sexta-feira, 18 de maio de 2018

Jaci Regis - O Homem e o Humanista - por Eugenio Lara


Jaci Regis
O Homem e o Humanista
Adaptado do texto do autor publicado no site Pense



Eugenio Lara

A primeira vez que tomei contato com o amigo e companheiro Jaci Regis foi no início de 1980, aos 17 anos. Acabara de voltar a São Vicente, vindo de São José do Rio Preto-SP, para cursar arquitetura na UniSantos. Faziam quase dois anos que eu havia me tornado espírita.


Foto do lançamento do Livro - Novo Pensar 

Vim de Rio Preto cheio de ideias, de projetos. Retornei a minha querida cidade natal com o sonho de criar um grupo semelhante ao Instituto de Cultura Espírita do Brasil, fundado pelo grande escritor espírita Deolindo Amorim; de escrever, de divulgar a cultura espírita, profunda, abrangente, transformadora, como havia aprendido com o mestre Herculano Pires. Era um sonho muito distante, remoto, quase impossível, desses que a gente nunca imagina que possa efetivamente realizar.

Inscrevi-me no Clube do Livro Espírita de São Vicente, vinculado à União Intermunicipal Espírita de São Vicente e dirigido pela Dicesp, editora espírita fundada pelo Jaci e pelo José Rodrigues.
O segundo livro que recebi foi Amor, Casamento & Família, a obra mais conhecida do Jaci. Olhei e estranhei ao ver que o livro não era psicografado. Quando comecei a ler, logo percebi uma linguagem semelhante a que via nos livros do Herculano Pires e do Deolindo Amorim, com um sabor maior de contemporaneidade, uma linguagem atual e um estilo fluente, cativante. Fiquei impressionado com o conteúdo do livro e curioso para conhecer o autor.

O contato pessoal se deu no final daquele ano, em um encontro de jovens espíritas promovido pela Comunidade Assistencial Espírita Lar Veneranda. Foram momentos marcantes em um domingo ensolarado. Neste dia assisti a uma palestra sua e o conheci pessoalmente. Senti uma emoção muito grande. Nunca havia conhecido pessoalmente o autor de um livro, ainda mais um livro espírita de tão profundo conteúdo e arrojados pensamentos. Após o almoço, ele estava sentado numa cadeira observando a movimentação do ambiente. Fui até ele, me apresentei e falei o quanto eu havia gostado de seu livro. Agradeceu os elogios ao seu trabalho e disse-me que estava para lançar um novo livro, Comportamento Espírita, no início de 1981. Outra obra sua que li com avidez, assim como todos os seus livros posteriores e seu primeiro livro, em parceria com Marlene Nobre e Nancy Pullmann, A Mulher na Dimensão Espírita.

Nesse meio tempo tive a oportunidade de conhecer o periódico santista Espiritismo & Unificação, editado pela Dicesp. Foi total a identificação. Era exatamente o que eu pensava. Ele era editado pelo Jaci e o redator, José Rodrigues, uma dupla formidável. Vi que não estava sozinho. Centenas de companheiros de vários outros lugares do Brasil e fora dele comungavam dos mesmos ideais, da mesma visão e concepção de um Espiritismo cultural, dinâmico e orientado pelo genuíno pensamento de Allan Kardec.

Desde então, até o Jaci desencarnar hoje, de manhã, nesta segunda-feira, 13 de dezembro de 2010, nunca perdemos contato. Não pude me despedir pessoalmente pois ele estava na UTI, muito bem amparado pelos familiares. Infelizmente não resistiu e veio a falecer. Foi um homem que deixou sua marca, profunda, no Espiritismo e nos espíritas predispostos a assumir uma mentalidade mais progressista, aberta ao novo, sem perder as raízes do pensamento kardequiano.

Tive o grande prazer de trabalhar por quase 20 anos ao lado dele. Com os conflitos doutrinários na USE, o Espiritismo & Unificação, que passei a diagramar, foi sucedido pelo Abertura (1987), agora editado pelo Lar Veneranda, através da Livraria Cultural Espírita Editora, Licespe. Nesta época eu era o presidente do Conselho Regional Espírita e acompanhei de perto todo o conflito ocorrido em Santos e em vários lugares do País.

Lembro que fiz o projeto gráfico da noite para o dia, varando a noite, porque o Jaci continuava tocando o jornal, agora com outro nome, do mesmo jeito de antes, com o mesmo dinamismo, inclusive com a mesma diagramação. Ele editava e também diagramava, função esta que eu já estava desempenhando. E jornal não para. Terminada uma edição, outra já entra em andamento. Com o afastamento do José Rodrigues, por motivos pessoais e doutrinários, fui assumindo a redação, diagramação e fechamento do jornal.

O grau de confiança e de respeito, o clima democrático que foi se desenvolvendo entre nós era tão grande que ele me enviava o jornal em estado bruto, muitas vezes sem a manchete, as chamadas, somente com o editorial e seu texto da página três. Mas sempre o respeitei como pessoa e como editor. Procurava sempre consultá-lo e o avisava de alguma mudança editorial que eu julgasse necessária.

