Maioridade Penal, uma reflexão espirita Marcelo Regis Rio de Janeiro, 14° SBPE setembro de 2015
I - Introdução
Esse trabalho tem como objetivo refletir, sempre através das lentes da doutrina espírita, sobre esse tema atual e pulsante que é a redução ou não da maioridade penal no Brasil. Não temos a pretensão de esgotar o tema, nem mesmo analisar todas as facetas do problema. Nesse trabalho vamos nos ater a refletir sobe o tema usando como guia os conceitos morais espiritas, conforme ditados pela codificação kardequiana. Estão fora do escopo dessa reflexão questões jurídicopenais, bem como debater o sistema penal brasileiro e sua adequação para receber menores ou mesmo reintegrá-los a sociedade. O titulo do trabalho é propositadamente UMA reflexão espírita, pois sabemos que sendo a Doutrina Espirita uma doutrina de livres-pensadores, sem dogmas ou direção central ela permite muitas interpretações sobre esse tema, principalmente por se tratar de um tópico temporal, específico do momento atual em que vivemos e particularmente importante no contexto brasileiro onde a violência ocupa um lugar central nas preocupações da sociedade. A reflexão que ora propomos, estará centrada nos conceitos de justiça divina e lei natural. É preciso esclarecer que a codificação espírita não contempla nenhuma questão especifica sobre esse assunto, provavelmente porque tal tema não era relevante quando da codificação kardequiana há mais de 170 anos atrás. No Brasil o tema tomou suma importância, frente à escalada constante da violência e o debate sobre o efeito na mesma das resoluções estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), publicado em 1990. Atualmente encontram-se no congresso nacional inúmeras propostas de mudança tanto da constituição como do ECA, no sentido de alterar e na maioria das vezes endurecer as penalidades aplicadas a adolescentes infratores. Na maioria das vezes e como típico de nossa cultura, o debate é apaixonado e contaminado por preconceitos ideológicos e religiosos, sem muito espaço para aprofundamento sério, nem mesmo para entender experiências bem sucedidas em outros países.
II - Entendendo a Situação
Para que possamos fazer a reflexão proposta, precisamos primeiramente entender a situação corrente no Brasil e no mundo sobre o tema. O tópico gera discussões apaixonadas, irracionais e na maioria das vezes sem nenhum embasamento teórico ou jurídico. Graças à difusão das redes sociais muitos conceitos errôneos, apresentados sem o devido contexto ou sem suporte estatístico são utilizados para defender ambas as teses. A briga nas redes sociais é quente e quase sem nenhum debate sério – na maioria das vezes posições são colocadas mas sem nenhuma chance do contraditório ou mesmo de se considerar os argumentos do “outro” lado.
Cabe aqui definir alguns conceitos importantes para o restante desse trabalho:
Maioridade Penal: o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa define “maioridade penal” como “condição de maioridade para efeitos criminais”. É a idade a partir da qual o indivíduo responde pela violação da lei penal na condição de adulto, sem qualquer garantia diferenciada reservada para indivíduos jovens.
Imputabilidade Penal: significa a possibilidade de se atribuir a responsabilidade pela violação de lei penal, ou seja, pela prática de um crime nos termos das leis penais. A inimputabilidade penal significa o oposto: a impossibilidade, de acordo com a lei, de se atribuir a responsabilidade pela violação de lei penal. A inimputabilidade penal tem várias hipóteses. Uma delas é a inimputabilidade por idade. Indivíduos podem ser considerados penalmente inimputáveis por estar abaixo de certa idade. A idade de imputabilidade penal não coincide, necessariamente, com a idade de maioridade penal. Os ordenamentos jurídicos podem reconhecer imputabilidade penal diferenciada para aqueles abaixo da idade de maioridade penal.
