O Jornal Abertura
publicou de Junho de 2017 a Abril de 2018 uma série de matérias com este título
escritas por Ricardo de Morais Nunes, agrupamos aqui para que o leitor veja o
painél completo.
A Dra. Alcione Moreno, querida amiga, publicou no
jornal Opinião, do mês de maio de 2017, um excelente artigo que trata de alguns
aspectos do pensamento do filósofo Luc Ferry. Lembrou, gentilmente, a
companheira de ideal, que havíamos apresentado um trabalho há alguns anos atrás
sobre este importante filósofo contemporâneo. Neste trabalho, buscávamos, à
época, estabelecer algumas possíveis convergências das concepções filosóficas
de Luc Ferry com alguns temas do espiritismo. A partir do artigo da Dra.
Alcione, ficamos estimulados a publicar, neste jornal Abertura, uma série de artigos
visando analisar algumas reflexões deste pensador à luz da filosofia espírita.
Luc Ferry é um filósofo francês contemporâneo que tem
se destacado no cenário internacional com a publicação de várias obras, nas
quais expõe seu original pensamento filosófico. É um filósofo que tem tentado
construir um novo humanismo em contraposição ao materialismo contemporâneo, que
tem sua inspiração em Nietzsche, Marx e Freud. Os “filósofos do martelo”, como ficaram conhecidos estes pensadores,
tentaram desconstruir todo o edifício ideológico do humanismo tradicional,
abalando a teoria moderna, de influência cartesiana, que propõe uma
racionalidade pretensamente transparente, dotada de absoluta liberdade e
autonomia em relação aos instintos, às determinações econômicas e ao inconsciente.
Luc Ferry busca repensar a filosofia e propor sua
teoria a partir desta desconstrução. Este é um ponto de interesse para nós,
espíritas laicos e livre pensadores, que buscamos construir um espiritismo
contemporâneo, pós-moderno, em sintonia com as conquistas do pensamento da
atualidade. Na verdade, pensamos que não há como situarmos o espiritismo no
século XXI sem refletirmos sobre a famosa “desconstrução”
realizada pelos referidos pensadores.
Para Luc Ferry
a liberdade é o “excesso” que retira o
homem do mundo meramente natural, constituindo-se em um aspecto de
transcendência do homem em relação à natureza, é aquilo que o diferencia dos
demais seres. Ferry busca, igualmente, recuperar a ideia de transcendência de
valores como verdade, justiça, beleza e amor. No entanto, em sua opinião, esses
valores não estão presentes fora do homem em algum mundo das ideias platônico.
Segundo afirma, descobrimos estes valores em nosso próprio íntimo, na imanência
de nossa própria consciência e não podemos olvidá-los.
Luc Ferry busca, também, resgatar a ideia do sagrado,
o qual não estaria mais em Deus, mas no homem. Afirma que o europeu de hoje
dificilmente daria a sua vida por Deus, pela pátria ou pela revolução, mas, o
faria para defender a sua liberdade ou a vida dos que ele ama, e, por estas
razões, seria capaz de se dar em sacrifício.
Postula que, ao longo do processo histórico, tivemos
um movimento de humanização do divino, como foi o caso da declaração dos
direitos do homem que, segundo sua maneira de ver, nada mais é do que um
cristianismo secularizado. Por outro lado, afirma que, atualmente, vivemos um
momento de sacralização do humano, pois segundo afirma textualmente: “agora é para o outro homem que podemos,
eventualmente, aceitar a assumir riscos e nos darmos em sacrifício”.
Digna de nota é a amizade de Luc Ferry com outro
importante filósofo francês contemporâneo de nome André Comte-Sponville, com o
qual tem tido inúmeras discussões filosóficas interessantíssimas. Sponville se
insere dentro de uma tradição materialista. Publicaram juntos a obra “A Sabedoria dos modernos”, na qual se observa
um riquíssimo debate entre o humanismo de Luc Ferry, defensor da ideia de
liberdade, e o materialismo de Sponville, que defende a possibilidade de uma
espiritualidade ateia.
Finalmente, Ferry resgata uma ideia de filosofia como
sabedoria de vida ou soteriologia, no sentido de que a filosofia, em seu
sentido mais tradicional, seria capaz de acalmar as angústias do homem
levando-o a uma vida feliz e harmoniosa, “salvando-o”,
portanto, de todos os medos, inclusive, do medo da morte. (Abertura
- junho 2017)
Qual é a característica essencial da filosofia?
