Opinião em Tópicos
A TRAGÉDIA DA BOATE KISS
Nove anos após o acontecido, os responsáveis pela tragédia da Boate Kiss, de
Santa Maria/RS, começam a ser julgados pelo Tribunal do Júri.
No incêndio de janeiro de 2013, morreram 242 pessoas, a maioria delas jovens de
20 a 30 anos, restando com sequelas mais de 600 outras.
Como sempre acontece, quando de tragédias coletivas, intérpretes de plantão da
lei de causa e efeito, dando a ela uma exegese linear, vingativa e cruel, não
hesitaram em atribuir às vítimas a condição de verdugos do passado. Todas elas,
atraídas pela draconiana “justiça divina”, que com fogo fere quem com fogo
feriu, teriam purgado, naquela noite, as culpas que lhe incendiavam a alma,
agora vendo incendiados seus próprios corpos jovens, em plena flor de uma nova
encarnação.
A “JUSTIÇA DIVINA RETRIBUTIVA”
Ora, se assim fosse, os empresários e músicos que agora sentam no banco dos
réus, ao darem causa à terrível tragédia, já estariam, de igual forma,
plasmando uma futura encarnação na qual, eles próprios, terão de resgatar, com
idênticos sofrimentos, o que infligiram às suas vítimas. Que “justiça divina” é
essa que pereniza, encarnação após encarnação, mecanismos de pena retributiva,
num infindo círculo vicioso?
Pior que isso: aquele incêndio não teria punido apenas suas vítimas diretas.
Perder um filho em circunstâncias assim implica em sofrimento de tal
intensidade aos pais que, presume-se, supera, inclusive, a dor de quem parte.
No caso, uma cidade inteira sofreu intensamente. Santa Maria é um grande centro
universitário para o qual acorrem jovens das mais diferentes regiões. Nosso
Estado, particularmente, e o mundo inteiro, viram as cenas dantescas do
incêndio e não houve quem não se comovesse com a tragédia. Todos os que
sofremos com isso estaríamos, diante do raciocínio linear da “justiça divina
retributiva”, pagando débitos do passado?
DORES QUE NÃO SE PODE MEDIR
O tempo decorrido já deve ter amenizado um pouco a dor dos familiares das
vítimas. Estes formaram uma associação de apoio e assistência mútua. Correto! A
dor sofrida solidariamente é mais facilmente administrável. Mesmo assim, à luz
do pensamento espírita, um aspecto me preocupa: o papel, aparentemente central,
assumido pelos familiares, qual seja o de agravar o mais possível a pena a ser
aplicada aos acusados.
Impressionou-me uma entrevista dada por um dos réus que, inclusive, já esteve
temporariamente preso. Ele diz que, decorridos nove anos, a tragédia está
permanentemente em seu pensamento. Dorme e acorda com as cenas daquela
madrugada. Nunca mais conseguiu sequer trabalhar. Não há divertimento, lazer ou
consolo capazes de afastar a dor que lhe ficou na alma. Poderá haver pena
maior?
JUSTIÇA E VINGANÇA
Embora a mim pareça tratar-se de um crime de natureza culposa (quando o agente
dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia), a definição
jurídica finalmente dada ao delito foi a de dolo eventual (quando o agente,
mesmo não querendo o resultado, assume o risco de produzi-lo).
Aceita a tese dolosa, os réus deverão ser condenados a longos anos de prisão. E
aí a pergunta que me faço: que benefício esse encarceramento poderá trazer à
sociedade, aos acusados, aos familiares das vítimas, a elas próprias (se estas,
em outra dimensão, ainda se preocupem com isso)?
Tantos anos envolvido com questões de direito conjugado com a reflexão
espírita, penso que o cometimento de um erro, sejam quais forem suas
consequências – e aqui elas foram particularmente trágicas -, gera proporcional
sofrimento ao transgressor.
Chego a esta fase amadurecida de minha encarnação com um convencimento acerca
do complexo problema crime/castigo: a prisão, via de regra, é medida inócua. O
encarceramento de alguém só se justifica como defesa social e não como
instrumento de retribuição do mal com o mal. A vida tem mecanismos naturais de
sofrimento, aprendizado e recuperação só alcançáveis pelo exercício do amor e
do perdão.
Justiça
sempre. Vingança jamais!
Artigo publicado no Jornal Abertura -dezembro de 2021
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Em janeiro de 2017 este blog publicou um artigo de Roberto Rufo - Tragédia de Santa Maria e os nossos filhos. Você pode revisar aqui neste link:
https://www.blogger.com/blog/post/edit/8190435979242028935/7961016368892947702
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