Existe uma confusão conceitual entre imputabilidade penal e maioridade penal. Imputabilidade penal significa à possibilidade de atribuir a responsabilidade pela violação de lei penal, ou seja, pela prática de um crime, entendida como ação ou omissão típica, antijurídica e culpável. Maioridade penal, por usa vez, refere-se à idade a partir da qual o indivíduo responde pela violação da lei penal na condição de adulto, sem qualquer garantia diferenciada reservada para indivíduos jovens. A lei pode reconhecer a imputabilidade penal de indivíduos com idade abaixo da maioridade penal, acarretando uma responsabilização de natureza penal diferenciada, sob a luz do chamado Direito Penal Juvenil.
II.1 - Brasil
Atualmente, a maioridade penal é alcançada quando o indivíduo completa 18 (dezoito) anos – mesma idade em que se torna também maior no âmbito civil – conforme prevê a Constituição Federal em seu artigo 228, vejamos: Art. 228. “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. Como vimos acima inimputável significa aquele a quem não pode ser imputado um crime, e, por consequência, uma sanção criminal, como disposto no código penal, que tipifica aquelas condutas a serem rechaçadas do convívio social e estipula os limites de pena a serem aplicados em cada caso concreto. No Brasil, uma das causas dessa confusão conceitual é o fato de que o ordenamento jurídico não faz distinção entre imputabilidade penal e maioridade penal - definindo a idade para ambos como sendo dezoito anos - mas ao mesmo tempo os adolescentes são responsabilizados à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pela prática de ato infracional. Em consonância com a norma constitucional, o regime de infrações do Estatuto da Criança e do Adolescente não segue a sistemática típica do Direito Penal, baseada em tipos penais e penas mínimas e máximas para cada delito. O ECA não faz referência a penas ou crimes
praticados por adolescentes, mencionando apenas infrações e medidas socioeducativas, que não são individualizadas pelo estatuto para cada conduta específica.
Os crimes praticados por menores de dezoito anos são legalmente chamados de “atos infracionais” e seus praticantes de “adolescentes em conflito com a lei” ou de "menores infratores". Aos praticantes são aplicadas “medidas socioeducativas” e se restringem apenas a adolescentes (pessoas com idade compreendida entre doze anos de idade completos e dezoito anos de idade incompletos. Todavia, a medida socioeducativa de internação poderá ser excepcionalmente aplicada ao jovem de até 21 anos, caso tenha cometido o ato aos quatorze anos). O ECA estabelece, em seu artigo 121, § 3º, quanto ao adolescente em conflito com a lei, que “em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos”, por cada ato infracional grave. Após esse período, ele passará ao sistema de liberdade assistida ou semiliberdade, podendo retornar ao regime fechado no caso de mau-comportamento.
II.2 - Pelo Mundo
A responsabilidade criminal varia imensamente entre os diferentes países, conforme a cultura jurídica e social de cada um, indicando uma falta de consenso mundial sobre o assunto. Segundo informação fornecida pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), a maioridade penal é a seguinte, nos países abaixo listados:
II.3 - Canadá: Para ilustrar melhor as diferenças vamos nos aprofundar na análise do tema no Canadá. Escolhemos o Canadá por sua tradição de respeito aos direitos humanos, tolerância com minorias e imigrantes.