Luc Ferry afirma em sua obra “Aprender a viver- filosofia para os novos tempos” que na sua época
de estudante aprendeu com seus mestres que a filosofia se tratava simplesmente
da “formação do espírito crítico”,
tendo aprendido, também, que a filosofia seria uma espécie de “método de pensamento rigoroso” e até
mesmo uma “arte da reflexão”.
Afirma, porém, que desde sua juventude costumava
questionar que biólogos, artistas, físicos, jornalistas e matemáticos também
possuem “espírito crítico”, também “pensam com rigor” e “exercitam a arte da reflexão”. Recorda
que sempre teve dificuldade em compreender o que diferenciava a filosofia das
outras disciplinas, pois a explicação de seus professores não o satisfazia,
pois não via nestas definições a característica essencial da filosofia.
Neste sentido, diz Luc Ferry: “Uma das principais extravagâncias do período contemporâneo é reduzir a
filosofia a uma simples reflexão crítica ou ainda a uma teoria da argumentação”.
Afirma que, certamente, a reflexão e a argumentação são importantes como meios
para a filosofia atingir outros fins, mas, segundo ele, não podemos definir a
filosofia por estas características.
Sugere nosso pensador que esqueçamos esta definição de
filosofia e indaga: “qual seria então a
questão central de toda filosofia? ” O próprio Ferry responde: “ o ser humano, diferentemente de Deus, se é
que ele existe, é mortal ou, para falar como os filósofos, é um ser finito, limitado
no espaço e no tempo. Mas diferentemente dos animais, é o único que tem consciência
de seus limites. Ele sabe que vai morrer e que seus próximos, aqueles a quem
ama, também. Ele não pode, portanto, evitar interrogar-se sobre essa situação
que, a priori, é inquietante, até mesmo absurda e insuportável”.
Nesta linha de raciocínio, Luc Ferry busca recuperar
uma certa tradição filosófica que entende a filosofia como uma espécie de
“educação para a morte”, a fim de que possamos, a partir desta compreensão,
viver melhor em termos práticos e enfrentar nossos medos, inclusive, o medo da
finitude existencial. (Abertura - julho 2017)
O PROBLEMA DA MORTE
Segundo Luc Ferry, o enfrentamento do medo da morte
está diretamente ligado ao prazer de viver, pois como dizia Lucrécio: “É
preciso, antes de tudo, expulsar e destruir esse medo do Aqueronte (o rio dos
infernos) que, penetrando até o fundo de nosso ser, envenena a vida humana,
colore todas as coisas do negror da morte e não deixa subsistir prazer límpido
e puro”.
É curioso observarmos que alguns filósofos na
antiguidade tentaram desviar o homem do problema da morte de uma forma um tanto
sofística. Epicuro, por exemplo, assim se manifestava sobre este tema: “Portanto, o mal que mais nos atemoriza, ou
seja, a morte é nada para nós, a partir do momento que, quando vivemos, a morte
não existe, e quando, ao contrário, existe a morte, nós não existimos mais”.
No mundo contemporâneo, o homem tenta jogar a morte
para debaixo do tapete, evitando refletir sobre ela. Afinal, não estamos mais
na Idade Média, época em que a preocupação central do homem era a salvação de
sua alma e o mundo terreno era considerado um deplorável “vale de lágrimas”, do
qual se esperava escapar por ocasião da morte.
A cultura ocidental do século XXI, de índole
materialista, consumista e hedonista, foge como o diabo foge da cruz do
problema da morte. O que importa é aproveitar o hoje, o agora, o prazer
sensorial do momento. O Homem, segundo alguns filósofos contemporâneos, é um “boneco de carne” que se desagregará
definitivamente no túmulo. Portanto, Carpe
diem!
O homem vive a fugir da morte utilizando para esta
fuga até mesmo recursos linguísticos, pois tenta demonstrar, consciente ou
inconscientemente a si mesmo, que não é ele que morre em primeira pessoa, mas
sim os outros. Neste sentido diz Herculano Pires comentando Heidegger:
“A
análise existencial da morte, feita por Heidegger, mostra-nos que o homem, ser
para a morte, ao dizer “morre-se”, está excluindo a si mesmo, como ser real, da
ameaça da morte. Vemos os outros morrerem e sabemos que vamos morrer. Sabemos
que ninguém pode escapar a ela. Mas encontramos no mundo uma forma de
esquecê-la. E o “se” impessoal, tão cômodo, nos permite jogá-la sempre sobre os
outros. Isso até o dia e a hora em que o “se” dos outros nos pega. Então
embarcamos, revoltados ou não, na velha barcaça de Caronte, e vamos dar com os
costados no outro mundo”.
