Jaci
Regis
O
Homem e o Humanista
Adaptado
do texto do autor publicado no site Pense
Eugenio
Lara
A
primeira vez que tomei contato com o amigo e companheiro Jaci Regis foi no
início de 1980, aos 17 anos. Acabara de voltar a São Vicente, vindo de São José
do Rio Preto-SP, para cursar arquitetura na UniSantos. Faziam quase dois anos
que eu havia me tornado espírita.
Foto do lançamento do Livro - Novo Pensar
Vim
de Rio Preto cheio de ideias, de projetos. Retornei a minha querida cidade
natal com o sonho de criar um grupo semelhante ao Instituto de Cultura Espírita
do Brasil, fundado pelo grande escritor espírita Deolindo Amorim; de escrever,
de divulgar a cultura espírita, profunda, abrangente, transformadora, como
havia aprendido com o mestre Herculano Pires. Era um sonho muito distante,
remoto, quase impossível, desses que a gente nunca imagina que possa
efetivamente realizar.
Inscrevi-me
no Clube do Livro Espírita de São Vicente, vinculado à União Intermunicipal
Espírita de São Vicente e dirigido pela Dicesp, editora espírita fundada pelo
Jaci e pelo José Rodrigues.
O
segundo livro que recebi foi Amor,
Casamento & Família, a obra mais conhecida do Jaci. Olhei e estranhei
ao ver que o livro não era psicografado. Quando comecei a ler, logo percebi uma
linguagem semelhante a que via nos livros do Herculano Pires e do Deolindo
Amorim, com um sabor maior de contemporaneidade, uma linguagem atual e um
estilo fluente, cativante. Fiquei impressionado com o conteúdo do livro e
curioso para conhecer o autor.
O
contato pessoal se deu no final daquele ano, em um encontro de jovens espíritas
promovido pela Comunidade Assistencial Espírita Lar Veneranda. Foram momentos
marcantes em um domingo ensolarado. Neste dia assisti a uma palestra sua e o
conheci pessoalmente. Senti uma emoção muito grande. Nunca havia conhecido
pessoalmente o autor de um livro, ainda mais um livro espírita de tão profundo
conteúdo e arrojados pensamentos. Após o almoço, ele estava sentado numa
cadeira observando a movimentação do ambiente. Fui até ele, me apresentei e
falei o quanto eu havia gostado de seu livro. Agradeceu os elogios ao seu
trabalho e disse-me que estava para lançar um novo livro, Comportamento Espírita,
no início de 1981. Outra obra sua que li com avidez, assim como todos os seus
livros posteriores e seu primeiro livro, em parceria com Marlene Nobre e Nancy
Pullmann, A Mulher na Dimensão Espírita.
Nesse
meio tempo tive a oportunidade de conhecer o periódico santista Espiritismo & Unificação, editado
pela Dicesp. Foi total a identificação. Era exatamente o que eu pensava. Ele
era editado pelo Jaci e o redator, José Rodrigues, uma dupla formidável. Vi que
não estava sozinho. Centenas de companheiros de vários outros lugares do Brasil
e fora dele comungavam dos mesmos ideais, da mesma visão e concepção de um
Espiritismo cultural, dinâmico e orientado pelo genuíno pensamento de Allan
Kardec.
Desde
então, até o Jaci desencarnar hoje, de manhã, nesta segunda-feira, 13 de
dezembro de 2010, nunca perdemos contato. Não pude me despedir pessoalmente
pois ele estava na UTI, muito bem amparado pelos familiares. Infelizmente não
resistiu e veio a falecer. Foi um homem que deixou sua marca, profunda, no
Espiritismo e nos espíritas predispostos a assumir uma mentalidade mais
progressista, aberta ao novo, sem perder as raízes do pensamento kardequiano.
Tive
o grande prazer de trabalhar por quase 20 anos ao lado dele. Com os conflitos
doutrinários na USE, o Espiritismo &
Unificação, que passei a diagramar, foi sucedido pelo Abertura (1987), agora editado pelo Lar Veneranda, através da
Livraria Cultural Espírita Editora, Licespe. Nesta época eu era o presidente do
Conselho Regional Espírita e acompanhei de perto todo o conflito ocorrido em
Santos e em vários lugares do País.
Lembro
que fiz o projeto gráfico da noite para o dia, varando a noite, porque o Jaci
continuava tocando o jornal, agora com outro nome, do mesmo jeito de antes, com
o mesmo dinamismo, inclusive com a mesma diagramação. Ele editava e também
diagramava, função esta que eu já estava desempenhando. E jornal não para.
Terminada uma edição, outra já entra em andamento. Com o afastamento do José
Rodrigues, por motivos pessoais e doutrinários, fui assumindo a redação,
diagramação e fechamento do jornal.
O
grau de confiança e de respeito, o clima democrático que foi se desenvolvendo entre
nós era tão grande que ele me enviava o jornal em estado bruto, muitas vezes
sem a manchete, as chamadas, somente com o editorial e seu texto da página
três. Mas sempre o respeitei como pessoa e como editor. Procurava sempre
consultá-lo e o avisava de alguma mudança editorial que eu julgasse necessária.
Eventualmente
nos encontrávamos no Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, evento criado
por ele, no Instituto Cultural Kardecista de Santos, onde era fundador e
presidente, entidade que eu ajudei a fundar em seu início. O Jaci queria que
fosse somente Instituto Kardecista. Debatemos o assunto e propus o nome
acrescido da palavra cultura. E ficou cultural por ser mais abrangente e não se
restringir somente à cultura kardecista. E, de Santos, por aventar a
possibilidade de que pudessem surgir institutos em várias cidades outras do
país e do exterior. Ele ouviu os argumentos e decidiu pelo nome atual.
