O PACOTE ANTICRIME
Fazer aos outros o que
quereríamos que os outros nos fizessem, isto é, fazer o bem e não o mal.
Neste princípio encontra o homem uma regra universal de proceder, mesmo para as
suas menores ações.
Com o
intuito de contribuir para os debates acerca do Anteprojeto de Lei, n. /2019,
apresentado ao Congresso Nacional pelo Ministro da Justiça Sergio Moro, faço
algumas considerações sobre o seu pacote anticrime. Apresento uma análise
crítica de alguns pontos com base na ciência jurídica e no espiritismo. Por
questão de espaço e para não cansar em demasia o leitor, tratarei de apenas alguns
pontos explicitamente.
Será
que o “novo” sistema que se pretende implantar para o tratamento de pessoas em
conflito com a lei é favorável à sociedade? Estamos na iminência de um giro
importante no panorama atual, ou de mera proposta salvacionista?
Os
textos propõem alteração em mais de uma dezena de leis, especialmente para
endurecer penas de diversos crimes, dificultar o cumprimento da pena e suprimir
direitos previstos no decorrer da execução da pena.
Considerando
que os fatos podem, sempre, ser analisados por mais de um prisma, tentarei
fazer um estudo de algumas propostas (todas não caberiam neste espaço) contando
com a contribuição da Filosofia Espírita. Por evidente, ainda por esse enfoque
muitas interpretações são possíveis, dado que o próprio texto de Kardec é visto
por variadas posições.
Começar
refletindo com Kardec sobre algumas questões relevantes, tanto espíritas, como
jurídicas, pode ser útil:
Q. 796 de OLE: No estado atual da sociedade, a severidade
das leis penais não constitui uma necessidade?
“Uma sociedade depravada
certamente precisa de leis severas. Infelizmente, essas leis mais se destinam a
punir o mal depois de feito, do que a lhe secar a fonte. Só a educação poderá
reformar os homens, que, então, não precisarão mais de leis tão rigorosas.”
A
lição espírita é clara e nos coloca no dever de melhorar a sociedade para que
não sejam necessárias penas mais graves; não há como não entender que a opção pelo
revide vai deixando a sociedade cada vez pior. A trajetória para a modificação
da lei penal, com incidência sobre uma nação inteira, não pode ser
desconsiderada, sendo certo que a maneira utilizada para desenvolver o projeto
faz parte da construção social. Não à toa, Leon Denis escreveu que as instituições, as leis de um povo, são a
reprodução, a imagem fiel de seu estado de espírito e de consciência, e
demonstram o grau de civilização ao qual ele chegou.
Quase
poderíamos parar por aqui, resumindo o desfecho nessas lições soberanas, mas
convém prosseguir.
A
partir da finalidade precípua da pena (prevenção ao crime e à reincidência, contramotivo
- repressão e prevenção), quais seriam as justificativas filosóficas para a
prática estatal que foca no viés retributivo?
Calha
recordar que nem a delação premiada, nem a transação penal, envolvendo acusação
e defesa, pode ser considerada novidade no sistema penal pátrio; a está
primeira regulamentada em 2013, a segunda pela já envelhecida lei dos juizados especiais
criminais. Este parágrafo renderia debate robusto, consideradas as supostas
novidades, porém não é o objetivo deste trabalho.
Recorde-se,
antes de qualquer análise do projeto, de que a garantia dos direitos
fundamentais foi objeto de amplo debate, não apenas durante a constituinte, mas
representou décadas de luta contínua e aperfeiçoamento de outros dispositivos
esparsos. Contrariamente, esta mudança a ser debatida no Congresso Nacional é
atribuída ao trabalho de um brasileiro, não representando, portanto, um debate
amadurecido, a síntese de discussões múltiplas, ou sequer uma tempestade de
ideias; nem de longe espelha contribuições de diversos juristas. Uma única
pessoa, por mais versada que seja em direito criminal, estaria legitimada a
propor uma mudança dessa proporção?
No
conteúdo, a proposta de lei afronta garantias constitucionais, forjando-se no
desrespeito ao princípio democrático, com o qual têm se alinhado significativos
debates na sociedade. Esta, na condição de destinatária final da lei, bem
poderia ter sido representada pelos juristas renomados, especialistas nas áreas
do Direito Penal e Processual Penal.
Estudiosos
do tema não veem na mencionada proposta qualquer potencial para atingir o seu objetivo.