De fato, existe uma tendência nas sociedades
contemporâneas de mascarar a morte, como se morrer fosse algo inadequado, fora
de contexto, absurdo. Aliás, Freud, um dos demolidores das ilusões metafísicas
e materialista de carteirinha, já dizia sobre a lucidez daquele que se indaga
sobre o problema da morte: “quando
começamos a nos colocar questões sobre o sentido da vida e da morte, estamos
doentes, pois nada disso existe de modo objetivo”.
Apesar deste estado de coisas, indaga Luc Ferry: “Mas sem os mitos, o que nos resta a dizer
e a pensar diante do absurdo do luto? Quando se vai a um enterro, porém, ao pé
do muro e junto do caixão, um constrangimento toma conta dos espíritos. O que
dizer à mãe que perdeu a filha ou ao pai em lágrimas? ”.
Segundo Ferry, as religiões foram destronadas pela
crítica filosófica moderna e pós-moderna. Afirma que vivemos atualmente sem as
crenças metafísicas, no entanto, não conseguimos colocar nada mais confortador
no lugar das antigas crenças e que, apesar da vitória de Freud e outros
demolidores de ilusões, ficamos com um gosto amargo na boca.
Entretanto, a morte continua sendo o problema central
da vida humana, e Luc Ferry afirma que a verdadeira missão da filosofia é
“salvar” o homem da angustia e do medo da morte, o que faz a filosofia confinar
com a religião, que também tem este objetivo de salvação.
No entanto, as religiões tentarão salvar o homem do
medo da morte pela fé em Deus, ou seja, o homem será salvo pela fé em um
“Outro”, já a filosofia tentará salvar o homem do medo da morte pelo uso da
própria razão, sem intervenção de Deus. Neste sentido, argumenta Ferry: “ Em outras palavras, se as religiões se
definem como doutrinas da salvação por um Outro, pela graça de Deus, as grandes
filosofias poderiam ser definidas como doutrinas da salvação por si mesmo, sem
a ajuda de Deus”.
O verdadeiro filósofo, segundo esta perspectiva,
substituirá a fé cega pela lucidez. Segundo nosso pensador: “ O filósofo é antes de tudo aquele que
pensa que, se conhecemos o mundo, compreendendo a nós mesmos e compreendendo os
outros, tanto quanto nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela
lucidez, e não por uma fé cega, vencer os nossos medos. ” (Abertura – agosto
de 2017)
A HUMILDADE DOS RELIGIOSOS E O
ORGULHO DOS FILÓSOFOS
Segundo Luc Ferry, permeando o debate entre fé e
razão, entre filosofia e religião, existe uma outra discussão não menos
importante entre a chamada humildade religiosa e a não menos controversa
vaidade filosófica. Certamente que para a religião a fé é, por natureza, uma
crença que independe de racionalizações, ao contrário da razão que, por
natureza, é questionadora.
Esta característica de questionamento, própria da
razão, faria do filósofo, segundo alguns religiosos, um ser arrogante,
pretensioso e com falsa noção de autonomia, enquanto que o verdadeiro religioso
teria as virtudes contrárias da humildade e da submissão a Deus, sem
questionamentos, em plena obediência aos desígnios divinos, os quais geralmente
não compreende, porém aceita.
Esta questão da humildade dos religiosos versus o
orgulho dos filósofos esteve presente nas reflexões dos cristãos, pais da
igreja, quando comparavam a exigência de obediência absoluta exigida pela
revelação cristã, com a autonomia investigativa postulada pela filosofia grega.
Neste sentido é a reclamação de Santo Agostinho:
“Inchados de orgulho pela alta opinião que
têm de sua ciência, eles não ouvem o Cristo quando diz: aprendei de mim porque
sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas”.
Sendo assim, para Ferry haverá dois caminhos para
acalmar as angústias da existência: o caminho da religião e o da filosofia. O
primeiro nos propõe a fé cega e a confiança no amparo de Deus e o segundo a
lucidez da razão, e a confiança em si mesmo.
Mas, o próprio pensador francês indaga: “Por que não aceitar com humildade e
submeter-se com fé às crenças religiosas? ”. Afinal, a fé também da
segurança. Responde que pare ele é muito difícil conciliar a ideia de um Deus
Pai com as desgraças que se abatem sobre a humanidade e volta a indagar: “Que pai deixaria seus filhos no inferno de
Auschwitz, de Ruanda, do Camboja? O que dizer das milhares de criancinhas
martirizadas durante esses crimes ignóbeis contra a humanidade? ”.
