DA ESPANHA ÀS AMÉRICAS: A TRAJETÓRIA DA TRADIÇÃO
ESPÍRITA LIVRE-PENSADORA
Herivelto
Carvalho
Por
volta de 1870, Don Justo de Espada, um espanhol oriundo de Málaga, veio tentar
a sorte na Argentina, trabalhando em empreendimentos comerciais, na capital
Buenos Aires. Trouxe consigo uma carta de recomendação que comprovava sua vasta
experiência no ramo, porém, sua maior contribuição ao país que o acolhera, não
foi no campo profissional, mas sim no das ideias espiritualistas, pois foi o primeiro
divulgador de um movimento que, no dizer de Cosme Mariño, preocupava os
intelectuais mais avançados do Velho Mundo: o Espiritismo. Outro espanhol, Angel
Aguarod, antigo integrante do Centro
Barcelonés de Estudios Psicológicos, se tornou no início do séc. XX, um dos
principais divulgadores do Espiritismo na América do Sul. Em Cuba, imigrantes
catalães deram início aos primeiros agrupamentos espíritas do país.
Estes
exemplos ilustram como a vinda de imigrantes espanhóis foi fundamental para o
desenvolvimento do Espiritismo em vários países da América Latina. Além de
atuarem como propagandistas da nova doutrina, trouxeram consigo algumas
características que eram peculiares do movimento espírita espanhol, dentre
elas, uma forte tendência de associação doutrinária com os ideais de
livre-pensamento, secularismo e atuação social.
Esse
movimento desenvolveu grande unidade e atuação na sociedade espanhola, cuja
proposta filosófica se apresentava como a superação das religiões positivas.
Esta forma moderna de espiritualismo rechaçava os elementos de dogmatismo
existente nas religiões do passado e pretendia desenvolver uma nova
espiritualidade racional, capaz de se relacionar com a filosofia e a ciência.
Pelas particularidades que o mesmo desenvolveu, formou uma escola de pensamento
que tem como atributo principal a interpretação do Espiritismo como um sistema
de ideias aberto, progressivo, não-dogmático e relacionado com o
livre-pensamento, constituindo, portanto, no sentido filosófico, uma tradição.
Podemos
afirmar que o surgimento da tradição espírita livre-pensadora ocorreu, no final
do séc. XIX, quando as obras de Allan Kardec se popularizaram na Espanha. Seus
expoentes iniciais foram Alverico Perón, Fernandez Colavida, Torres-Solanot e
Amália Domingo Soler. Esta tradição adquire características próprias não porque
fez um rompimento com o pensamento kardecista, mas sim pelo método de desenvolvimento
adotado e pelo modo de atuação no seu contexto social, que se distinguiu do
modo como os espíritas franceses praticavam e divulgavam o Espiritismo.
Profundamente
organizado e ativo, o movimento espírita espanhol se internacionalizou,
influenciando a formação de movimentos espíritas nos países americanos. A
Espanha, portanto, se tornou para estes, a principal fornecedora de conteúdo
doutrinário, através de periódicos e livros que atravessavam o Atlântico,
tornando alguns autores espanhóis muito populares no Novo Mundo. Essa situação
fez com que, no final do séc. XIX, a figura da espanhola Amália Domingo Soler
se tornasse uma das maiores divulgadoras internacionais do Espiritismo, tendo
seus escritos reproduzidos em publicações por toda a América Latina.
Outro
exemplo de intercâmbio cultural entre os movimentos espíritas dos dois
continentes pode ser notado, durante a realização do Primeiro Congresso
Internacional Espírita, em Barcelona, no ano de1888, em que as duas maiores
delegações, com exceção da própria Espanha, eram as de Cuba e México, bem como,
um dos secretários do evento foi o destacado líder espírita cubano Eulogio
Prieto.
Apesar
de as ideias de laicidade, livre-pensamento e constante atualização serem
praticadas por espíritas latino-americanos e espanhóis, desde as últimas
décadas do séc. XIX, com o passar dos anos, no âmbito do movimento espírita
pan-americano, o conhecimento acerca desse fato, ficou perdido, a ponto de muitos
integrantes desse movimento acreditarem que tais ideais se consolidaram após a
fundação da Confederação Espírita Pan-americana em 1946.