No Canadá crianças com menos de 12 anos são inimputáveis, enquanto jovens entre 12 e 18 anos estão sujeitos a regime jurídico especial regido pela lei federal Youth Criminal Justice Act (YCJA), publicada em 2003. O objetivo dessa lei é proteger o público através de: responsabilizar os jovens infratores, através de medidas e penas proporcionais a gravidade das faltas e o nível de responsabilidade dos mesmos reabilitar os jovens infratores e auxiliar sua reintegração na sociedade, para que os mesmos se tornem cidadãos respeitadores das leis e membros ativos da comunidade Atuar na prevenção de crimes, indicando jovens e adolescentes para programas e serviços que ataquem as causas e circunstâncias que levam a prática de ofensas a lei
Para aplicar essa lei existe o Youth Justice, ramo da justiça canadense separada do sistema adulto, onde os jovens são julgados em tribunais especiais. No caso das penas, o sistema canadense estabelece que o Juiz pode decidir entre as seguintes penas, de acordo com a gravidade da infração: advertência; multa, compensação ou restituição das vitimas pelas perdas materiais e financeiras serviço comunitário ou prestação de serviços diretamente às vitima do crime liberdade assistida/ regime aberto com supervisão prisão em centros de custodia juvenis, podendo ser seguido de liberdade condicional. No caso de crimes mais graves, se aplicam programas de reabilitação intensiva dentro dos centro de custodia
As penas juvenis estão limitadas da seguinte forma: Homicídio Qualificado: 10 anos, com máximo de 6 anos de reclusão e restante em liberdade assistida Homicídio doloso: 7 anos, com máximo de 4 anos de reclusão e restante em liberdade assistida para
Outros crimes: máximo de 2 anos
No caso de jovens acima de 14 anos, culpados de crimes sérios – definidos como qualquer crime em que um adulto poder receber penas de mais de 2 anos de reclusão - o juiz pode determinar uma sentença conforme o código aplicado aos adultos, e nesse caso os limites acima não se aplicam. Por exemplo, um jovem de 14 a 17 anos pode ser sentenciado à prisão perpetua no caso de homicídio qualificado.
Notamos assim um balanço entre promover a reabilitação e reintegração dos jovens, mas também em responsabilizar os mesmos pelos atos cometidos. Apesar de emitir parâmetros claros e compreender medidas protetivas, o ordenamento canadense permite ao sistema judiciário certa autonomia em ajustar as penas de acordo com cada caso, principalmente os mais graves como exposto acima.
I
II - Considerações Espiritas
III.1 - Posicionamento do Movimento Espirita Brasileiro: Uma pesquisa rápida na internet nos mostra que todas as manifestações de instituições e entidades espiritas são contra qualquer mudança na lei de maioridade penal brasileira. Transcrevemos o enunciado da Associação Jurídico Espirita, pois a mesma sumariza bem o pensamento presente no movimento espirita:
AJE-BRASIL (Associação Jurídico-Espírita do Brasil), por ocasião do 1º Fórum de Reflexões, ocorrido na Federação Espírita Brasileira (FEB), em Brasília, deliberou ser contrária à PEC 171/93, que pretende reduzir a maioridade penal no Brasil, fixando-a a partir de 16 anos, pelos seguintes motivos:
1. O Brasil é signatário da Convenção dos Direitos da Criança de 1989, da ONU, que reconhece que a criança – indivíduo menor de 18 anos – é merecedora de cuidados especiais e de proteção, por conta de sua falta de maturidade física e mental; 2. O adolescente – indivíduo de 12 a 18 anos incompletos segundo a legislação brasileira – é um ser cuja personalidade está em desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, devendo lhe ser garantido o sistema de maior proteção aos direitos fundamentais; 3. Para a hipótese de condutas definidas como crime, o sistema jurídico brasileiro, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente, já prevê medidas socioeducativas para a adequada responsabilização do adolescente, não havendo que se falar em impunidade; 4. Ao invés de se adotar o sistema punitivo de natureza penal a adolescentes de 16 a 18 anos, cumpre ampliar medidas concretas nas áreas de assistência social, moradia, esporte, lazer, saúde, educação, entre outras; 5. A inserção de adolescentes no sistema carcerário – que se apresenta superlotado, em condições subumanas, portanto, sem estrutura mínima para cumprir o fim de ressocialização da pena e para atender à dignidade da pessoa
humana implica aumentar os efeitos deletérios desta realidade, com prejuízo para o cidadão e para sociedade em geral; 6. Dados estatísticos comprovam que a maior incidência da lei penal dá-se em relação a adolescentes pobres, negros e com baixo grau de alfabetização, o que revela a seletividade do sistema punitivo. De outro lado, o número de crimes praticados por adolescentes é baixo, em torno de 0,1425% (IBGE); 7. As políticas públicas devem buscar a emancipação do ser – em especial do adolescente que se encontra em desenvolvimento – em detrimento do aumento de medidas repressivas, o que se faz por meio da educação, que proporciona o aperfeiçoamento moral e intelectual do espírito imortal; 8. A lei humana deve privilegiar a ampliação e não a restrição dos direitos fundamentais, visando à construção de uma sociedade justa e fraterna; 9. A educação deve ser vista como prioritária e permanente opção para a evolução humana. Logo, a proposta em debate – de aumento de medida repressiva em prejuízo da adoção de medida de natureza educativa – se aprovada, representa retrocesso social e espiritual para os destinos da sociedade brasileira. AJE – Associação Jurídico Espírita Brasília, abril de 2015.
III.2 - Lei Natural e Lei Humana Em "O Livro dos Espíritos", a justiça a qual um encarnado está sujeito é regulada pela "lei natural" e pela "lei humana" (ver subquestão (a) da questão # 875). Os questionamentos feitos por Kardec dizem respeito, majoritariamente, à lei natural, já que a lei humana é específica conforme o tempo, a cultura e a sociedade. Apesar de tocar em vários pontos específicos acerca das leis humanas, não encontramos referencia direta em O Livro dos Espíritos sobre maioridade penal e/ou crimes cometidos por menores de idade. Isso posto, em vários pontos Kardec e os Espíritos provém diretrizes e guias que podem ajudar nossa reflexão.
A diretriz máxima da Lei Natural está exposta na questão #876 "Queira cada um para os outros o que quereria para si mesmo". A questão # 877 complementa a anterior com relação ao primeiro dever que é "respeitar os direitos de seus semelhantes". Ainda segundo a lei natural, explicam os Espíritos na questão # 880, o primeiro de todos os direitos naturais do homem: “O de viver. Por isso é que ninguém tem o de atentar contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o que quer que possa comprometer-lhe a existência corporal.”
Quanto a ação da sociedade no encaminhamento da criança e do adolescente (segundo a lei natural) está toda sob a tutela da paternidade. Aqui encontramos o campo de maior efeito sobre os atos das crianças. Por causa disso, a questão 582 qualifica a paternidade como uma missão:
582. Pode-se considerar como missão a paternidade? “É, sem contradita possível, uma verdadeira missão. Constitui, ao mesmo tempo grandíssimo dever, que empenha, mais do que o pensa o homem, a sua
responsabilidade quanto ao futuro. Deus colocou o filho sob a tutela dos pais, a fim de que estes o dirijam pela senda do bem, e lhes facilitou a tarefa dando àquele uma organização física débil e delicada, que o torna propício a todas as impressões. Muitos há, no entanto, que mais cuidam de endireitar as árvores do seu jardim e de fazê-las dar bons frutos em abundância, do que de endireitar o caráter de seu filho. Se este vier a sucumbir por culpa deles, suportarão os desgostos resultantes dessa queda e partilharão dos sofrimentos do filho na vida futura, por não terem feito o que lhes estava ao alcance para que ele avançasse na estrada do bem.”
portanto, segundo a lei natural, a educação dos filhos é de responsabilidade dos pais. É pela falta ou ausência desses, porém, que a criminalidade infantil pode se tornar um problema da sociedade (como condição necessária, mas não suficiente, para manifestação dessa criminalidade).
583. São responsáveis os pais pelo transviamento de um filho que envereda pelo caminho do mal, apesar dos cuidados que lhe dispensaram? “Não; porém, quanto piores forem as propensões do filho, tanto mais pesada é a tarefa e tanto maior o mérito dos pais, se conseguirem desviá-lo do mau caminho.”
Sabendo-se que os espíritos reencarnados tem toda uma bagagem de varias existências passadas, sabemos que as crianças e adolescentes trazem consigo qualidades, defeitos e experiências anteriores muitas vezes com tendência a pratica do mal que pode aflorar através de ações delinquentes se educação e limites não forem estabelecidos a partir do lar.
Finalmente, não deixa de ser elucidativa a questão # 796 que aparece na III Parte do Capítulo VIII do "Livro dos Espíritos": 796. No estado atual da sociedade, a severidade das leis penais não constitui uma necessidade?
“Uma sociedade depravada certamente precisa de leis severas. Infelizmente, essas leis mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que a lhe secar a fonte. Só a educação poderá reformar os homens, que, então, não precisarão mais de leis tão rigorosas.”
III.3 - Livre-arbítrio e Responsabilidade Individual Em vários pontos da Doutrina Espirita os espíritos deixam claro que no limite, cada individuo é o artificie e responsável por sua existência, seus atos e por sua própria evolução. Kardec expõe esse tópico magistralmente na questão 872, que apesar de extensa transcrevemos aqui por sua importância:
872. A questão do livre-arbítrio se pode resumir assim: O homem não é fatalmente levado ao mal; os atos que pratica não foram previamente determinados; os crimes que comete não resultam de uma sentença do destino. Ele pode, por prova e por expiação, escolher uma existência em que seja arrastado ao crime, quer pelo meio onde se ache colocado, quer pelas circunstâncias que
sobrevenham, mas será sempre livre de agir ou não agir. Assim, o livre-arbítrio existe para ele, quando no estado de Espírito, ao fazer a escolha da existência e das provas e, como encarnado, na faculdade de ceder ou de resistir aos arrastamentos a que todos nos temos voluntariamente submetido. Cabe à educação combater essas más tendências. Fá-lo-á utilmente, quando se basear no estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la, como se modifica a inteligência pela instrução e o temperamento pela higiene. Desprendido da matéria e no estado de erraticidade, o Espírito procede à escolha de suas futuras existências corporais, de acordo com o grau de perfeição a que haja chegado e é nisto, como temos dito, que consiste sobretudo o seu livrearbítrio. Esta liberdade, a encarnação não a anula. Se ele cede à influência da matéria, é que sucumbe nas provas que por si mesmo escolheu. Para ter quem o ajude a vencê-las, concedido lhe é invocar a assistência de Deus e dos bons Espíritos. Sem o livre-arbítrio, o homem não teria nem culpa por praticar o mal, nem mérito em praticar o bem. E isto a tal ponto está reconhecido que, no mundo, a censura ou o elogio são feitos à intenção, isto é, à vontade. Ora, quem diz vontade diz liberdade. Nenhuma desculpa poderá, portanto, o homem buscar, para os seus delitos, na sua organização física, sem abdicar da razão e da sua condição de ser humano, para se equiparar ao bruto. Se fora assim quanto ao mal, assim não poderia deixar de ser relativamente ao bem. Mas, quando o homem pratica o bem, tem grande cuidado de averbar o fato à sua conta, como mérito, e não cogita de por ele gratificar os seus órgãos, o que prova que, por instinto, não renuncia, malgrado à opinião de alguns sistemáticos, ao mais belo privilégio de sua espécie: a liberdade de pensar. A fatalidade, como vulgarmente é entendida, supõe a decisão prévia e irrevogável de todos os sucessos da vida, qualquer que seja a importância deles. Se tal fosse a ordem das coisas, o homem seria qual máquina sem vontade. De que lhe serviria a inteligência, desde que houvesse de estar invariavelmente dominado, em todos os seus atos, pela força do destino? Semelhante doutrina, se verdadeira, conteria a destruição de toda liberdade moral; já não haveria para o homem responsabilidade, nem, por conseguinte, bem, nem mal, crimes ou virtudes. Não seria possível que Deus, soberanamente justo, castigasse suas criaturas por faltas cujo cometimento não dependera delas, nem que as recompensasse por virtudes de que nenhum mérito teriam.
Demais, tal lei seria a negação da do progresso, porquanto o homem, tudo esperando da sorte, nada tentaria para melhorar a sua posição, visto que não conseguiria ser mais nem menos. Contudo, a fatalidade não é uma palavra vã. Existe na posição que o homem ocupa na Terra e nas funções que aí desempenha, em consequência do gênero de vida que seu Espírito escolheu como prova , expiação ou missão . Ele sofre fatalmente todas as vicissitudes dessa existência e todas as tendências boas ou más, que lhe são inerentes. Aí, porém, acaba a fatalidade, pois da sua vontade depende ceder ou não a essas tendências. Os pormenores dos acontecimentos, esses ficam subordinados às circunstâncias que ele próprio cria pelos seus atos ,
sendo que nessas circunstâncias podem os Espíritos influir pelos pensamentos que sugiram. Há fatalidade, portanto, nos acontecimentos que se apresentam, por serem estes consequência da escolha que o Espírito fez da sua existência de homem. Pode deixar de haver fatalidade no resultado de tais acontecimentos, visto ser possível ao homem, pela sua prudência, modificar-lhes o curso. Nunca há fatalidade nos atos da vida moral. No que concerne à morte é que o homem se acha submetido, em absoluto, à inexorável lei da fatalidade, por isso que não pode escapar à sentença que lhe marca o termo da existência, nem ao gênero de morte que haja de cortar a esta o fio. Segundo a doutrina vulgar, de si mesmo tiraria o homem todos os seus instintos, que, então, proviriam, ou da sua organização física, pela qual nenhuma responsabilidade lhe toca, ou da sua própria natureza, caso em que lícito lhe fora procurar desculpar-se consigo mesmo, dizendo não lhe pertencer a culpa de ser feito como é. Muito mais moral se mostra, indiscutivelmente, a Doutrina Espírita. Ela admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude e, se lhe diz que, praticando o mal, ele cede a uma sugestão estranha e má, em nada lhe diminui a responsabilidade, pois lhe reconhece o poder de resistir, o que evidentemente lhe é muito mais fácil do que lutar contra a sua própria natureza. Assim, de acordo com a Doutrina Espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre cerrar ouvidos à voz oculta que lhe fala no íntimo, induzindoo ao mal, como pode cerrá-los à voz material daquele que lhe fale ostensivamente. Pode-o pela ação da sua vontade, pedindo a Deus a força necessária e reclamando, para tal fim, a assistência dos bons Espíritos. Foi o que Jesus nos ensinou por meio da sublime prece que é a Oração dominical , quando manda que digamos: “Não nos deixes sucumbir à tentação, mas livra-nos do mal.” Essa teoria da causa determinante dos nossos atos ressalta com evidência de todo o ensino que os Espíritos hão dado. Não só é sublime de moralidade, mas também, acrescentaremos, eleva o homem aos seus próprios olhos. Mostra-o livre de subtrair-se a um jugo obsessor, como livre é de fechar sua casa aos importunos. Ele deixa de ser simples máquina, atuando por efeito de uma impulsão independente da sua vontade, para ser um ente racional, que ouve, julga e escolhe livremente de dois conselhos um. Aditemos que, apesar disto, o homem não se acha privado de iniciativa, não deixa de agir por impulso próprio, pois que, em definitivo, ele é apenas um Espírito encarnado que conserva, sob o envoltório corporal, as qualidades e os defeitos que tinha como Espírito. Conseguintemente, as faltas que cometemos têm por fonte primária a imperfeição do nosso próprio Espírito, que ainda não conquistou a superioridade moral que um dia alcançará, mas que, nem por isso, carece de livre-arbítrio. A vida corpórea lhe é dada para se expungir de suas imperfeições, mediante as provas por que passa, imperfeições que, precisamente, o tornam mais fraco e mais acessível às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, que delas se aproveitam para tentar fazê-lo sucumbir na luta em que se empenhou. Se dessa luta sai vencedor, ele se eleva; se fracassa, permanece o que era, nem pior, nem melhor. Será uma prova que lhe cumpre recomeçar, podendo suceder que longo tempo gaste nessa alternativa. Quanto mais se depura, tanto mais diminuem os seus pontos fracos e tanto menos acesso oferece aos que procurem
atraí-lo para o mal. Na razão de sua elevação, cresce-lhe a força moral, fazendo que dele se afastem os maus Espíritos. Todos os Espíritos, mais ou menos bons, quando encarnados, constituem a espécie humana e, como o nosso mundo é um dos menos adiantados, nele se conta maior número de Espíritos maus do que de bons. Tal a razão por que aí vemos tanta perversidade. Façamos, pois, todos os esforços para a este planeta não voltarmos, após a presente estada, e para merecermos ir repousar em mundo melhor, em um desses mundos privilegiados, onde não nos lembraremos da nossa passagem por aqui, senão como de um exílio temporário.
Os espíritos corroboram tal argumento ao tratarem do Bem e do Mal e da influencia do meio nas ações individuais nas questões 637, 638, 639, 644 e 645 que transcrevemos a seguir:
637. Será culpado o selvagem que, cedendo ao seu instinto, se nutre de carne humana? “Eu disse que o mal depende da vontade. Pois bem! Tanto mais culpado é o homem, quanto melhor sabe o que faz.” As circunstâncias dão relativa gravidade ao bem e ao mal. Muitas vezes, comete o homem faltas, que, nem por serem consequência da posição em que a sociedade o colocou, se tornam menos repreensíveis. Mas, a sua responsabilidade é proporcional aos meios de que ele dispõe para compreender o bem e o mal. Assim, mais culpado é, aos olhos de Deus, o homem instruído que prati- ca uma simples injustiça, do que o selvagem ignorante que se entrega aos seus instintos.
638. Parece, às vezes, que o mal é uma consequência da força das coisas. Tal, por exemplo, a necessidade em que o homem se vê, nalguns casos, de destruir, até mesmo o seu semelhante. Poder-se-á dizer que há, então, infração da lei de Deus? “Embora necessário, o mal não deixa de ser o mal. Essa necessidade desaparece, entretanto, à medida que a alma se depura, passando de uma a outra existência. Então, mais culpado é o homem, qua quando o pratica, porque melhor o compreende.”
639. Não sucede freqüentemente resultar o mal, que o homem pratica, da posição em que os outros homens o colocam? Quais, nesse caso, os culpados? “O mal recai sobre quem lhe foi o causador. Nessas condições, aquele que é levado a praticar o mal pela posição em que seus semelhantes o colocam tem menos culpa do que os que, assim procedendo, o ocasionaram. Porque, cada um será punido, não só pelo mal que haja feito, mas
também pelo mal a que tenha dado lugar.”
644. Para certos homens, o meio onde se acham colocados não representa a causa primária de muitos vícios e crimes? “Sim, mas ainda aí há uma prova que o Espírito escolheu, quando em liberdade, levado pelo desejo de expor-se à tentação para ter o mérito da resistência.”
645. Quando o homem se acha, de certo modo, mergulhado na atmosfera do vício, o mal não se lhe torna um arrastamento quase irresistível? “Arrastamento, sim; irresistível, não; porquanto, mesmo dentro da atmosfera do vício, com grandes virtudes às vezes deparas. São Espíritos que tiveram a força de resistir e que, ao mesmo tempo, receberam a missão de exercer boa influência sobre os seus semelhantes.”