A
primeira atividade do ICKS tive a honra de organizar: uma conferência sobre
Ecologia, Meio Ambiente e Espiritismo, com o companheiro colombiano radicado no
Brasil, Orlando Villarraga. Como o ICKS não estava ainda com suas instalações
prontas, promovemos o evento no Centro Espírita Allan Kardec, de Santos,
entidade da qual participo até hoje, cujo membro-fundador mais dinâmico e
atuante fora o Jaci, desde os tempos da Mocidade Espírita Estudantes da
Verdade, do qual foi presidente, assim como do centro.
Liberdade,
respeito e confiança eram parte integrante de nosso trabalho doutrinário. Fui
visitá-lo várias vezes e sempre fomos recebidos, eu e minha falecida esposa,
com muito carinho e atenção por ele e sua inseparável companheira, Palmyra
Regis. Era mais uma oportunidade de ficarmos trocando ideias sobre os mais
variados assuntos, mas sempre orientados pela paixão em relação à obra de Allan
Kardec e à personalidade que ele foi.
A
partir de 2001 passei a dividir essas e outras tarefas doutrinárias com o site
PENSE - Pensamento Social Espírita, fundado e editado em parceria com o
companheiro José Rodrigues, recentemente desencarnado, em fevereiro deste ano.
Até ao ponto em que decidi me afastar do Abertura
para me concentrar no site e outros trabalhos doutrinários.
Muitos
companheiros de minha geração me perguntavam: “como você consegue trabalhar com
o Jaci?” Eu respondia tranquilamente, sem me incomodar: “nosso trabalho é
realizado como se fôssemos profissionais, como se fosse um trabalho
profissional, apesar de ser voluntário e totalmente doutrinário. Procuramos ser
eficientes no que fazemos, apenas isso”.
O
Jaci sempre teve fama de ser centralizador, exigente ao extremo, muito duro e
seco, enérgico, grosseiro. Mas ao mesmo tempo era bem-humorado, jocoso,
carismático e um exemplo de dinamismo, de trabalho, de perseverança, como se
fosse uma força da natureza. De fato, ele era tudo isso. E mais, não tolerava
corpo mole, ineficiência, incompetência. Não deixava barato, não poupava
palavras, era duro mesmo, mas sem ser mal-educado. Ele não falava palavrão.
Nunca ouvi dele alguma palavra de baixo calão.
Adorava
vê-lo falar. Sempre fui um jacista de quatro costados, mas sem perder de vista
suas contradições, sem deixar de contestá-lo quando julgava necessário. Suas
palestras sempre traziam pontos polêmicos, criticidade, bom humor. Um debatedor
implacável. Era muito difícil debater com ele.
O
jornal Espiritismo & Unificação
foi um dos poucos que manteve suas portas abertas para determinados movimentos
de contestação como o MUE - Movimento Universitário Espírita, caracterizado por
propostas que visavam uma correlação do Espiritismo com o Marxismo, com um
discurso de esquerda, fundamentado em autores como Manuel S. Porteiro, Humberto
Mariotti e Herculano Pires. Mariotti chamava esse grupo, carinhosamente, de
esquerda kardeciana. Foi o periódico espírita que mais promoveu o trabalho
realizado pela Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA), bem antes da
penetração mais acentuada de seus quadros e princípios no Brasil, a partir da
gestão do escritor espírita venezuelano Jon Aizpúrua, nos anos 90.
Não
é exagero afirmar que Jaci Regis foi um dos maiores pensadores espíritas de
todos os tempos. Sua produção doutrinária nos livros e em jornal, nos ensaios e
conferências, demonstram esse fato. Rompeu com a ortodoxia espírita, com o
sectarismo da pureza doutrinária e propôs uma releitura da obra de Allan
Kardec, situando-a na contemporaneidade, apontando rumos para o futuro do
Espiritismo. Depois dele, o Espiritismo nunca mais seria o mesmo. Seu discurso
radical e apaixonado pelo pensamento kardequiano representou um divisor de
águas, como se estivéssemos numa encruzilhada.
A
proposta de discussão de um novo modelo epistemológico para o Espiritismo, um
de seus projetos derradeiros, enviada à Confederação Espírita Pan-Americana
(CEPA), é fruto também de sua ousadia. A CEPA se recusou a discutir o projeto,
oficialmente. Mas resultou numa carta de princípios da CEPA-Brasil, mostrando
seu claro posicionamento em relação ao caráter e a identidade do Espiritismo, a
partir do projeto enviado por ele, dentre outras contribuições.
Para
ele o Espiritismo é a ciência da alma, uma ciência humana. O que reafirma ainda
mais Jaci Regis como um humanista, não somente no sentido da ilustração, da
cultura, mas em sua dimensão sensível, subjetiva, empreendedora, humana. A
beleza e eficiência da Comunidade Assistencial Espírita Lar Veneranda, hoje um
exemplo de promoção social e educativa, por mais de 30 anos foi por ele
dirigida. Toda a obra assistencial e educativa do Lar Veneranda tem a marca de
seu espírito empreendedor.
Eugenio Lara
13
de dezembro de 2010.
Publicado no jornal Abertura de Jan/ fev 2013, logo após a desencarnação de Jaci Régis
Nenhum comentário:
Postar um comentário