Afirma Ferry que a religião em troca de acalmar nossas
angustias, exige o sacrifício de nossa liberdade de pensamento:
“Porque, de certa forma, ela sempre exige em
troca da serenidade que pretende oferecer que, num momento ou noutro, a razão
seja abandonada para dar lugar a fé, que se ponha termo ao espírito crítico
para que se aceite acreditar. Ela quer que sejamos, diante de Deus, como
crianças, não adultos em que ela não vê, afinal, senão arrogantes
raciocinadores”.
Finalmente, Luc Ferry defende que a filosofia é uma
busca da salvação sem Deus, para aqueles que não conseguem acreditar no dogma. Segundo
afirma:
“Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo,
pelo menos do ponto de vista dos filósofos, já que o dos crentes é, com
certeza, diferente, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se,
em certo sentido, é verdade, de salvar a pele, mas não a qualquer preço. ” (Abertura – setembro 2017)
O ESPIRITISMO FRENTE AO PROBLEMA DA
MORTE
Muitas das características da ideia de filosofia em
Luc Ferry também podem ser encontradas no espiritismo. O espiritismo mantém uma
afinidade com as religiões, pois também tem como um de seus temas fundamentais
o problema da morte. Allan Kardec via no espiritismo um poderoso “auxiliar” das
religiões. De fato, a questão central da filosofia espírita é o problema da
morte. Neste sentido, diz Kardec:
“
Vivemos, pensamos e operamos- eis o que é positivo. E que morremos, não é menos
certo. Mas, deixando a terra, para onde vamos? Que seremos após a morte?
Estaremos melhor ou pior? Existiremos ou não? Ser ou não ser, tal a
alternativa. Para sempre ou para nunca mais; ou tudo ou nada: Viveremos
eternamente, ou tudo se aniquilará de vez? “.
Allan Kardec se debruçou sobre o abismo da morte em
uma pesquisa inédita. Nesta pesquisa ele entrevistou, através do fenômeno
mediúnico, aqueles que atravessaram a barreira do túmulo e que se encontravam
ainda vivos, perfeitamente pensantes e atuantes. Kardec, ousadamente, desafiou
o velho ditado que diz que “nunca ninguém
voltou da morte para dizer como ela é”. Segundo Herculano Pires:
“Quem primeiro cuidou da psicologia da morte e
da educação para a morte, em nosso tempo, foi Allan Kardec. Ele realizou uma
pesquisa psicológica exemplar sobre o fenômeno da morte. Por anos seguidos,
falou a respeito com os espíritos de mortos. E, considerando o sono como o
irmão ou primo da morte, pesquisou também os espíritos de pessoas vivas durante
o sono”.
No entanto, a crítica que Luc Ferry faz às religiões é
absolutamente pertinente, e pretendemos demonstrar aqui, que o espiritismo,
enquanto “filosofia espiritualista”, se insere dentro das caraterísticas da
ideia de filosofia defendida pelo ilustre filósofo francês contemporâneo, porém
com algumas singularidades importantes.
O espiritismo, tal qual a proposta de filosofia de Luc
Ferry, não aborda o problema da morte através da fé cega, como fazem as
religiões, as quais realmente separaram a fé da razão, como duas instâncias
autônomas e apartadas. O fato é que Allan Kardec, já ao seu tempo, havia
percebido que as religiões se mostravam impotentes para combater a
incredulidade crescente, a qual exigia razões para crer e não a mera fé em
postulados dogmáticos. Afirma o fundador do espiritismo a respeito das
religiões:
“O que lhes falta neste século de
positivismo, em que se procura antes de crer, é sem dúvida a sanção de suas
doutrinas por fatos positivos, assim como a concordância das mesmas com os
dados positivos da ciência. Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser
negro, é preciso optar entre a evidência e a fé cega”.