Para além de repetir medidas experimentadas há três décadas sem nenhum sucesso,
alguns dispositivos sugeridos agridem de forma espantosa direitos fundamentais
garantidos constitucionalmente e construídos ao longo de séculos a custa de
muita luta e sofrimento. Há total descrença de que as poucas inovações tenham capacidade
de provocar qualquer alteração no status
quo.
Sinalizando
ao novato representante do governo que ninguém se sustenta no sistema político
brasileiro por si só, logo na largada os experientes congressistas sagraram-se
vitoriosos, impondo a retirada da proposta inicial que tipificava o “caixa dois
em eleições”. Salta aos olhos a repetição do velho mecanismo de impressionar
por palavras, pelo medo e pela aposta na incapacidade intelectual do povo. Basta
analisar a sugerida transformação de determinados crimes em hediondos e
insuscetíveis de benefícios na execução da pena.
Mas
algo precisaria ser feito, diriam alguns. “A criminalidade é alarmante, as
pessoas de bem não têm sossego; que sacrifiquem os criminosos pela paz das
pessoas trabalhadoras”. Em certa medida, esse pensamento está coerente com as
necessidades dos brasileiros; no entanto, essa gente também está cansada de
promessas vãs, de medidas midiáticas que só favorecem políticos espertalhões,
ávidos por sucesso conquistado com a enganação alheia, pública e inescrupulosa.
Não se transforma um estado de criminalidade em vida pacífica senão depois de
décadas de trabalho sério e investimento nas políticas públicas de segurança e
de justiça social.
Pelo
compromisso ético de justificar algumas afirmações, trago à análise a Lei 8.072/90, denominada Lei dos Crimes
Hediondos, que completaria 30 anos em 2020. Foi dado ao tráfico de drogas e
outros crimes o mesmo tratamento dispensado aos crimes hediondos. Deixo ao
leitor a reflexão sobre o resultado obtido pela população nessas quase três
décadas passadas. Houve redução, ou aumentou o tráfico de drogas? Outros
exemplos poderiam ser mencionados, porém, esse é bastante emblemático e
transmite a ideia necessária.
Os
políticos e o povo precisam de respostas imediatas. Imaginem se um político
esperto pensaria em implementar medidas, sabidamente eficazes, com potencial de
promover transformações importantes, mas em longo prazo! Gostaríamos de pagar o
preço, trabalhar junto, fazer acontecer uma mudança lenta, porém eficaz? Necessário
recordar que o órgão acusador da União recebeu, por muito tempo, a alcunha de
“engavetador geral da república”, situação que experimentou significativa
mudança a partir do empoderamento da Polícia Federal. Quase uma década depois
de se iniciarem as medidas de fortalecimento dessa Instituição começaram a
aparecer os resultados, que saltam aos olhos de quem deseja enxergar.
As
medidas, no âmbito do Poder Judiciário, que apresentam soluções “rápidas e
eficazes”, em regra, solapam garantias individuais constitucionais e violam
acintosamente o Estado Democrático de Direito.
Algumas
modificações vieram apenas para ampliar o raio de incidência da norma, ou para agravar
a situação do criminoso; outras propõem novidades inexpressivas; servem para aperfeiçoar
ou legalizar práticas já adotadas no Brasil, permitindo inferir que não terão capacidade
de imprimir grandes modificações.
Reporto-me
a algumas propostas que se apresentam por demais inconsistentes e
inconvenientes ao meu ver. Novidade é condicionar a inclusão do preso,
condenado ou provisório, em
estabelecimentos penais federais de segurança máxima ao interesse da segurança pública ou do próprio preso. Esse
ilimitado poder conferido à segurança pública, que passa a dispor do preso para
os fins que considerar do seu interesse, sem precedentes no direito
penal do último século (excetuado o regime da ditadura militar), além de
reduzir o Poder Judiciário, submetendo-o ao Executivo, prejudica sobremaneira
os meios de defesa.
Não se
vislumbra razão plausível para o legislador alterar a disposição penal sobre a
legítima defesa. Embora diplomas europeus mencionem expressamente que o excesso
será escusável na legítima defesa se decorrer de perturbação, medo, surpresa ou
violenta emoção, no Brasil tal circunstância sempre foi observada, considerado
o natural abalo emocional de quem precise, eventualmente, exercitar a legítima
defesa. O excesso é sempre punível, exceto em situação excepcional, demonstrada
a condição de inegável abalo emocional, que não se confunde com autorização
para matar.