Eventualmente nos encontrávamos no Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, evento criado por ele, no Instituto Cultural Kardecista de Santos, onde era fundador e presidente, entidade que eu ajudei a fundar em seu início. O Jaci queria que fosse somente Instituto Kardecista. Debatemos o assunto e propus o nome acrescido da palavra cultura. E ficou cultural por ser mais abrangente e não se restringir somente à cultura kardecista. E, de Santos, por aventar a possibilidade de que pudessem surgir institutos em várias cidades outras do país e do exterior. Ele ouviu os argumentos e decidiu pelo nome atual.

A primeira atividade do ICKS tive a honra de organizar: uma conferência sobre Ecologia, Meio Ambiente e Espiritismo, com o companheiro colombiano radicado no Brasil, Orlando Villarraga. Como o ICKS não estava ainda com suas instalações prontas, promovemos o evento no Centro Espírita Allan Kardec, de Santos, entidade da qual participo até hoje, cujo membro-fundador mais dinâmico e atuante fora o Jaci, desde os tempos da Mocidade Espírita Estudantes da Verdade, do qual foi presidente, assim como do centro.

Liberdade, respeito e confiança eram parte integrante de nosso trabalho doutrinário. Fui visitá-lo várias vezes e sempre fomos recebidos, eu e minha falecida esposa, com muito carinho e atenção por ele e sua inseparável companheira, Palmyra Regis. Era mais uma oportunidade de ficarmos trocando ideias sobre os mais variados assuntos, mas sempre orientados pela paixão em relação à obra de Allan Kardec e à personalidade que ele foi.
A partir de 2001 passei a dividir essas e outras tarefas doutrinárias com o site PENSE - Pensamento Social Espírita, fundado e editado em parceria com o companheiro José Rodrigues, recentemente desencarnado, em fevereiro deste ano. Até ao ponto em que decidi me afastar do Abertura para me concentrar no site e outros trabalhos doutrinários.

Muitos companheiros de minha geração me perguntavam: “como você consegue trabalhar com o Jaci?” Eu respondia tranquilamente, sem me incomodar: “nosso trabalho é realizado como se fôssemos profissionais, como se fosse um trabalho profissional, apesar de ser voluntário e totalmente doutrinário. Procuramos ser eficientes no que fazemos, apenas isso”.

O Jaci sempre teve fama de ser centralizador, exigente ao extremo, muito duro e seco, enérgico, grosseiro. Mas ao mesmo tempo era bem-humorado, jocoso, carismático e um exemplo de dinamismo, de trabalho, de perseverança, como se fosse uma força da natureza. De fato, ele era tudo isso. E mais, não tolerava corpo mole, ineficiência, incompetência. Não deixava barato, não poupava palavras, era duro mesmo, mas sem ser mal-educado. Ele não falava palavrão. Nunca ouvi dele alguma palavra de baixo calão.

Adorava vê-lo falar. Sempre fui um jacista de quatro costados, mas sem perder de vista suas contradições, sem deixar de contestá-lo quando julgava necessário. Suas palestras sempre traziam pontos polêmicos, criticidade, bom humor. Um debatedor implacável. Era muito difícil debater com ele.

O jornal Espiritismo & Unificação foi um dos poucos que manteve suas portas abertas para determinados movimentos de contestação como o MUE - Movimento Universitário Espírita, caracterizado por propostas que visavam uma correlação do Espiritismo com o Marxismo, com um discurso de esquerda, fundamentado em autores como Manuel S. Porteiro, Humberto Mariotti e Herculano Pires. Mariotti chamava esse grupo, carinhosamente, de esquerda kardeciana. Foi o periódico espírita que mais promoveu o trabalho realizado pela Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA), bem antes da penetração mais acentuada de seus quadros e princípios no Brasil, a partir da gestão do escritor espírita venezuelano Jon Aizpúrua, nos anos 90.

Não é exagero afirmar que Jaci Regis foi um dos maiores pensadores espíritas de todos os tempos. Sua produção doutrinária nos livros e em jornal, nos ensaios e conferências, demonstram esse fato. Rompeu com a ortodoxia espírita, com o sectarismo da pureza doutrinária e propôs uma releitura da obra de Allan Kardec, situando-a na contemporaneidade, apontando rumos para o futuro do Espiritismo. Depois dele, o Espiritismo nunca mais seria o mesmo. Seu discurso radical e apaixonado pelo pensamento kardequiano representou um divisor de águas, como se estivéssemos numa encruzilhada.

A proposta de discussão de um novo modelo epistemológico para o Espiritismo, um de seus projetos derradeiros, enviada à Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA), é fruto também de sua ousadia. A CEPA se recusou a discutir o projeto, oficialmente. Mas resultou numa carta de princípios da CEPA-Brasil, mostrando seu claro posicionamento em relação ao caráter e a identidade do Espiritismo, a partir do projeto enviado por ele, dentre outras contribuições.

Para ele o Espiritismo é a ciência da alma, uma ciência humana. O que reafirma ainda mais Jaci Regis como um humanista, não somente no sentido da ilustração, da cultura, mas em sua dimensão sensível, subjetiva, empreendedora, humana. A beleza e eficiência da Comunidade Assistencial Espírita Lar Veneranda, hoje um exemplo de promoção social e educativa, por mais de 30 anos foi por ele dirigida. Toda a obra assistencial e educativa do Lar Veneranda tem a marca de seu espírito empreendedor.

Eugenio Lara
13 de dezembro de 2010.
Publicado no jornal Abertura de Jan/ fev 2013, logo após a desencarnação de Jaci Régis

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