Infelizmente, as religiões complicaram o problema da
morte ao longo da história, pois além de abordarem este tema através da fé
dogmática, as religiões tornaram a morte um acontecimento tenebroso, envolto
nas neblinas do mistério, dos julgamentos irremediáveis e do medo. O homem
passou a ter um verdadeiro pavor deste fato da natureza que é a morte. Neste
sentido diz Herculano Pires:
“As
religiões podiam ter prestado um grande serviço à humanidade se houvessem
colocado o problema da morte de forma natural. Mas, nascidas da magia e
amamentadas pela mitologia, só fizeram complicar as coisas. A mudança simples
de que falou Victor Hugo transformou-se, nas mãos de clérigos e teólogos, numa
passagem dantesca pela “selva selvagia” da Divina Comédia”. (Abertura –
outubro de 2017)
A LUCIDEZ DE KARDEC
Allan Kardec, ao seu tempo, opta pela “lucidez”
(sirvo-me de um termo de Luc Ferry) na abordagem do problema da morte, e esta
“lucidez” passa por duas instâncias: a da racionalidade e da observação de
determinados fatos, denominados espíritas, metapsíquicos ou paranormais, entre
outros termos das modernas ciências psíquicas. Neste sentido, diz Kardec:
“É
nestas circunstâncias que o Espiritismo vem opor um dique à difusão da
incredulidade, não somente pelo raciocínio, não somente pela perspectiva dos
perigos que ela acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visível e
tangíveis a alma e a vida futura”.
Em verdade, a “lucidez” pretendida pelo espiritismo é
de tal ordem que a filosofia espírita pretende abolir de vez o conceito de
maravilhoso e sobrenatural nas chamadas questões da alma, as quais foram
tradicionalmente tratadas pelas religiões sob uma aura de mistério. É ainda
Allan Kardec que nos fala:
“Os
fenômenos espíritas bem como os magnéticos, devem ter passado por prodígios,
antes que suas causas fossem conhecidas. Ora, como os céticos, os espíritos
fortes, isto é, os que tem o privilégio exclusivo da razão e do bom senso, não
creem que uma coisa seja possível desde que não a compreendem. Por isso os
fatos tidos como prodigiosos são objeto de suas zombarias: e como a religião
contém grande número de fatos desse gênero, não creem na religião. Daí a
incredulidade absoluta há apenas um passo. Explicando a maioria desses fatos, o
Espiritismo lhes dá uma razão de ser. Ele, pois, vem em auxílio à religião
demonstrando a possibilidade de certos fatos que, por não mais terem caráter
miraculoso, não são menos extraordinários, e Deus nem é menos grande, nem menos poderoso por não haver derrogado as suas leis”.
No entanto, as religiões não quiseram este “auxílio”
do espiritismo e continuaram a tratar as questões do ser, do homem e do mundo,
sob o ponto de vista da fé, a qual se manteve e se mantém, até nossos dias,
desvinculada da razão e do progresso do conhecimento humano. A ideia do
miraculoso e do sobrenatural não está morta no século XXI, apesar de seu
notório desprestígio nos campos da ciência e da filosofia.
Kardec pretende,
ao contrário das religiões, que o espiritismo acompanhe o progresso dos
conhecimentos humanos, sob pena de ficar para trás:
“Caminhando
de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se
novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer,
ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a
aceitará”.
Há alguns anos atrás, o Dalai Lama afirmou que se a
ciência provasse que a reencarnação não existe, o budismo aceitaria esta
descoberta da ciência. Na época, várias manifestações na imprensa aplaudiram
esta afirmação do grande mestre budista. No entanto, devemos fazer justiça a
Allan Kardec que, em meados do século XIX, fez uma declaração semelhante no que
diz respeito ao espiritismo, o que demonstra que o fundador da filosofia
espírita já possuía uma visão progressista e antidogmática, no que diz respeito
à convicção nos postulados espíritas. (Abertura
– novembro de 2017)
O PROBLEMA DEUS
O espiritismo, diferentemente de Luc Ferry, é uma
filosofia que defende a existência de Deus. O espiritismo postula a existência
de Deus na famosa definição contida em O
Livro dos Espíritos, na resposta à primeira questão, na qual nos fornece uma ideia aproximada, não antropomórfica, do
que seria Deus: “inteligência suprema
causa primária de todas as coisas”.
O espiritismo
chega a falar em “provas” da existência
de Deus e argumenta que o nada não pode ser o fundamento do universo. Segundo
Allan Kardec: “Para crer em Deus é suficiente lançar os olhos às obras da criação. O
universo existe; ele tem, portanto, uma causa. Duvidar da existência de Deus
seria negar que todo efeito tem uma causa, e avançar que o nada pode fazer
alguma coisa”.
Já Luc Ferry não acredita na existência de Deus. Segundo
seu entendimento, toda transcendência se restringe ao que chama de
“transcendência na imanência”, conceito complexo, que não procuraremos
desenvolver aqui, mas que por ora basta sabermos que, para o importante
filósofo francês contemporâneo, não é necessário buscar qualquer fundamento
fora do mundo para explicar o mundo.
