manipulação do
esquecimento é prática incompatível com a filosofia espírita posto que falseia
a verdade. Seria melhor citar o agente
que fez história e criticá-lo ou declinar os motivos pelos quais se contesta o
seu pensamento do que excluí-lo, apagá-lo, cancelá-lo. Mas quase como regra
geral, em matéria de atuação interna o movimento espírita tem preferido o
caminho autoritário ao alteritário; o excludente ao includente.
Assim se fomenta a
divisão e não vejo no horizonte estreito da minha visão, possibilidade de
reversão deste quadro a curto ou médio prazo.
Desculpe-nos,
Kardec!
Saulo de Meira Albach - publicado no Jornal Abertura Janeiro -Fevereiro 2021
Nota: Artigo
originalmente publicado no Jornal Abertura de Santos.
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