IV - Considerações Finais
O espiritismo claramente define o individuo como responsável por seus atos e ações. Mesmo inserido em seu meio, e sujeito as influencias externas, o espirito tem sempre o livre-arbítrio e o poder de escolher entre praticar o bem ou o mal. Assim também são aplicadas suas penas e gozos futuros – ou seja individualizadas. Isso dito, fica claro que atenuantes devem ser considerados e que as penas são proporcionais as faltas e que não somente as ações são levadas em conta, mas também o contexto, as intenções e situações. Dessa forma me parece obvio que qualquer posicionamento espirita sobre aprimoramento das leis humanas, aproximando-as da Lei Natural, deve incluir responsabilização individualizada, contextualizada nas condições dos fatos. Portanto, na questão da maioridade penal fica claro que necessitamos de aperfeiçoamentos aqui no Brasil, principalmente para adequar as penas e reparações a gravidade dos fatos. O ECA ao não permitir que a responsabilização seja proporcional ao delito, individualizada e ao aplicar soluções genéricas, restringe e limita uma melhor analise do fatos, contexto e consequências. Privilegiando somente um lado da equação, ou seja, considerando o menor infrator apenas como vitima maior da sociedade, as ações previstas no ECA são ajustadas sob essa perspectiva. O espiritismo, ao elevar o individuo como artífice máximo de sua própria existência, entende que um melhor balanço precisa ser atingido. Para tanto uma possível solução seria incluir no ordenamento jurídico nacional uma adequação que permitisse que o jovem infrator fosse também responsabilizado por seus atos, proporcionalmente a gravidade, consequência e contexto da mesma. Esse vetor, aliado aos vetores de reabilitação e prevenção estariam mais em consonância com os preceitos e moral definidos pelo espiritismo. Nesse debate, não precisaríamos necessariamente de nenhuma redução da idade da maioridade penal, hoje estabelecida aos 18 anos. Porém necessitaríamos
retirar da constituição a inimputabilidade de menores de 18 anos para que os mesmos possam ter reconhecidas sua responsabilidade perante a sociedade. Temos também que redefinir o ECA para que o mesmo permita a sociedade, através do poder judiciário e de suas varas especializadas na criança e na juventude possa melhor definir e aplicar penas reparatórias e proporcionais aos jovens infratores. O exemplo canadense parece bem equilibrado e algo que pode servir de parâmetro a sociedade brasileira. Um ordenamento jurídico baseado no tripé: - Responsabilizar individualmente o jovem por seus atos e que o mesmo possa, no possível, reparar os danos causados as vitimas; - Suporte da sociedade para que o jovem infrator possa ser reabilitado e reinserido na sociedade; - Foco em prevenção, através da valorização da família e educação;
Parece bem em consonância com o ensinado pela doutrina espirita e a meu ver seria um grande avanço na legislação brasileira, permitindo que nossa sociedade continue progredindo e avançando suas leis rumo a lei divina e natural.
Bibliografia/ Websites Consultados:
Kardec, Allan – O Livro dos Espíritos; Ed. FEB
American Juvenile Justice System (https://en.wikipedia.org/wiki/American_juvenile_justice_system)
Canada, British Columbia - Youth Justice Section of JusticeBC (http://www.justicebc.ca/en/cjis/youth/)
Maioridade penal (https://pt.wikipedia.org/wiki/Maioridade_penal#cite_note-71)
Xavier, Ademir - Redução da Maioridade Penal e Espiritismo em Blog Era do Espírito http://eradoespirito.blogspot.com.br/2015/04/reducao-da-maioridade-penale.html
ONU, Comitê sobre os Direitos da Criança (25/4/2007). Children’s rights in juvenile justice. GENERAL COMMENT No. 10 (2007) http://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/docs/CRC.C.GC.10.pdf
Children in the US Justice System Amnesty International USA). (http://www.amnestyusa.org/news?id=D94FCE82406321E18025690000692 DCA&lang=e)
Estatuto da Criança e do Adolescente; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm
A maioridade penal na visão da AJE – Associação Jurídico-Espírita do Brasil; Publicado por Rádio Boa Nova http://radioboanova.com.br/jornal-nova-era/maioridade-penal-na-visao-daaje-associacao-juridico-espirita-brasil/