Na verdade, Ferry busca construir uma filosofia sem
Deus, pois tem dificuldade em aceitar a existência de um Ser Supremo, ainda
mais da forma como foi tradicionalmente ensinado pelas religiões, especialmente
a religião cristã, que defende a ideia de um “Pai” amoroso e bom, diz ele:
“Pouco
crível a imagem de um Deus que seria como um pai para os filhos. Como
conciliá-la com a insuportável repetição dos massacres e das desgraças que se
abatem sobre a humanidade: que pai deixaria seus filhos no inferno de
Auschwitz, de Ruanda, do Camboja. O que dizer das milhares de criancinhas
martirizadas durante esses crimes ignóbeis contra a humanidade?” (Abertura
– dezembro 2017)
A QUESTÃO DA EXISTÊNCIA DE DEUS
Podemos dividir o questionamento de Luc Ferry e de outros pensadores
ateus a respeito de Deus, em duas questões fundamentais: a primeira é a que
indaga da possibilidade ou não de se fazer prova a respeito da existência de um
Ser Criador, e a segunda é a da compatibilização da existência do mal no mundo
com a ideia de um Deus justo e bom.
São questões altamente difíceis. Neste artigo refletiremos brevemente
sobre a primeira questão.
Em primeiro lugar, entendemos que já passamos da época de pensarmos que
podemos fazer “prova” da existência de Deus, afinal, Deus, caso exista, não é
um objeto de estudo que pode ser colocado em um laboratório para a demonstração
científica.
Tomás de Aquino na Idade Média falava em
“provas” da existência de Deus, argumentação que entendo ser equivocada e
anacrônica nos dias de hoje, pois o termo “prova” tem acepção própria no campo das
ciências modernas.
No entanto, sempre fica a grande e enigmática pergunta feita pelos pensadores
de todos os tempos: por que o ser e não apenas e simplesmente o não ser?
A verdade, é que a razão, com todas as suas virtudes e limitações, nos
leva a uma inferência lógica de que do nada, nada pode surgir.
Como poderia uma casual e aleatória grande
explosão, surgida do nada, desordenada e caótica, como toda explosão, como é o
caso da hipótese científica do big bang, produzir a vida organizada? Como
poderá a desordem explicar a ordem, e a inconsciência dar origem à consciência?
E mais, como explicar que esta vida organizada, no caso deste planeta terra,
tenha passado por um processo evolutivo de transformação dos seres, dos simples
aos complexos, até chegar ao homem com seu cérebro, consciência e inteligência?
É certo que sempre poderemos recorrer a ideia do acaso, que nada
explica.
Albert Einstein, um dos maiores
cientistas de todos os tempos, também se inquietava sobre este tema: “Não sou ateu, e não creio que possa me chamar
panteísta. Estamos na situação de uma criancinha que entra numa imensa
biblioteca, repleta de livros em muitas línguas. A criança sabe que alguém deve
ter escrito aqueles livros, mas não sabe como. Não compreende as línguas em que
foram escritos. Tem uma pálida suspeita de que a disposição dos livros obedece
a uma ordem misteriosa, mas não sabe qual ela é. Essa, ao que me parece, é a atitude até mesmo do mais
inteligente dos seres humanos diante de Deus. Vemos o Universo,
maravilhosamente disposto obedecendo a certas leis, mas temos uma pálida
compreensão delas. Nossa mente limitada capta a força misteriosa que move as
constelações”.
Pensamos que a possibilidade da existência de uma “força misteriosa que move as constelações” e que funciona como
fundamento não antropomórfico, metafísico, causal, estrutural, teleológico, do
ser e da vida, ainda é uma tese filosófica importante, não absurda, que possui
uma lógica, e, por isso, não deveria ser descartada pelos pensadores de nosso
tempo. (Abertura – janeiro /fevereiro
2018)
Esta parte do artigo foi publicada no jornal Abertura de janeiro-fevereiro de 2018.
Como conciliar Deus com o mal no mundo?
A dificuldade em responder esta questão levou muitos ao ateísmo, pois,
efetivamente, é muito difícil conciliarmos a ideia de um Deus Pai, bom, justo e
amoroso, com as tremendas provações que o homem sofre no mundo.
Todos os dias assistimos, nos noticiários da TV, o sofrimento humano:
sofrem crianças, sofrem idosos, sofrem trabalhadores, pessoas honestas, enfim,
todos sofrem, seja pela ação humana ou pelas forças naturais. Quantos morreram
na última catástrofe natural? Quantos morrem nos assaltos cotidianos das
grandes cidades do Brasil e do mundo? Quantas crianças que desde o berço já
trazem doenças terríveis? Quantos são vítimas inocentes das guerras
desencadeadas pelos homens que exercem equivocadamente o poder?