Essa excludente
da ilicitude sempre foi contemplada, possivelmente, confundindo-se com a
história do direito penal. Não obstante, o direito a “repelir injusta agressão
humana atual ou iminente” ganhou contornos inimagináveis no projeto do Sr.
Moro, quando envolve policial ou agente de segurança. Nesse caso, contraria a
finalidade, já que ninguém pode se exceder na legítima defesa, muito menos o
policial que recebe treinamento para o enfrentamento do crime. Como esses
profissionais jamais estiverem excluídos da proteção legal, a inovação se
revela deveras inútil e impertinente, servindo, isto sim, para banalizar a
violência, naturalizando-a e disseminando a cultura do excesso neste país
demasiado violento.
Outra
novidade incluída por Moro na sua proposta, refere-se à qualificadora do crime
de resistência, configurando verdadeira lambança. Caso passe no Congresso, o
dispositivo criará uma anomalia gravíssima do nosso sistema penal, com impacto
muito danoso à sociedade. Consta do § 2º do art. 329: “Se da resistência resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a
terceiro: pena – reclusão, de seis a trinta anos, e multa”.
Quando
se utiliza da condição “se resulta morte”,
a lei está se referindo a um crime doloso na sua origem (resistência, lesão
corporal, por ex.), mas que termina por apresentar resultado não desejado (a
morte), culposo, portanto – crime preterdoloso. Ocorre que para o crime doloso
de homicídio (matar alguém é o objetivo inicial), a lei prescreve pena máxima
de 20 anos. Com efeito, se alguém desejar matar um policial e concretizar seu
intento, sua pena máxima será de 20 anos, mas se estiver sendo autuado por um
agente público, resistir e na tentativa de escapar, sem desejar, terminar
provocando a sua morte, a pena máxima será de 30 anos. Não pode ser crível que
o legislador queira para o crime não desejado - culposo, pena mais grave do que
a prevista para o mesmo crime desejado - doloso. Nem se diga que criou um tipo
penal pela imposição de uma qualificadora!
Estranha-se,
igualmente, a figura do “informante do
bem" ou "whistleblower", extraída do pacote "Dez
Medidas Contra a Corrupção". A proposta confere ao denunciante de crimes contra a Administração Pública, ilícitos
administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público,
o direito à recompensa de até 5% do valor arrecadado, se a denúncia resultar na
recuperação de dinheiro desviado, além de lhe conceder proteção. Qual seria o
impacto dessa medida na questão da segurança, tão necessária para a população?
Não
foi possível entender a razão de Moro ter concedido status jurídico a
organizações criminosas, como PCC, CV, Milícias e outras. Esse reconhecimento
reduz o Estado.
Em
resumo, apresentou um pacote muito abrangente, dotado de restrições aos
direitos e garantias individuais, como a progressão de regime, que favorece a
sociedade e não o condenado; o excesso de encarceramento, agravando a situação
irregular já existente de presídios superlotados; a restrição a recurso, que
garante a ampla defesa; a ampliação da execução provisória da pena e a
alteração dos prazos prescricionais, além de outras no mesmo sentido, que
contrariam garantias fundamentais constitucionais e ampliam a força estatal em prejuízo
da parte que já é muito mais fraca.
De
fato, há um clamor de grande de parte da população, pela pena de morte, pelo
agravamento das penas, preferencialmente com requintes de crueldade, mas a pena
prevista na lei brasileira mais grave é a de privação da liberdade. Sabendo-se
que o Brasil conta, há muito tempo, com um sistema prisional falido, sendo
recorrentes as notícias de chacinas, fugas em massa, rebeliões, massacres e
situações catastróficas, seria razoável supor que maior encarceramento, ou
permanência no sistema por mais tempo, beneficiaria a sociedade?
Considero
aconselhável pensar, antes de outras medidas, em um sistema carcerário com
condições mínimas para cumprir a sua finalidade. Não poderiam juntar pequenos
infratores com criminosos de alta periculosidade, tampouco permitir a
ociosidade no presídio. O simples cumprimento da velha e boa Lei de Execução Penal traria muitos benefícios, a
começar pela disponibilidade de trabalho e o estudo; ocupação útil: educação,
trabalho produtivo, estudo, arte, esporte, informação, reeducação efetiva.
Castigar, oprimir, matar, são ações violentas e odiosas que gerarão,
certamente, violência e ódio.