Após
o resgate e disponibilização virtual de obras clássicas de autores que atuaram
como protagonistas no desenvolvimento do Espiritismo pan-americano, realizada
com muito zelo pela equipe do projeto PENSE, foi possível uma leitura mais
atenta deste material, o que permitiu identificar um grande número de citações
e referências a autores espanhóis que se consagraram nas primeiras décadas do
movimento espírita daquele país, cujo trabalho apresentava uma ascendência
sobre o pensamento dos espíritas latino-americanos. Naum Kreiman, por exemplo, ao
falar sobre seu conceito de ciência espírita, cita, diversas vezes, o
pensamento de Manuel Sanz Benito, espanhol que, em 1890, publicou importante
obra sobre a epistemologia espírita.
Uma
análise atenta desse fato confirma que o Espiritismo divulgado e vivido pela
CEPA é o desenvolvimento das ideias da tradição espírita livre-pensadora,
elaborado durante um intercâmbio cultural, onde o conhecimento espírita
produzido nos dois continentes possuía mútua influência. Trata-se de uma escola
de pensamento espírita perpetuada e ampliada por pensadores latino-americanos
como Mariño, Porteiro, Mariotti, Fernández, Kreiman, Grossvater, Postiglioni,
Aizpúrua, dentre outros.
Esse
intercâmbio foi crescente e progressivo até os anos 1930, quando a Guerra Civil
Espanhola e a perseguição imposta pela ditadura do General Franco destruiu o
forte movimento espírita espanhol. A partir desse momento, os espíritas
americanos perceberam que estava sob sua responsabilidade, a tarefa de manter
vivo o projeto de desenvolvimento do Espiritismo, e que para efetivar esta atividade,
seria preciso instituir um movimento integrador para o continente. O resultado
dessa percepção culminou com a iniciativa de criação da CEPA.
Os
ideais de defesa do caráter progressivo, laico e livre-pensador do Espiritismo bem
como o desenvolvimento da Filosofia Espírita e sua atuação em diversos setores
da sociedade como a política, a educação, a justiça, etc, tão defendidos na
atualidade pelos espíritas cepeanos, podem ser facilmente encontrados na aurora
da tradição espírita livre-pensadora. Em
1890, Sanz Benito, alegava que “nunca o Espiritismo poderá constituir escola,
doutrina ou sistema, com afirmações definitivas, pois que sempre deixará amplo
campo às investigações e sempre irá ampliando seu curso científico”, dando
destaque ao seu caráter progressivo. O próprio Congresso de 1888 se pautou pela
manutenção deste mesmo caráter ao buscar efetivar o projeto de Kardec sobre os
"congressos orgânicos", que seriam responsáveis pela revisão geral e a
adesão de novos princípios. O mesmo evento salientou a característica de
laicidade, ao afirmar, no texto de sua declaração final, que era preciso um
“esforço constante para difundir o laicismo por todas as esferas da vida”.
Alguns anos antes, Colavida, em carta a Albert de Rochas, afirmava essa mesma característica
ao declarar que “O espiritismo não é nem cristão, nem muçulmano, nem judeu,
etc.”.
Ao
longo de sua existência, a tradição espírita
livre-pensadora, através das obras
de autores clássicos e modernos, contribuiu para o desenvolvimento dos
fundamentos e da natureza do Espiritismo. A CEPA ampliou
sua participação, nos últimos anos, no Brasil, na Espanha e na França, além de continuar
atuante em todo o Continente Americano, e, como uma legítima herdeira dessa
tradição, tem a tarefa de manter vivos seus ideais, especialmente, o tão
importante caráter progressivo do Espiritismo, considerado por Kardec como a
condição essencial para a sua perpetuidade e sobrevivência.
Herivelto Carvalho
é servidor público municipal, membro do CPDoc e delegado da CEPA em Ibatiba ES.
Os
artigos desta coluna baseiam-se em estudos e pesquisas desenvolvidos pelo
CPDoc.www.cpdocespirita.com.br / contato@cdocespirita.com.br
NR: Este artigo foi originalmente publicado no Jornal Abertura de outubro de 2016 - na coluna CPDoc em Foco.