Enfim, a lista de sofrimentos humanos é infinita e é por isso que se
pergunta o filósofo: Como conciliar todo este mal existente no mundo com a fé
em um Deus Pai? Eis a complexa e difícil questão que tem levado muitos à
negação da ideia de Deus, ao ateísmo, ou pelo menos ao agnosticismo.
Em primeiro lugar façamos um raciocínio lógico.
O fato da atuação divina não se encaixar na ideia que o homem tem de
Deus não implica necessariamente na sua inexistência. Aliás, pode ocorrer que o
entendimento humano sobre a divindade seja equivocado, sendo esta a razão pela
qual não conseguimos entender os fatos acima mencionados, que se referem ao
sofrimento humano.
De fato, observamos que na história da humanidade o homem teve
diferentes ideias a respeito da divindade. O homem já adorou as pedras, os
animais, a natureza, enfim desde os tempos primitivos teve diferentes
concepções do divino.
Em nossa cultura ocidental, por exemplo, prevalece a visão
judaico-cristã. A visão judaica de Deus transferiu-se, com algumas transformações,
para o cristianismo, e tem sido aceita durante milênios pelo mundo ocidental.
O deus bíblico é um deus que pune e premia. Que recebe oferendas e
sacrifícios. Que protege e salva alguns e condena outros. Enfim, é um deus
arbitrário, que usa de seu poder a bel prazer, cabendo a nós, homens e mulheres,
criaturas maculadas desde a origem pelo pecado original, apenas tentar aplacar
a ira divina e, quem sabe, conseguir alguma proteção, algum favor, como súditos
humilhados perante o todo poderoso rei.
Este Deus está morto para o homem esclarecido do século XXI, pois não
condiz com as exigências da razão madura deste homem contemporâneo. Como
imaginar um Deus exclusivista, de um único povo, que protege e condena de forma
pessoal?
Para o espiritismo Deus se comunica com o mundo através da lei natural.
Na questão 633 do Livro dos Espíritos, os colaboradores extrafísicos de Allan
Kardec afirmam: “A lei natural traça para
o homem o limite das suas necessidades; quando ele o ultrapassa, é punido pelo
sofrimento. Se o homem escutasse, em todas as coisas, essa voz que diz: Chega!
Evitaria a maior parte dos males de que acusa a Natureza”.
Segundo Jaci Régis, importante pensador espírita brasileiro: “A Lei natural exprime a sabedoria divina,
com mecanismos extremamente competentes, estabelecendo o ritmo e a sucessão dos
fatores com o fim de equacionar, no universo energético, tanto quanto no
universo inteligente, o princípio do equilíbrio. Atuando através da lei de
causa e efeito ou ação e reação, ferramenta de busca do equilíbrio, pela
reciprocidade dos fatores. A ação da Lei está presente tanto no princípio e
manutenção dos fatores físicos, como determina, orienta e conduz o
desenvolvimento do ser inteligente”.
Mas, ainda fica a pergunta: como conciliar esta ideia de um Deus que se
exprime através da Lei Natural com o problema do mal no mundo, do sofrimento? Afinal,
não nos ensinaram que Deus é amor? Como aceitar e explicar o silêncio de Deus
em resposta às preces dos que sofrem e pedem ajuda?
Neste tema, precisamos construir um novo entendimento sobre a divindade,
que possa ir além da concepção judaico-cristã. No espiritismo, como vimos,
temos elementos para esta nova visão de Deus, a partir da ideia de
“Inteligência suprema e causa primária”, bem como através do conceito de lei
natural como instrumento de atuação do divino.
Entendemos que Jaci Régis teve
uma excelente intuição sobre este tema, diz ele: “A decepção provém do que se fala e diz sobre o amor de Deus. A
natureza não é lírica, mas objetiva, eficiente. Todavia não é perfeita. Esse
paradoxo precisa ser entendido: a imperfeição dentro da perfeição. Ou seja, a
perfeição absoluta atribuída à divindade comporta a imperfeição dinâmica dos
processos evolutivos. Um novo pensar sobre Deus nos conduz à compreensão de que
a dinâmica da vida, em qualquer dos setores em que se manifesta, prima pela
criação de ambientes de oportunidade, seleção e superação. Podemos questionar
porque as coisas são assim. Todavia elas são assim. Todas as afirmativas das
igrejas referem-se ao amor de Deus ao indivíduo. Sua misericórdia e seu extremo
cuidado com a pessoa. De fato, o universo gira em torno do amor, no sentido de
prodigalizar meios e formas de oferecer ao Espírito humano o acesso ao seu
equilíbrio interno e nas relações com o outro, isto é, seja feliz. O novo
pensar sobre Deus pensa que o objetivo da vida é a felicidade. A inteligência
divina proporciona meios para isso, no tempo, através da lei da evolução. A
singularidade individual se envolve no processo para adquirir a sua própria
identidade como ser único, imortal, progressivo, atemporal”. (Abertura – março de 2018)
TEORIA, ÉTICA E SALVAÇÃO
Luc Ferry defende o resgate de uma certa forma de ver a filosofia.
Segundo ele, toda grande filosofia, todo grande sistema filosófico, apresenta
três aspectos fundamentais: a teoria, a ética, e a salvação.
A teoria, segundo ele, seria aquilo que descreve o campo de jogo. Esta
descrição seria feita através das ciências que nos auxiliam a conhecer o mundo
como ele é.
A ética, por sua vez, diz
respeito às regras do jogo que devemos jogar com nossos semelhantes, que também
vivem neste mundo.
E, finalmente, afirma que toda
grande filosofia é uma espécie de soteriologia, ou seja, uma doutrina da
salvação, de sabedoria pratica que oferece um sentido, mesmo que de caráter
materialista e ateu, e que nos auxilia a enfrentar a finitude terrena, a morte,
sempre através da lucidez da razão e não da fé e, portanto, nos ensina a viver
bem.
O espiritismo de Allan Kardec também possui uma teoria que busca
conhecer racionalmente o mundo. A diferença, é que a teoria espírita abrange em
sua explicação do mundo os fatos que dizem respeito a mediunidade e a paranormalidade.
Tais fatos encontram-se na natureza desde a origem do homem sobre a terra e,
normalmente, têm sido negligentemente desprezados pela ciência e filosofia. O
espiritismo não comete este erro.
O espiritismo possui uma ética. A ética espírita decorre de uma visão
prática fundamentada nas condições de felicidade e infelicidade dos
desencarnados, as quais podem ser rigorosamente observadas nas comunicações mediúnicas.
A ética espírita ensina também que nosso modo de viver produz efeitos em nossa
vida, em nossa subjetividade, em nossa condição feliz ou infeliz, seja aqui, no
mundo terrestre enquanto encarnados, ou no mundo espiritual, enquanto
desencarnados.
Podemos dizer que o espiritismo
também se enquadra como uma doutrina de salvação, sob a perspectiva apontada
por Luc Ferry, apesar do espiritismo não dispensar a ideia de Deus, de um
fundamento causal, estrutural, teleológico, não antropomórfico para a
existência do ser, do universo e da vida.
De fato, o espiritismo enfrenta o
problema da finitude terrena e nos oferece um sentido para ela, de forma a que
possamos viver sem medo da morte. Não se trata aqui da ideia de salvação
tradicionalmente defendida pelas religiões, mas sim da possibilidade de
alcançar o que os antigos chamavam de “sabedoria” já neste mundo.
Por outro lado, e aí assim
tangenciando, porém não se confundindo com as religiões, a filosofia espírita
irá postular não apenas a esperança, mas, sobretudo, a convicção na vida após a
morte. Esta convicção, proporcionada pelo espiritismo, está fundamentada no
mais puro rigor do raciocínio livre e também na observação da ampla gama de
fenômenos naturais proporcionados pela mediunidade.
Na verdade, o espiritismo vai
além da fé e procura, dentro de um espírito contemporâneo de pesquisa e
racionalidade, demonstrar suas teses. O espiritismo opta pela lucidez da razão
e não pela fé cega.
Podemos concluir que a filosofia espírita nos
auxilia a enfrentar o temor da morte e nos ajuda a viver melhor, na medida em
que valoriza a vida terrena como
oportunidade imprescindível de aperfeiçoamento do espírito. Além disso, nos
convida a desenvolver um sentido de espiritualidade, através do qual o homem
reverencia a vida e o mundo como um bem, como um valor, que devem ser amados e preservados. E, finalmente, o
espiritismo nos oferece novas perspectivas para a pesquisa do problema da
morte, coisa que a filosofia de Luc Ferry não faz. ( Abertura – abril 2018)
Ricardo de Morais Nunes é Bacharel de Direito, formado em Filosofia e reside em Santos, SP
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