Em
outras palavras, os políticos podem fazer malabarismos, dar nomes soberbos às
ferramentas já conhecidas, implantar medidas mais severas, mas se as
autoridades competentes não praticarem os
regramentos, não terão serventia alguma.
Como já
sinalizado, a pena se destina a punir o criminoso, mas também a prepará-lo para
voltar ao convívio social, de modo que os presídios deveriam funcionar como
escolas, devolvendo os apenados à sociedade em melhores condições.
A
reencarnação nos é concedida pela lei natural como oportunidade de viver e aprender. É o recurso disponibilizado pela
vida para irmos nos ajustando com nossa consciência, crescendo, evoluindo,
aprendendo, libertando-nos do fardo da ignorância e da culpa; em síntese,
permite que sejamos livres e felizes. Cabe ao Estado, às leis e ao Sistema
Prisional oferecer também à pessoa que cometeu crimes, as ferramentas e
oportunidades para, aos poucos, sentir-se útil, menos culpada, produtiva,
capaz, livre e feliz. A sociedade está totalmente envolvida com isso na
condição de agente e paciente dessas ações.
Espíritas
não podem olvidar que a vingança não reeduca e não reorganiza a sociedade,
interessando para a harmonia comunitária, isto sim, a educação dos seus
membros. Lembremos que a maioria dos criminosos provem da marginalidade; não
recebeu formação adequada, tendo sido moldada na experiência do crime.
Espera-se
que o Congresso Nacional e a sociedade discutam as propostas que Moro não apresentou, deixando um pouco de
lado as postas no tal projeto.
Lamentavelmente,
nesse projeto de cunho eminentemente retributivo, a ideia de segurança pública
está limitada ao propósito do encarceramento, ou da repressão pura e simples.
Seguindo o clamor popular e as políticas emergenciais ineficazes e
ineficientes, reproduzidas ao longo do tempo neste país, a proposta de Moro
circunscreve-se à discussão periférica, renunciando à oportunidade de enfrentar
a raiz dos problemas.
Toda a
política está respaldada na crença de que o encarceramento resolve; então, que
se prenda mais e se construa mais cadeias. Olvidou completamente eventuais
medidas educativas, preventivas, ou o investimento (de qualquer recurso e não
apenas financeiro), em políticas sabidamente capazes de reduzir a
criminalidade. Nem a recente proposta de Raul Jungmann, de criar o sistema
único de segurança pública – SUSP, serviu-lhe de inspiração.
No
documento de 34 páginas, propondo 19 alterações em trechos de 14 leis
diferentes, editadas entre 1940 e 2018, esperava-se de um ex-juiz federal com
formação internacional, propostas para uma justiça de transição; iniciativas
estruturantes de medidas jurídico políticas duradouras, permitindo a adaptação
das instituições para garantir que os resultados futuros sejam democráticos e
não autoritários. A proposta apresentada não esclarece que rumo o Direito Penal
tomará; para onde quer levar o povo brasileiro.
Por
estudar Kardec, defendemos a imposição da pena legal, sim, mas apenas a pena razoável
prevista em lei. Para o seu cumprimento, deve-se observar a Lei de Execução
Penal, oportunizando trabalho, estudo e acompanhamento de equipe técnica para franquear
a ressocialização; oportunidade para as pessoas repensarem suas vidas e suas
atitudes; encontrarem outros caminhos e não desejarem mais retornar ao
presídio.
Para
finalizar, não vislumbrei probabilidade de melhoria a partir da reforma
proposta. Não encontrei medidas educativas para os presos, tampouco mecanismos
de inteligência ou aparatos para a melhoria real do sistema de investigação.
Respeitadas as opiniões contrárias, classifico-a como uma proposta populista, midiática
e ineficaz, tal como a lei dos crimes hediondos de 1990.
Deixo
com os leitores mais uma questão de OLE para meditarem:
Q.
761. A lei de conservação dá ao homem o direito de preservar sua vida. Não
usará ele desse direito, quando elimina da sociedade um membro perigoso?
“Há
outros meios de ele se preservar do perigo, que não matando. Demais, é preciso abrir e não fechar ao
criminoso a porta do arrependimento” (grifei).
Juíza
de Direito aposentada, Advogada, Presidente da CEPA – Associação Espírita
Internacional
Este artigo foi publicado no Jornal Abertura de abril de 2019 - se quiser ler a edição completa vá ao link abaixo: